domingo, 29 de novembro de 2015

LÍNGUA GESTUAL





Foram elas, foram; a culpa é sua e minha é também de certeza. Afinal, poder assumir a ordem original desta tempestade exagerada nas vozes. De gestos velozes se evitando, na sua natural circunscrição; a irem de um lado ao outro fora da linha, por cima desta, neste tempo calmo falho por pouco. Serei eu, e elas, a unir as pontas soltas à fita magnética, onde se comprimem nossas figuras, baixos-relevos afundados nesta sonoplastia temperada. Opacos. Continuar a me ouvir, e a elas; lentamente deixar de o fazer, até que seja um só som de mar artificial a rebentar dentro, profundamente, na rocha cerebral. Tudo apontar. Tudo ilegível, a desaparecer mal aparece em menos de nada. Apontar a dedo; escolher as pessoas que se querem dizer a si, entre as que ficam para trás, na plataforma onde pisam o tempo pouco seu. Imediatamente após passar um comboio: um algodão se desprende deste sonho em rama, e célere, desgovernado, passa flutuando acima da linha do caminho-de-ferro. Alguém ainda a mastigar parte da refeição, sentado num banco, a olhar a ver se outro vem da mesma direcção. Viu o que vi eu. Quase igual. Todos os dias saio daquela composição, a forma não interessa, e sempre em velocidade me desvio para fora do redemoinho provocado pelo vento dos outros. Não é querer o mesmo. Absolutamente preciso; uso as extremidades, ajustando-as à superfície desnivelada do betão. Dai-me forças, para não ir por ali levado até cair pela comunicação vertical. De serviço meus olhos vão primeiro, que medos não têm de irem sozinhos segurar nos braços ali da multidão, dos que vão, para que desçam à sua terra em segurança. Depois voltam, a ver se me convencem a fazer outra coisa qualquer. Pássaro desnorteado em contratempo, contrário ao destino grave das águas, tocando nas duas margens do seu caminho; a ir ao principio da viagem, ao primeiro suspiro da máquina. Ter asas, não é suficiente como hábito.

Linhaça depurada (transpiração do sonho que passa por este tecido) é a alma, apressada em negação ao tom branco da indecisão ou unidade. Explosão controlada, amoral, na cavidade molar. O grão do motivo se acentua, enquanto esquissas meu silêncio. Me apressas para a eternidade; disfarças um último adeus sem saída. Ganhas a posição para a luta corpo a corpo com deuses menores, que insistem junto a nós na prova que lhes é desviada. Coragem. É o teu coração que me aquece já as mãos, sequestrado á força de navalha. Um teu pedido, por agora o último, cifrado. Ó beleza rude! Despida até ao essencial da palavra escolhida, amarrada pela corrente que da tua boca sai, ao ancoradouro dos meus lábios ferruginosos. Em sangue. Tresloucado.

Como criança doida a querer se explicar; raiva a multiplicar tantas vezes o tamanho do seu animal de estimação, por este ser fraco predador e não conseguir capturar o significado das suas palavras incompletas – assim. Outro futuro, com o mesmo sol de lado no horizonte. Esse sol pode ser que tu sejas, se pouco de ti disser agora. A criança outra de lado, como se à tangente da circunferência traçada pelo carrossel da conversa posta em movimento, já há algum tempo vencida a inércia inicial, pelas duas mulheres adultas das quais companhia ou filha de uma delas. Dedo na boca, ou ambas mãos aprisionadas entre as duas pernas, conformam a posição desconfortável. O meio silêncio das palavras trocadas, não é suficiente para não se ter a certeza que é uma discussão – a linguagem usada por gestos de raiz, é quase agressão; utilizam a força das mãos, uma na outra a demolir a parede erguida diante do que se não pode dizer. Não entendo palavra por palavra, o que não é o mesmo do que fingir não ver o mesmo que a criança a fugir pela paisagem janela fora, enquanto o que se diz vai a meio e parece não ter fim à vista.

