sábado, 28 de janeiro de 2017

ROMA E CASELAS, EM UMA TARDE






Vinte e um dias já passado, de um ano a começar em Lisboa. Ir à zona do Saldanha, vindo de Entrecampos. Ver a praça transformada por máquinas que se foram já, com olhos que não caem faz tempo aqui. Me ponho à frente da paragem do autocarro setecentos e vinte e sete. Leio o aviso.

Lembro já não haver aqui quem faça adeus da berma, aos que passam. Vou daqui, sem a mão daquele que a levantou vezes tantas as que não sabia, admirando os rostos, os fazendo virar para fora da estrada.

Leio o aviso. Mudam-se as vontades. A estaca cravada no zero do caminho, teve de ser levantada à pressa do plano alterado à última – é o que dá começar textos sobre lugares pensados conhecidos, enfermos da mudança súbita pelas vinte e quatro horas exactas desde ontem: suprimiram esta paragem, devido às obras na metrópole. E foi só o tempo de ir por aqui abaixo à do Marquês de Pombal, e virar na rua Braamcamp. E apanhar este autocarro. Coloco este ponto, levanto os olhos e vamos devagar mas já depois do Largo do Rato. Uma pintura de setas a mudar marés, fazendo as vezes de uma cabeça levantada pelas mãos do seu par. De olhos encerrados atrás de um tom. Em azuis pretos e brancos, na empena de um edifício à vista. Vai a Assembleia da República à minha direita, o sol de frente. O restaurante “Pátio das Cantigas”, ficou para trás à esquerda. Paro no semáforo vermelho. Paramos todos.

Andaimes montam a atenção dada às alturas da cidade. Passamos à porta cento e quarenta e quatro, e vamos para Santos. Um casal chegado um ao outro, a não dar espaço para o frio da rua se aconchegar. E foda-se lá ao raio da rua toda ela, em paralelepípedos aos estremeções, me negando chão ao aparo. O sol, bate ainda nas janelas cegas dos últimos andares.

Interrompem-me o pensar e as distracções, telefonando-me. Estão à minha espera, já lá vou.

Começo a me sentir desconfortável com o muito calor no interior deste autocarro, não me caindo bem nas roupas de muito Inverno que trago comigo. Só um momento, que vou tirar o casaco. Volto, e venho a suar de impaciência, esta via projectada à rua dos Movimentos Forçados. Que até o cabrão do besouro dizendo porta vai, me abre o caralho dos nervos. «Ufa» diz alguém, com a razão dela, que leva, a custo, um carrinho de bebé em carrego de braços para o meio da rua. Acelera, trava. Um sinal fosforescente, aponta o acesso a peões por entre os buracos deixados para o fim da semana, aqui em Alcântara.
Falam pessoas que não ouço, pelas paragens. TIC TUC TIC TUC TIC TUC, o sinal sonoro das mudanças de direcção. Corta-se a Avenida de Ceuta. O sol só tem já olhos para a ponte para a Outra Margem; lá ao fundo diz-se horizonte. Um olho maior que o meu desenha-se desconfiado a atravessar a rua, cheio de perguntas até chegar a mim. Linhas do eléctrico. Debaixo da ponte. Estremeções. Espaço cliente. Um homem de casaco vermelho e mãos nos bolsos, na berma do passeio. Pára. Abre a porta. O motorista, deixa algum espaço e tempo para a senhora de muletas que acaba de entrar e mais precisa. Vai o sol nos lugares da frente. A moça trajada de negro, levando uma refeição pronta nas mãos, toca para sair. Sai, em frente ao Hospital de Egas Moniz. Cabine. Cristo, suspenso da verga de um vão a comunicar com uma vila operária. Semáforo intermitente, a seta manda seguir. Fachadas reflectidas nos vidros do outro lado a si projectadas, passando a ser também de aí. Outra senhora, com mais anos, vem de muletas. Filas intermináveis, ocupam toda a frente da entrada pelos estrangeiros nos Pastéis de Belém. «Já comi melhor, é mais a fama», oblitera algum deste papel o motorista. Chego perto do lugar onde me esperam. Interrompo, até ver. Senão é ponto mesmo, e pára aqui.

