sábado, 10 de setembro de 2016

SOBRE O REAL







Quando menos dei por isso, estávamos sentados os dois num murete de pedra negra, polida, arestas quebradas, no lado de fora de uma montra a dar para a rua de um lugar qualquer. Te chegaste a mim até não haver espaço vazio por preencher à custa da nossa roupa, tua perna alçada no meu colo. Sei que equilibrava um livro passando-o por cima de ti, por cima dessa perna, a poucas páginas do princípio quase tudo ainda por ler; uma folha que se manteve de pé, enquanto nos calávamos, o tempo todo sem truques de ilusionismo. Ocupávamos a mão livre com um cigarro cada, imitávamos aquele fumo: cortina cerrada no ponto de fogo, mal se afasta um nada desaparecendo para o ar das coisas mortas. Usavas lenço ao pescoço, estampado de flores, e um vestido de ganga escura com botões à frente, abotoado até ele. E uns óculos escuros. E um afro feito da carapinha teu orgulho tua força, nesse fim de corpo como um embondeiro (resistente aos olhos, vazio e escuro no interior embalando a noite de todos os tempos). Posto de lado, trocando as voltas ao espelho do teu olhar escondido, sabia que me olhavas, embevecida, pura; e enquanto o fazias, abrias um sorriso de peixe agudo. Costuravas minhas feridas com anzóis de seda; me adormecendo os sentidos, me levando a melhor ao desastre no coral dos teus dentes à mostra. Assim era o que sabia eu ser, não sabia, é que ia levar todo este tempo para dizer-to. Porque ali sendo aquela hora, nada via além senão o rasto de um avião pontual acima de nós, quase a chegar ao chão indo pouco depois para outro lado. Usava eu camisa aos quadrados pretos e brancos, por cima disto um colete de cabedal com uma borboleta-caveira (Acheronthia atropos) cravada no lugar do peito engraçado, eu que nunca vesti nada que desse vontade de rir. Exposto na montra por trás de nós, um quadro com uma criança desenhada se agarrando a um cordão umbilical acabando na ponta por ser umas asas de pavão incolor, enclausurada por painéis de cofragem metálica (sem nesga por onde pudesse de ali sair), erguidos até à altura final, impossível, do sonho no topo uma peça de fecho assentando nela uns carris do comboio rápido que nunca passa por ali; o reflexo desfocado de um prédio de esquina, com as janelas todas abertas para fora.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

CEGO






Se vê ali; exacto, pontual, rigorosamente envergando um fato preto sobre camisa branca atada ao pescoço com a gravata na cor principal do fato, posando naquela posição sem retoques de hábito. Segundo sei todos os dias, acrescenta ele corpo à pedra do cunhal deste edifício, de onde sai por porta de homem dele só, a adivinhar o contorno das vozes que por ele passam, vindas de lá longe a se anunciar, chegando até ele se calando. A mão direita, a leva presa à caixa negra, que encerra em si o contributo desigual de quem não sabe outro gesto para amortecer a colisão inevitável dele ao Mundo dito depressa de trás para a frente. A mão esquerda, calcula o empalme a dar ao ferro da bengala em branco sendo outro diâmetro de perna sua (material atacado, por igual, pelo óxido dos dias), que se entrega ao chão como âncora de superfície. De cara lavada, desfeita à razia dessa pele solidária até ao osso, contrastando com o bujardado encardido nas suas costas encenado.

Absorto, pétreo, recua a um tempo de olhos abertos, se encontrando espojado na calçada a preto e branco de uma rua batida em tempo passado; vestindo claro pensando negro, barba por fazer de alguns dias, envergando a farda da função violenta, apagada à força da sua memória até ver. Um chapéu de palha protegendo o coração do sol; mãos entrelaçadas na posição da fivela nada segurando ao corpo, àquela altura tão despido de vontade, ainda que soubesse dizer a linguagem das arestas.

Calou.

O olhar lhe fugiu para a verdade do céu, o levando a odiá-lo pela imprecisão; estrangulou à mão toda a imagem de si, sobreposta ali, com o fio esticado dos eléctricos e telefones que tocavam seu plano de ver. Sua cabeça, repousada num pano negro, estendido naquela rua de encontro à parede – santuário inventado ou simples ordem dada às coisas sendo suas:
Um coto de vela num castiçal em casquinha; um bebé boneco com a cabeça maior que o corpo; um frasco de verniz para as unhas; uma cigarreira metálica com nome gravado; a fotografia tipo passe de uma velha embrulhada num xaile negro, equilibrando o centro de força, ladeada de cartas por jogar (um baralho Galego, com porretes desenhados na vez de paus); frasco de perfume barato para mulher; umas quantas fotografias de pin-ups a seu tempo demasiado vestidas de antigamente; dois aparos, repousando inclinados num tinteiro sem tinta (um com a ponta suja da última palavra lavrada; o outro incólume, apagando de memória o que poderia ter sido dito).