domingo, 22 de novembro de 2015

CACIMBO





Amena fumaça, sitiando o contorno à pele do teu segredo. Mãe transversal, personagem porosa que és; permeável às linguagens acidentais e às outras, as de sempre. Elemento a acontecer, infinitamente frontal a todas as lamas sem caminho prévio. Pergunto por ti todos os dias, por todas as esquinas, a fantasmas garridamente abjectos, e pelo câmbio dos hábitos. Sabem o que sei eu. Sei por outros, que entregas o gesto a quem te oferecer mais. Nada de mais. E desapareces. Parece. Voltas. Aguardas um nada a minha enxurrada, se a pressentes. Quando chego perto, nada dizes. Nos entendemos assim. Impaciente, como vício, o teu gosto por imperfeição e maldade. Répteis de todas as cores, ocupam os lugares vazios por entre a disposição das pedras (laje fria, falsa cúpula), amontoadas segundo o resíduo dos anos passados, com os nomes todos do que fomos por apagar, pela mão dos elementos. Numa qualquer noite a meio, chamas por um outro nome que mal conheces. Enfiar a cabeça dentro da noite, fora da janela; holofotes abotoados na casa dos olhos, alma negra a mirar-se ao espelho da rua. Abrir o rasgo à boca, por onde sair. Levar a coisa dita a vazadouro lunar. Louca serpente a vir de frente, em esforço rectilíneo; embriagada de centrifugação e resistência às esquinas; a pouca distância do meu medo, crava os dentes na pedra onde pousa meu rosto biselado. Desistente. Seus olhos evitam os meus – a verdade o que ela é? Terra vermelha, misturada com um azul longínquo. A meio esta boca abismal, a beijar tudo o que toca. Chão de terra batida. Muros incompletos, nus; habitação passageira, presa nos cantos por tocos de matéria perecível. Chapa nervurada no lugar da parede; parede interrompida por nesga antes de um céu igual, onde pousam olhos com toda a atenção na rua aqui fora. Telhado solto, quase pássaro não vá o vento. A mesa para tudo, ao lado da porta. Duas figuras imprevisíveis a cortar a prosa com sua farinha; intencionalmente me prendem o braço que segura o aparo, com fio misterioso. Duas mãos à cabeça. Choram, e logo crateras escavadas pela gravidade da lágrima que se desprende delas. Espelhos do céu. De chinelos vão, mais à sua roupagem, um de cada cor por cada pé. Matéria-prima amontoada pelas ruas, à espera da mão transformadora. No final lá para o fundo silhuetas de escala difícil, quase imperceptíveis, reviram os olhos na direcção que lhes convém. Outras peças de calçado desirmanado, pendurado à entrada de uma casa, mórbido espanta-espíritos a invocar membros amputados. Música de passos apressados, tamanho abaixo do que é. Gasolina potável, vendida à beira da estrada, para a adição demoníaca (caporroto) ser perfeita a trocar a polaridade à alma. Lanço de degraus, interrompido pela parede da encosta, e não se passa daqui para lado algum. Aves exóticas, atordoadas pela mão apaziguadora do vento fraco. Pneus usados, chapéu-de-sol, cadeira de plástico. Branco. O motivo, este, pincelado por um dia no taipal que cerca a capital. Estatuária de grosso modo e membros inchados pela navalha do artífice, toca-se na parte que se adivinha como a mais sensível, a sua. De olhos fechados. Peixe do fundo do rio, misturado no lodo com os outros, como ele. Toalha manchada com a cor impossível das rosas. BULL DOG escrito no vidro traseiro do candongueiro. A mamã aproxima-se da sarjeta, levanta as saias se abaixa, e mija. Toda esta mobília levada de um lado para o outro, de um bairro para o seu oposto na hora de ponta que é sempre, a todas as horas. Metade da população inconsciente, a outra indecisa. Atrasados na pressa, a atravessarem-se no caminho de quem pensa ter para onde ir. Uma sensibilidade indevida – pensou alguém. Vestidos de noiva trazidos para rua, depois da maior chuva ter caído, pendurados no muro, bainhas alguns palmos acima do nível das águas paradas como se demoram estas também a desaparecer. O bater e barulho do coração, substituído pelo compasso dos geradores, a queimar a atenção ao ar das coisas em volta. Terra do tudo possível; a única livraria de portas abertas, mistura na montra o MEIN KAMPF com o CHE (AUTO-RETRATO), o NOVÍSSIMO TESTAMENTO e os dez corações do REI PELÉ. Cheia de graça. Tropical é o clima e o edifício assim nomeado, onde se projectaram alguns filmes e danças de interior. Arranha-céu em tosco incompleto nos alçados, aberturas suficientes para que, por elas, se atire um mono ou desperdício usado, restos da refeição multiplicada por vários dias, a transformar a topografia das ruas num piso ou mais. Tubagem de grés, fracturada em vários pontos, a céu aberto espalhar o detrito do que nos resta para a terra de onde tudo vem. É GOSTOSA E FEITA POR MEDIDA, diz o cartaz publicitário no cimo de outro edifício. O homem só de uma perna, a ir mais depressa que a maioria até ao final da rua. Cidade das gruas, únicos motivos ao longe multiplicados, pela linha de terra no horizonte: pelas suas correntes a acabar em ganchos, se prendem os pescoços de uns anjos a brincar à noite; mudos, gesticulam todas as loucuras proibidas a quem fica espalhado pelas ruas, fora da hora em que há fome de tudo. E vontade pouca de amanhecer em outro dia. Inferno acessível, seus círculos amarfanhados com desdém por quem só conhece aresta viva, letal. Largo mar a impedir ir daqui àquela parte, servindo sal suficiente às lágrimas, para todo o sempre em todos os olhos, deste lugar consentido pelos deuses da soberba. O forro da almofada, empestado de pesadelos, também acomoda uma cabeça nas nuvens.

