sexta-feira, 30 de setembro de 2016
sábado, 10 de setembro de 2016
SOBRE O REAL
Quando menos dei por isso, estávamos sentados
os dois num murete de pedra negra, polida, arestas quebradas, no lado de fora
de uma montra a dar para a rua de um lugar qualquer. Te chegaste a mim até não
haver espaço vazio por preencher à custa da nossa roupa, tua perna alçada no
meu colo. Sei que equilibrava um livro passando-o por cima de ti, por cima
dessa perna, a poucas páginas do princípio quase tudo ainda por ler; uma folha
que se manteve de pé, enquanto nos calávamos, o tempo todo sem truques de ilusionismo.
Ocupávamos a mão livre com um cigarro cada, imitávamos aquele fumo: cortina
cerrada no ponto de fogo, mal se afasta um nada desaparecendo para o ar das
coisas mortas. Usavas lenço ao pescoço, estampado de flores, e um vestido de
ganga escura com botões à frente, abotoado até ele. E uns óculos escuros. E um
afro feito da carapinha teu orgulho tua força, nesse fim de corpo como um
embondeiro (resistente aos olhos, vazio e escuro no interior embalando a noite
de todos os tempos). Posto de lado, trocando as voltas ao espelho do teu olhar
escondido, sabia que me olhavas, embevecida, pura; e enquanto o fazias, abrias
um sorriso de peixe agudo. Costuravas minhas feridas com anzóis de seda; me
adormecendo os sentidos, me levando a melhor ao desastre no coral dos teus
dentes à mostra. Assim era o que sabia eu ser, não sabia, é que ia levar todo
este tempo para dizer-to. Porque ali sendo aquela hora, nada via além senão o
rasto de um avião pontual acima de nós, quase a chegar ao chão indo pouco
depois para outro lado. Usava eu camisa aos quadrados pretos e brancos, por
cima disto um colete de cabedal com uma borboleta-caveira (Acheronthia atropos)
cravada no lugar do peito engraçado, eu que nunca vesti nada que desse vontade
de rir. Exposto na montra por trás de nós, um quadro com uma criança desenhada
se agarrando a um cordão umbilical acabando na ponta por ser umas asas de pavão
incolor, enclausurada por painéis de cofragem metálica (sem nesga por onde
pudesse de ali sair), erguidos até à altura final, impossível, do sonho no topo
uma peça de fecho assentando nela uns carris do comboio rápido que nunca passa
por ali; o reflexo desfocado de um prédio de esquina, com as janelas todas
abertas para fora.
quarta-feira, 7 de setembro de 2016
CEGO
Se vê ali; exacto, pontual, rigorosamente
envergando um fato preto sobre camisa branca atada ao pescoço com a gravata na
cor principal do fato, posando naquela posição sem retoques de hábito. Segundo
sei todos os dias, acrescenta ele corpo à pedra do cunhal deste edifício, de
onde sai por porta de homem dele só, a adivinhar o contorno das vozes que por
ele passam, vindas de lá longe a se anunciar, chegando até ele se calando. A
mão direita, a leva presa à caixa negra, que encerra em si o contributo desigual
de quem não sabe outro gesto para amortecer a colisão inevitável dele ao Mundo
dito depressa de trás para a frente. A mão esquerda, calcula o empalme a dar ao
ferro da bengala em branco sendo outro diâmetro de perna sua (material atacado,
por igual, pelo óxido dos dias), que se entrega ao chão como âncora de
superfície. De cara lavada, desfeita à razia dessa pele
solidária até ao osso, contrastando com o bujardado encardido nas suas costas
encenado.
Absorto, pétreo, recua a um tempo de olhos
abertos, se encontrando espojado na calçada a preto e branco de uma rua batida
em tempo passado; vestindo claro pensando negro, barba por fazer de alguns
dias, envergando a farda da função violenta, apagada à força da sua memória até
ver. Um chapéu de palha protegendo o coração do sol; mãos entrelaçadas na
posição da fivela nada segurando ao corpo, àquela altura tão despido de
vontade, ainda que soubesse dizer a linguagem das arestas.
Calou.
O olhar lhe fugiu para a verdade do céu, o
levando a odiá-lo pela imprecisão; estrangulou à mão toda a imagem de si,
sobreposta ali, com o fio esticado dos eléctricos e telefones que tocavam seu
plano de ver. Sua cabeça, repousada num pano negro, estendido naquela rua de
encontro à parede – santuário inventado ou simples ordem dada às coisas sendo
suas:
Um coto de vela num castiçal em casquinha; um
bebé boneco com a cabeça maior que o corpo; um frasco de verniz para as unhas;
uma cigarreira metálica com nome gravado; a fotografia tipo passe de uma velha
embrulhada num xaile negro, equilibrando o centro de força, ladeada de cartas
por jogar (um baralho Galego, com porretes desenhados na vez de paus); frasco
de perfume barato para mulher; umas quantas fotografias de pin-ups a seu tempo demasiado vestidas de antigamente; dois aparos,
repousando inclinados num tinteiro sem tinta (um com a ponta suja da última
palavra lavrada; o outro incólume, apagando de memória o que poderia ter sido
dito).
