domingo, 17 de setembro de 2017

GATEAR A INSÓNIA





Ao relatar o vento, se esqueceu da sua bandeira. Mistura as cores ao ar, sobre a régua do rosto. Inflecte, incisivo, na espessura primária – material cortado – da alma para aqui assim. O roceiro dos hábitos assume o trono do peito, como o ponto zero da loucura sem programa. Crianças circundam o fosso da tarde, levando até aí fiapos de sol à cor da hora que é esta, emaranhadas em nervoso miudinho. Permeáveis ao invisível, sabem músicas de ouvido e as cantam baixinho. Para lá delas, vem a mais uma batida cardíaca, incerta percussão. Ir daqui de vez, sim, toca a avisar. Voz de feltro, desacompanhada da tragédia singular. Luta entre si um, para um, à escala possível para onde são atiradas as serpentinas de um Carnaval repentino. Inimigo de qualquer amigo, o poeta se dilui a frio e fome de maneiras às tantas. Ossos apertados ao encontro brusco de um mesmo material que é a palavra. A chave, imperfeita, roda uma só vez e é para abrir de aqui. Voltada ao mesmo, se abre no mesmo sentido, bate a folha e assim fica. A caução de se ser visitado, mais cedo que tarde, por quem procura, como alguém, a solução doentia do sono para sempre e a carne para agora. Se introduz, por nada ainda explicado, sensivelmente mecânico, no que há-de vir de facto e pano para o corpo do texto. Ainda agora é nada, e se preocupa já com tão pouco. O comprimento da broca é discussão sem nexo em se pôr na boca de um desdentado. Para lá da carne, se crava a atenção ao pormenor do espaço por ser consentido. Desconseguir dizer a simplicidade de um campo aberto, o olhar passando à clandestinidade difícil do pensamento, se abrindo em duas a verdade nas juntas do chão. Lancis. Ervas aromáticas. Muretes de lama até certa altura. O sol, cobarde, vira as costas ao entender que, iluminados, certos planos dispostos a nada, e ninguém, dizem menos aos olhos que a escuridão total. Tanto horizonte para a tão pouca serapilheira das mãos se cruzando em cima em baixo, iludindo a morte com o boneco de si mais que um, dispostos a tudo, sobretudo a lançar mão aos dados, abrindo no corpo chagas a propósito, para aí dissimular a superstição, passajando por fim a pele com a destreza do cínico. Ponto de cruz. Ponto traço ponto. Ponto de referência. Ponto de orvalho. Ponto final. Neste ponto. Ponto de vista. Ponto de discórdia. Ponto. Pesponto. Pôr e dispor. Cruzar os braços, sobre a frase decisiva. Não dizer nada, ou mais nada. Pensar um nada. Dizer tudo. Ponta e mola. Levar a mão mais rápida até ao outro, ferir de vida o peito com o lume do metal gravado na forma tentada, esta geométrica lacuna de entre os deuses sem tema e espírito santo, levados dos ventos, dizendo o céu às coisas de se tocar. Vim até aqui falando, falando, virando ali atrás, metendo pelo beco saindo à praça, descendo degrau, chegando ao rio. De aqui não sei voltar. Passa à frente. E verás que nada disto sofre assim tanto de enformação. É o número que sai uma vez, que se risca da folha dobrada em muitas. O que sei, quase nada, mais não é que a cabeça de um fósforo se consumindo rápido demais num só, o mesmo de sempre, pensamento: MORRER PARA MAIS VIVER.

Se desocupa a casa de palavras compreendidas, se toca a dedo o pó da estrutura que nos divide do céu, se dá uns quantos passos em qualquer direcção até não haver altura para ser um em pé, se pica o palato com a treva, se argila o olhar com a vida a correr à frente do outro em si. Risca um dizer se necessário, vai para os cantos sentir a esquadria ao absurdo, cospe a prótese que nada morde (pechisbeque de rilhar matéria processada), conta os espaços marcados a giz, antes do diz que disse solar, desse suão se anunciando para lá das esquinas vincadas. Se é quadrado, marca os lados, se é triângulo, crava seu ângulo na garganta e tenta dizer ao mesmo tempo qualquer coisa que o ocupe, enquanto perfuras teu véu de ligação, com as matemáticas impossíveis de se fazer de conta. Volta só em caso de ser mesmo preciso. Não digas ao que vens, não digas nada para além do estritamente necessário à manutenção deste desconforto retornado. Esta é a prosa dos malditos e ainda assim nunca explicação para coisa nenhuma. Rasga o invólucro, tira de aí a gaze perfeita, branca demais, algodão dos aflitos, chega-lhe o vinagre que tiveres à mão, dobra um canudo e tampona os ouvidos em estado miserável, calcinados pelas primeiras chuvas das convenções. Com a maceta e o ponteiro, descobre o que é de ir abaixo. Com a tua certeza nada se faça, senão deitá-la para dentro de um saco sem fundo. Há pois um céu desfeito em aparas, combustível para pássaros desnorteados. Tatua a rosa-dos-ventos onde a vejas, sopra decidido para o velame do veículo que utilizes. Terra, mar ao ar. Esquecer o que é círculo, deduzir a natureza pela coerência dos materiais perecíveis. Trabalhar à jorna, o indecifrável. Acompanhar a matéria o mais desumanamente possível. Chamar de volta os animais de corte. Levantar o cerco, que não mora já ali ninguém que te interesse. Monomaníacos, são os únicos que temos como conhecidos. De dentro vem uma espécie, quantidade finita, de objectos espontaneamente deformados, pau para toda a obra, firmes no seu segmento sem caminho. Ao deixar-lhes nada onde assentem, sou eu que vou primeiro. Rejeito a imobilidade da coisa com raízes. Gasto este mar e outro na erosão forçada do teu ventre, esta boa razão para desejar nunca ter vindo aqui parar. A distância devia ser ensinada com umas quantas pedras à mão. Estamos mais perto de nunca chegarmos a vias de facto a nos conhecer. Antes isso que uma perna partida.


Jogar o que falta perder. Gatear o tardoz da insónia com fios de cobre, e matar a noite ao tempo, voltando atrás com a palavra dada por instinto. Menos é sempre menos, agora. Ou nunca. É.