Não há negócio fechado na transição abrupta; levo à cena um troço de parede, um nada de luz aí actuante, vinda do lado onde nasce a acabar em escuro no outro lado, pelo caminho assentando olhar na tomada de energia com ligação à terra, à altura confortável para o toque de mão. É dia ou noite das duas, uma, já se sabe; o momento em que dormes dentro de um piano sem teclas, ao qual lhe seguro a tampa ao olhar de quantos te querem ver acordado.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A UM DIA DE VIAGEM







Antebraço, antes que fosse mão a deitar abaixo a imagem de um pensamento. Sentir o pulso; ir pouco acima pela margem da folha, intentando transgredir o bloqueio (camisa-de-forças) de um exército de horas armado até aos dentes; ponteiros afiados na inacção deste ser vivente e só porque assim é.
 Carros a passar, apaziguando a sobranceria do coração a bater fora da sua água estagnada.
 «Era uma pouca-vergonha!» e era. Um só som vindo deste par de velhas, caminhando lado a lado, com os víveres à conta para esse único dia de distância pela mão. Param justamente ao meio do chão sossegado da rotunda sem movimento. Sobem o passeio sem cuidado, a conversa dobrada nos joelhos, em artrose de sílabas.
 Da esquina além, cumprindo a aparição diária, vem o príncipe caído de um Outono que ainda não entendo; besta de nervos cansada com ele, pela trela, se segue cão mutilado pelo que se não sabe – e lhe levou uma perna ainda assim. Par-perfeito disparate aos olhos, amores-imperfeitos de quem connosco se cruza. E nada tenho que ver com isto.
 Outro tempo de ter passado, pelo corredor da rua, pai e filha pouco se demorando a vir do parque, balouçando e escorregando em afectos silenciosos. Traindo a desgraça em pessoa; negando o farelo domesticado, atirado às suas bocas pelo senhor buliço, a quem nada devem senão sangue quente.
 Avião riscando a folha de passagem, esta frase terminando em asa de pássaro como deve ser. Fim animado, melódico, trágico, a mudar o curso do vento.
 «Até amanhã!» ainda as velhas. Rasurar e não a folha, ajudá-las a atravessar a estrada sem faltar à palavra. E mais ninguém por perto.
 Era de lençóis enrugados na parede a pintura, demão que levava certa desde a primeira letra. Homem que não desiste de fazer mal à primeira, afastando as dobras de sombra destes socalcos em linho tecido para enganar, investindo uma e outra vez no pano de parede por trás. Não é nada que não saiba já, mas tem de lá chegar sozinho; assim mesmo se repetindo na razão inversa.
 Antebraço, antes que fosse mão a deitar abaixo gralha palavra de penas e absurdos; o esqueleto vincando a Morte ao canto, de braços abertos para o rosto escondido na fenda provocada pelo motivo tectónico, afastando quanta argila modificada pela labareda industrial.
 «Nunca mais» pensa uma, para si. Esvoaçando pelo interior da habitação, acima dos veios da madeira pisada por pé descalço.
 Escurece a folha, quase já não vejo o que ali se planta com tinta fértil; os olhos levantam para apontar o terreno a onde não voltam, cães desnorteados pela última luz do dia. Tocam sinos distantes, ainda assim com a força necessária a serem escritos.
 Anjos vestidos, inevitáveis, com as plumas encardidas de nuvens perfeitas apenas no papel. Cadeira vazia encostada à árvore, costas com costas. Motores filhos da puta a não largarem o peito, pesando mais, enquanto se afinam de vozes.

Portas que batem, abrem para dentro. VÃO PARA DENTRO!

