terça-feira, 26 de janeiro de 2016

ADENTRO




          Rectângulo de sombra tingindo o betuminoso em linha recta, perfeita pela estrada, começando pelo fim, para lá do veículo imóvel. Outra sombra a somar, largado cordel da pessoa lenta, ainda assim animada, por vida a pensar na morte que lhe vinca o rosto em mil perdões. Anda, vem. A cova do olhar a desaparecer, para dar lugar a tudo o antes visto, para dar lugar à incompreensão mesma, em largura de fora para dentro, e a resposta a fraquejar pelos pulsos automáticos que lhe pregam a tábua do corpo rés este chão momentâneo. Entre o braço e o corpo, em cada lado os contamos ainda, muletas axilares a ampliar o tempo no espaço a atravessar; um dos lados ainda com espaço para a cunha, de saco tosco em pano, se cravar até ao ombro em alça. Casaco de fato sem cor e o paletó a condizer, fazendo mais sombra ao vestígio do peito. A boca, outro poço perto dos olhos, automutilação, águas paradas onde se afoga a palavra nunca dita. Calças até baixo numa perna sapato sem atacadores, finíssima espessura de pele polvorenta antes da pele mesma o ser. Na outra perna, o tecido a separar-se em ângulo de palmo a partir do joelho, a pôr à mostra um branco recente de membro engessado; todos os olhos à volta para aqui vão cair. O contraste da vida, gravado junto da mola do gatilho; o pouco tempo que falsamente nos parece pertencer, em silêncio, antes do disparo da arma. Paz podre, esmurrada de encontro a uma parede; mira técnica (fim de emissão) esventrada daí para a frente, pela imagem do louco a olhar para depois de ti, correndo desaurido, a equilibrar louça de inox (pilhas de pratos) martelada pelo abuso, pelas duas mãos erguidas até ao esgar mais olhos que boca. Olhos corrompidos pelo fumo do cigarro cravado entredentes. Todo motivo nas suas costas desfocado à sua passagem. Tudo que fica.

          À boca cheia, o céu vomita nuvens. Inquietas nuvens, a contorcerem-se na forma soprada ao seu ouvido pelo vento, encardidas pelo interior do tempo indisposto. A conversa fiada por bico de pássaro reduzido ao ar, na enorme árvore em frente. O topo rotativo das chaminés metálicas: levados a vento, atirando de volta a luz que os atinge de frente. O autocarro travando a fundo na rua perto sem se ver. A porta de prédio que se fecha com mão de ferro. A tosse insistente de mulher. A porta do carro que se bate duas vezes até em si se fechar. O despertador do quarto a tocar para ninguém a lembrar que pode haver lugar onde ir. Sombras próprias e as outras a se espevitarem na superfície da tarde, quando é por um instante que o sol dobra o tamanho da luz que por ali fora deita. Nuvens sujas. Motores que aceleram longe dos olhos. O relógio de parede na cozinha, acertando o compasso do absurdo mais tique menos tique está Khatia Buniatishvili sentada ao piano lá para os fundos na sala, onde mal a ouço. Sei, sei que deverá haver palmas por ela no final assim que tudo com ela se cale de uma vez. Atento, não vá isso assim escapar. A tempo, as crianças gritam por entre os espaços da imaginação levada a mal, para fora tão fora quanto possível até nada haver por dizer. Toca outro relógio, a lembrar-me das minhas calças (esta é a última vez, antes de se esquecer de vez) para que desmarque o dentista até ver. A tosse de quem não estava no quarto deitada na cama sem lugar para onde ir. O som da descarga do autoclismo. O interruptor fazendo-se ouvir, apagando uma luz. Passos no corredor a ficarem pelo caminho, sendo por fim simples pés descalços prontos para saírem à rua. Toca um telefone. Um estore baixado com violência lá fora, barulho partido a entrar-me pela janela adentro.