Não há negócio fechado na transição abrupta;
levo à cena um troço de parede, um nada de luz aí actuante, vinda do lado onde
nasce a acabar em escuro no outro lado, pelo caminho assentando olhar na tomada
de energia com ligação à terra, à altura confortável para o toque de mão. É dia ou noite das duas, uma, já se sabe; o
momento em que dormes dentro de um piano sem teclas, ao qual lhe seguro a tampa
ao olhar de quantos te querem ver acordado.
segunda-feira, 5 de setembro de 2016
A UM DIA DE VIAGEM
Antebraço,
antes que fosse mão a deitar abaixo a imagem de um pensamento. Sentir o pulso; ir
pouco acima pela margem da folha, intentando transgredir o bloqueio (camisa-de-forças)
de um exército de horas armado até aos dentes; ponteiros afiados na inacção
deste ser vivente e só porque assim é.
Carros
a passar, apaziguando a sobranceria do coração a bater fora da sua água estagnada.
«Era
uma pouca-vergonha!» e era. Um só som vindo deste par de velhas, caminhando
lado a lado, com os víveres à conta para esse único dia de distância pela mão. Param
justamente ao meio do chão sossegado da rotunda sem movimento. Sobem o passeio
sem cuidado, a conversa dobrada nos joelhos, em artrose de sílabas.
Da
esquina além, cumprindo a aparição diária, vem o príncipe caído de um Outono que
ainda não entendo; besta de nervos cansada com ele, pela trela, se segue cão
mutilado pelo que se não sabe – e lhe levou uma perna ainda assim. Par-perfeito
disparate aos olhos, amores-imperfeitos de quem connosco se cruza. E nada tenho
que ver com isto.
Outro
tempo de ter passado, pelo corredor da rua, pai e filha pouco se demorando a
vir do parque, balouçando e escorregando em afectos silenciosos. Traindo a
desgraça em pessoa; negando o farelo domesticado, atirado às suas bocas pelo
senhor buliço, a quem nada devem senão sangue quente.
Avião
riscando a folha de passagem, esta frase terminando em asa de pássaro como deve
ser. Fim animado, melódico, trágico, a mudar o curso do vento.
«Até
amanhã!» ainda as velhas. Rasurar e não a folha, ajudá-las a atravessar a
estrada sem faltar à palavra. E mais ninguém por perto.
Era
de lençóis enrugados na parede a pintura, demão que levava certa desde a
primeira letra. Homem que não desiste de fazer mal à primeira, afastando as
dobras de sombra destes socalcos em linho tecido para enganar, investindo uma e
outra vez no pano de parede por trás. Não é nada que não saiba já, mas tem de
lá chegar sozinho; assim mesmo se repetindo na razão inversa.
Antebraço,
antes que fosse mão a deitar abaixo gralha palavra de penas e absurdos; o
esqueleto vincando a Morte ao canto, de braços abertos para o rosto escondido
na fenda provocada pelo motivo tectónico, afastando quanta argila modificada
pela labareda industrial.
«Nunca
mais» pensa uma, para si. Esvoaçando pelo interior da habitação, acima dos
veios da madeira pisada por pé descalço.
Escurece
a folha, quase já não vejo o que ali se planta com tinta fértil; os olhos
levantam para apontar o terreno a onde não voltam, cães desnorteados pela
última luz do dia. Tocam sinos distantes, ainda assim com a força necessária a
serem escritos.
Anjos
vestidos, inevitáveis, com as plumas encardidas de nuvens perfeitas apenas no
papel. Cadeira vazia encostada à árvore, costas com costas. Motores filhos da
puta a não largarem o peito, pesando mais, enquanto se afinam de vozes.
Portas
que batem, abrem para dentro. VÃO PARA DENTRO!
A
fala das árvores é menos um engano, o sol vai embora. O sinal de STOP ali à
frente, ainda lá ninguém se viu parar. Distraído, anestesiado por tempo a mais,
pouco dou pelos vermes a se libertarem do escolho terrestre, incandescentes, a
tomarem caminho passando minhas pernas, tendo-as por carreiro seguro. Não irei
daqui mais depressa por isto.
Lâmpadas
que não servem de muito ao que se diz por aqui, mesmo assim tomando lugar à
ordem descrita, falseando arestas no lugar das mobílias; livros abertos pelo
chão, pés sobre almofadas, um rosto olhando outro que dorme, descaído entre
espaldar da cadeira e tampo da mesa. O buraco negro da lareira, fumando bem o
ar à rua lá fora, sendo impossível dizer se esta é Poesia decoradora de
interiores ou vadia filha da mãe.
Onde
está osso se diz princípio, carne haverá que responder à espessura a dar à
matéria vidente. Imagens, as que sejam. Relógios que não contam, bugigangas sem
o vidraço retentor das lágrimas suadas pela mente aberta à força de motivo.