Vou de volta, quando a noite é já outro habitante qualquer da cidade. Na paragem junto ao cemitério da Ajuda, primeiro só eu e os mortos nas minhas costas, atrás do muro. Faltam cinco minutos, para aparecer o autocarro. Visto um par de calças em bombazine grená, justas à perna, uma camisola de gola alta em lã preta, um casaco impermeável, comprido, preto, com o capuz a cobrir a cabeça; calço os quarenta e dois de uns ténis azuis. As mãos, as levo tapadas com luvas em pele preta. Assoma alguém na esquina além. Senhor de meia-idade, vestido de clássico impecável, chapéu de feltro verde na cabeça, chega-se a onde estou. Nada diz. A rua vai indo vazia, a esta hora. Só carros passam. Retira os óculos do bolso interior do casaco, metendo a mão ao meio do peito para dentro. Poupo-lhe a ida ao mapa do horário, e digo «há um, daqui a cinco minutos»; e ele, retirando os óculos do rosto, devolve educadamente «era isso que eu estava a ver».

No Mosteiro dos Jerónimos, o autocarro se enche de países diferentes. Por inteiro, há um contraste gritante entre o quase silêncio que vestem e a quantidade de bocas que se alimentam de imobilidade, mesmo entre grupos de conhecidos. STOP STOP STOP. Passa uma ambulância, com apenas luzes brancas azuis ligadas, sua sirene calada. Algum tempo vou só de olhar pelo vidro, e nada, nada, nada. O aparo fica sem ter chão outra vez para andar, porque nada há a dizer. Ruas disso. E ruas. E então, uma luz verde dizendo onde ao lugar da farmácia. Uma loja chamada de “Capricho”. Alcântara na volta, e a Sociedade Filarmónica Alunos Esperança. Parados no meio do cruzamento, buzinas se encarniçam: não é nada em menos de nada. Besouro. Portas abrem, fecham. A frente do caminho dizendo presente. Olhos duros, ensonados, lacrimosos, afastados, sem direcção. O autocarro pára onde nunca se espera; o motorista olha pelo retrovisor, nada dizendo. Um nada é suficiente, e já vamos. Infante Santo. Quase Santos, outra vez. Luz amarela, batendo nas fachadas mortas pelo tempo. Tocam à campainha. STOP STOP STOP. A moça abre mais os olhos, quando fala com o que vai à sua frente; quando cala, a rua só vista é sua única distracção e fuga. Calçada Ribeiro Santos, militante antifascista. Nas Escadinhas da Praia, o Kremlin. Avenida 24 de Julho. Mais à frente, um cartaz anunciando um filme onde vinga a palavra SILÊNCIO. Arranjos de costura. E luzes de um Natal que já foi, esquecidas a apagar acender, na montra de uma loja. Cachos de bananas, suspensos à porta de um Lugar. Largo do Rato. Esperanças & Silva, Lda. Apanham táxis. Vão de mãos dadas. Quase chego perto, ao fim da linha. É ponto à vez.

sábado, 14 de janeiro de 2017

ENSOLEIRAMENTO GERAL





Corpo baldio, fundado directamente contra o terreno onde é isolado. Se lê à transparência vegetal, seu cunhal delimitador. Se compatibilizam seus elementos diferentes, os vários traçados no interior de todas as especialidades – vezes há que não servem, palavra ou corpo, então se desenham outros. Enxertados de ferro vivo em osso queimado, apontam nesse corpo outra palavra. Se verifica o andamento dos trabalhos na frente da obra por se erguer e alterar, se realiza o levantamento da altimetria do mundo em volta, se desenham ruas só para ele. Se aldraba a empreitada se por aí resultar lucro se não, se subtrai, subdimensionando a estrutura de si mesmo – enganar os cálculos por pouco. Se escolhe parede ao acaso num lugar, sem projecto, ainda antes de ser levantada, martelando aí uma ideia fixa de ferragens em desalinho, desconseguindo medida igual ao chão a partir de cada uma dessas ancoragens aos ornatos que ficam da pele enrugada.

Corpo só por hoje, objecto mal pendurado, amanhã sonhos fora um nada de esquadria. A suspensão de um certo ritmo iniciado, batendo com os pés outro ritual de andar perdido e agarrado a músicas de máquinas a trabalhar. Todo movimento, ripando o invisível à superfície. Passar palavra, escarificar acentos na lança da grua que tudo ergue acima do entendimento, hifenizar manhã, indo dos meus olhos ao lugar do teu coração. Passar palavra sobre isto, consentir-te o acto servente. Adestrar a tempestade ao corpo. Fragmento herdeiro de um fragmento. Na verdade, o fim – iminente, duradouro no tempo em que estou para aqui mesmo a dizer mais do mesmo, esta ampliação do nada à escala um para um, dado como exemplar.