A fala das árvores é menos um engano, o sol vai embora. O sinal de STOP ali à frente, ainda lá ninguém se viu parar. Distraído, anestesiado por tempo a mais, pouco dou pelos vermes a se libertarem do escolho terrestre, incandescentes, a tomarem caminho passando minhas pernas, tendo-as por carreiro seguro. Não irei daqui mais depressa por isto.
 Lâmpadas que não servem de muito ao que se diz por aqui, mesmo assim tomando lugar à ordem descrita, falseando arestas no lugar das mobílias; livros abertos pelo chão, pés sobre almofadas, um rosto olhando outro que dorme, descaído entre espaldar da cadeira e tampo da mesa. O buraco negro da lareira, fumando bem o ar à rua lá fora, sendo impossível dizer se esta é Poesia decoradora de interiores ou vadia filha da mãe.
 Onde está osso se diz princípio, carne haverá que responder à espessura a dar à matéria vidente. Imagens, as que sejam. Relógios que não contam, bugigangas sem o vidraço retentor das lágrimas suadas pela mente aberta à força de motivo.
 Rangem cordas aos estendais onde se estende a nudez antes do Tempo. Nuvens outra vez, fumeiro dos Deuses. Atiro à rua a única palavra capaz de soar razoavelmente. Acompanho o dia desaparecendo, me retiro até mais. Voltar, a partir de aqui será outra coisa; talvez um assobio entrecortando a noite por chegar, talvez uma formiga seguindo a junta de dilatação na laje cortada em quadrados iguais. Não sei ainda se quero ir, os pássaros a não ter nada mais para dizer. Lembro assim. O que virá: irei esquecê-lo quando o apontar.
 Arde o motivo desenhado ao centro, és a única permanência material aqui reposta. E então, olhos desviados não para mim, passam por cima do meu ombro, encontrando a posição impossível do observador. A mobília se desvanece, em fuga para as margens onde pousar os pés. Franjas enegrecidas pelo carvão do gesto. À frente da mesa onde está um candeeiro apagado um livro esquecido, apagado de título e autor na lombada, onde a palavra pode ser uma qualquer. Onde pousas a mão e não é toda por igual, um indicador esticado e os nós dos restantes sobre a mesa, a descer até ser chão; uma toalha de crochet com motivos pardos a condizer com o teu robe imundo, continuando as dobras que faltam a teu corpo – usas meias, eram brancas se pode ver ainda um ponto aqui e ali. Continuas a olhar para nada, sem a pressa dos aflitos, me dás toda a linha que preciso para a frase chegar a fazer algum sentido. O fogo se aguenta, já não somos só nós para aqui largados a um canto. Se deixa ver um anjo com sexo – usa vestido transparente, umas asas de bom corte –, é Mulher morta de sono.

Um cavalo branco passa por mim, pela direita da rua onde estou sentado num degrau, montado por um jóquei imberbe, etnia instável, vestido a rigor; aparição tão descabida quanto necessária à quebra linear da coisa pensada. Cascos declamam a compactação da erva alta, pontuada pela roupagem seca caída das árvores. Passa e foi, curvando a esquina para lá dos olhos. A conversa mudou de tom; o vento e as folhas que resistem ao seu braço forte…FALAM AO MESMO TEMPO!
 Só assim se deixa ver, o anjo sonolento. O estuque na parede separa a atenção que dou ao todo, reclama uma linha meio carregada sugerindo outros rostos.
 O cavalo vem de volta, resfolegando a impaciência do jóquei, um nada de tempo por mim passando, dando corpo ao outro lado da sua presença, tempo que tenho para ver um R de Rasura marcado a ferro quente no músculo da sua coxa traseira. E disto deve ser tudo por hoje, nada adivinho, deixando aqui algum espaço para o que vem lá.
 Rostos engalfinhados na mancha imprecisa capturada pelos olhos, ou dois corpos sobrepostos em nuvem se diluindo a caminho do céu trabalhado no tecto. Metade de um espelho colocado no lugar de se ver, o insuficiente para que me veja eu aí. Continua o fogo, arde o ar à sala por dentro. Não peço mais.
 A ferramenta da Morte partida a meio, fruto da sua própria força desgovernada – a própria Morte, jaz de encontro a um cadeirão antigo roído pela traça do tempo, cabisbaixa, olhar caído ao chão. Que rosto desigual.
 A frase tentada na curvatura da fêmea, calcificada num gesto diferente em cada alçado de céu. Olhares atravessando cada espaço de silêncio, conseguido à custa de sombras e sílabas colocadas à distância segura de um fogo não visto num canto em que se tropeça. Teu finíssimo vestido de pouco mistério, a desfiar-se na lâmina do meu pulso. Jaula de argila geométrica, ao toque cada tijolo reproduzindo a Ópera perfeita e o modo de enclausurar corpo e roupagem no centro da divisão sem tecto, por onde nos atiram flores e rezas de chuva por querer. Nosso pássaro fiel, negando-se à fuga natural, batendo asa, soando a curto consolo. Um sol a ir para lá deste dia, recolhendo no braseiro de seus braços um último pensamento claro.
 Com um pé cravado entre duas folhas de porta entreabertas um pouco, senhora Noite se anuncia a si própria. Já não é de si que se fala, a abertura na parede se torna vão translúcido; é um outro que mede a braço o espaço de porta a porta, em ombros o absurdo de ser personagem insignificante, mero obstáculo a lentificar quem venha pelo mesmo corredor. Até ele umas escadas; por trás de cada porta a espessura mínima do conjunto de vultos rosto inominável, um por cada idade que se levou a não responder à pergunta difícil que cada manhã nos coloca de igual todo dia.

Sobra um passo ao vento quando sopras desaforo, levantando a poalha à minha frente no caminho; te desvias depois, não sabes para onde. Nunca te custou mais nunca chegar a lado algum.