Rangem
cordas aos estendais onde se estende a nudez antes do Tempo. Nuvens outra vez,
fumeiro dos Deuses. Atiro à rua a única palavra capaz de soar razoavelmente. Acompanho
o dia desaparecendo, me retiro até mais. Voltar, a partir de aqui será outra
coisa; talvez um assobio entrecortando a noite por chegar, talvez uma formiga
seguindo a junta de dilatação na laje cortada em quadrados iguais. Não sei
ainda se quero ir, os pássaros a não ter nada mais para dizer. Lembro assim. O que
virá: irei esquecê-lo quando o apontar.
Arde
o motivo desenhado ao centro, és a única permanência material aqui reposta. E então,
olhos desviados não para mim, passam por cima do meu ombro, encontrando a
posição impossível do observador. A mobília se desvanece, em fuga para as
margens onde pousar os pés. Franjas enegrecidas pelo carvão do gesto. À frente
da mesa onde está um candeeiro apagado um livro esquecido, apagado de título e
autor na lombada, onde a palavra pode ser uma qualquer. Onde pousas a mão e não
é toda por igual, um indicador esticado e os nós dos restantes sobre a mesa, a
descer até ser chão; uma toalha de crochet
com motivos pardos a condizer com o teu robe imundo, continuando as dobras que
faltam a teu corpo – usas meias, eram brancas se pode ver ainda um ponto aqui e
ali. Continuas a olhar para nada, sem a pressa dos aflitos, me dás toda a linha
que preciso para a frase chegar a fazer algum sentido. O fogo se aguenta, já
não somos só nós para aqui largados a um canto. Se deixa ver um anjo com sexo –
usa vestido transparente, umas asas de bom corte –, é Mulher morta de sono.
Um
cavalo branco passa por mim, pela direita da rua onde estou sentado num degrau,
montado por um jóquei imberbe, etnia instável, vestido a rigor; aparição tão
descabida quanto necessária à quebra linear da coisa pensada. Cascos declamam a
compactação da erva alta, pontuada pela roupagem seca caída das árvores. Passa e
foi, curvando a esquina para lá dos olhos. A conversa mudou de tom; o vento e
as folhas que resistem ao seu braço forte…FALAM AO MESMO TEMPO!
Só
assim se deixa ver, o anjo sonolento. O estuque na parede separa a atenção que
dou ao todo, reclama uma linha meio carregada sugerindo outros rostos.
O
cavalo vem de volta, resfolegando a impaciência do jóquei, um nada de tempo por
mim passando, dando corpo ao outro lado da sua presença, tempo que tenho para
ver um R de Rasura marcado a ferro quente no músculo da sua coxa traseira. E disto
deve ser tudo por hoje, nada adivinho, deixando aqui algum espaço para o que
vem lá.
Rostos
engalfinhados na mancha imprecisa capturada pelos olhos, ou dois corpos
sobrepostos em nuvem se diluindo a caminho do céu trabalhado no tecto. Metade de
um espelho colocado no lugar de se ver, o insuficiente para que me veja eu aí. Continua
o fogo, arde o ar à sala por dentro. Não peço mais.
A
ferramenta da Morte partida a meio, fruto da sua própria força desgovernada – a
própria Morte, jaz de encontro a um cadeirão antigo roído pela traça do tempo, cabisbaixa,
olhar caído ao chão. Que rosto desigual.
A
frase tentada na curvatura da fêmea, calcificada num gesto diferente em cada
alçado de céu. Olhares atravessando cada espaço de silêncio, conseguido à custa
de sombras e sílabas colocadas à distância segura de um fogo não visto num
canto em que se tropeça. Teu finíssimo vestido de pouco mistério, a desfiar-se
na lâmina do meu pulso. Jaula de argila geométrica, ao toque cada tijolo
reproduzindo a Ópera perfeita e o modo de enclausurar corpo e roupagem no
centro da divisão sem tecto, por onde nos atiram flores e rezas de chuva por
querer. Nosso pássaro fiel, negando-se à fuga natural, batendo asa, soando a curto
consolo. Um sol a ir para lá deste dia, recolhendo no braseiro de seus braços
um último pensamento claro.
Com
um pé cravado entre duas folhas de porta entreabertas um pouco, senhora Noite
se anuncia a si própria. Já não é de si que se fala, a abertura na parede se
torna vão translúcido; é um outro que mede a braço o espaço de porta a porta,
em ombros o absurdo de ser personagem insignificante, mero obstáculo a lentificar
quem venha pelo mesmo corredor. Até ele umas escadas; por trás de cada porta a
espessura mínima do conjunto de vultos rosto inominável, um por cada idade que
se levou a não responder à pergunta difícil que cada manhã nos coloca de igual
todo dia.
Sobra
um passo ao vento quando sopras desaforo, levantando a poalha à minha frente no
caminho; te desvias depois, não sabes para onde. Nunca te custou mais nunca
chegar a lado algum.
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