Massa pobre, insuficiente para revestir esta tosca estrutura à mostra. De tudo um motor, montado em paralelo a um coração a gripar, violando a esperança dócil. Depósitos no fundo a que nunca se chega, no que se esperava de coisa animada pelo verbo plural das mãos operárias, reduzindo os espaços ao vazio de ocupar numa linha de horizonte traçado pela insónia. Forma silenciosa, impaciente. Pisar a lama da fundação das coisas a trazer aqui, descalço, esfaimado, enregelado nos cantos do corpo, espalhando à mão, por cima deste instável, um admirável emaranhado de fios de cobre roubado sabe-se lá onde às obras dos outros.

BOCA SECA, COLUNA HÚMIDA.

És edifício com categoria
De risco. Ao incêndio
Provocado pelos teus
Maus modos, pela forma
Diferente que é a
Fala de nós acesa. Minha boca
Vem em teu socorro
Para o rescaldo, quando
Já nada
Sentimos.

Em carga, resistimos contra
O esforço do horizonte,
Essa solicitação
Mecânica à qual
Garantimos
Estanqueidade total.

Ah, tão fácil escrever FRÁGIL numa das faces, e oferecer a outra a menos de um corpo, e apontar neste à parte a direcção de um muro, as alterações de humor. Sonhos esquartelados, pelo bater da linha azul a dividir a marcação do seu chão de estar. A suspensão de um certo ritmo – bater com a porta, bater o pé. Passar palavra. Começar o quadrado segundo o prisma; repetir as esferas, lançando-as como balas perdidas para o cilindro do esófago. Borrifar para tudo; o sangue dos outros, o meu sangue se já nenhum houver para dar, e se tiver mesmo de assim o ser – esperar, esperar sempre que tal não seja preciso.

Indo eu a caminho de coisa minha, outra ocupação, esta, a de assentar fiadas no ar, em blocos de cimento desaprumados pela contrariedade. E medo. Só isso. A narrativa, por si só, não detecta o verdadeiro problema. Recapitulando: origem, unidade, aceleração igual a menos mundo, e por último, a dispersão ai de mim por todas as outras coisas a acontecer. Noutros tempos, um ponto bastaria para ditar nosso próprio fim. Volta e meia, o que há a trocar de cá dentro lá para fora? O simulacro de Deus, intervalando por entre os vazios a ocupar. O traço da argamassa celeste, trocado pelo volume da mão tornada tensão, violência, precipitação para o espaço que não há a mais; isolando nas suas ilhas, os significados por atribuir.

Variações de cor, tomadas como refeição e engolidas com água. Mudar a direcção aos ventos se necessário; ser tão pássaro como eles, levando presos inertes de cal pela boca que tudo apaga. Voltar ao chão, e fazer a queimada final ao que não tem explicação. O contrário de exterior. Particularmente o tempo, se nenhum. A falta de um número que ponha ordem nisto. Cortar a direito, reservar o caldo da pele para mais à frente. Virar costas a um narrador descontrolado, entre aqui ali, nos libertando de ficar. A máquina intencional, acelerando em livre curso, na direcção de um ecrã teórico. Se apagando até ver. De velho, inaugurar o tempo.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

À PRIMEIRA PESSOA



O suplício das conversas aí;
Pelas horas da casa
Disposições com lógica
Cautelosa. Esta paciência;
Jogada nas cartas
Uma certa voz
À noite de qualquer modo,
Sempre tão cautelosa
Naquela disposição. O quarto,
Dentro das tardes
Inclinado com habilidade
Sob a paisagem da construção
De qualquer pensar
Por ser.

Esquecido dos anos que
Passam a olhos
Vistos, eles próprios
Ajustando a si a voz e
As palavras, destinadas a
Atravessar o coração – rápida
Vertigem – e já
Desapareceram.

Parte do dia para nada, sem
Saber a misteriosa frequência
Ao queixume – e já
Vinham estas disposições
Desentendendo o que
Já se sabe;
Sóbrio, sobre a água
Suja do banho, perdendo
De vista a paisagem
Da carne cá dentro,
Excepção ao pó
Lá fora. Vozes
Nos esconderijos de fumo;
Um vidro, e os pulsos
Em casa o suficiente
Desordenados, indo
Pela bainha da espessura
Cortando a direito
Estações inteiras. Poético mal
A sério, não
Se sabe como,
Provocando a manhã
Até casa dentro.