domingo, 1 de novembro de 2015

REALEJO






O poema é arrastado
Pela lama das ruas, não
Existe sem ser
Pretensa marga modeladora
De expressões articuladas
No subsolo muscular, num
Rosto suficientemente
Compacto.

Arrepiar caminho.

Vincar num rosto o tecido
Da palavra, quase não permitir
Que esta deixe
Impressa sua marca apagada
Imediatamente pelo movimento
Do cilindro normativo,
No pergaminho da pele
Que desprezo
Como título.

Espaço microperfurado,
Por onde desagua
Toda a intempérie, afiada lâmina
Liquida. Matéria turva
A olhos vistos.

O poema ganha
Altitude. Transfere céu à asa
Do coração. Sensível do rapace,
Imitar sua ordem,
Simultaneamente confundir e
Sua pressa quebrar
Artificiosamente, dando
Coices ao ar
Das formas. Provocando
Assim sua cegueira, em pleno
Voo, por instável
Andamento de géneros
E motivos.

Largo no céu
Da coisa dita, a tempestade
Formal, esta circulação de todos
Os defuntos aligeirados
Na sua matéria
Ocasional. Tráfego
Intenso em hora
De ponta. Afiada,
Com tempo, no teu rosto
A imagem imóvel.

Abandonamo-nos à fome
De tudo, mastigamos
A côdea
Do cosmos.

Que é sempre uma canção,
Sabemos.

Nisto, ela, insiste pois
Para que
Todos: monstros ou
Incautos – cápsulas do tempo – tenham
Um pedaço de giz
À mão, iniciando
O sinal que somos
Ao eixo da via. Impossível
Terra de nome
Cravado no tardoz
Deste alçapão. Manuseado
Por essa mão única, infrutífera,
A acalentar escuridão
Em lugar dos candeeiros.

Que se perceba, para
Nós, os domingos
De sempre (pausa
Semibreve) um dia de avanço
Ou aviso
Sonoro – é um louco que grita
À nossa porta
Que não é – “ Não sou
Maluco! ”. É,
Vou fingir
Que acredito.

Este apego ao tema
Da morte colectiva
Dos outros, depois de mim,
Que é pouco
O que interessa
Fazer desaparecer, agora,
Deste presente. Tudo em mim,
Mistura arábica
De indefinido sexo e
Raiva jacente – quanta
Amálgama de fotogramas
É exactamente desnecessária
Para que a vida fique
Sem legendas?

Sobre a toalha, talheres inúteis
Para dissecar
A carne da ignorância, servida
Aos convidados – hurra! – Aí vêm
Os rapaces. Pois
Não façam cerimónia, sirvam-se
Desta refeição afinal principal,
Que é composta por
Estes bichos civilizados, imaginem
O dia mais quente do ano
Calcinando a mão
Que tudo quer.

No meio desta multidão,
Me desvio a tempo
Da tua melodia
Insistente. Marca a rosa
Dos ventos o oriente
Taciturno, pousado, nos teus ombros.
O realejo por ti tocado,
Se converte em
Música acidental, um sopro
De espécie alguma
A assorear
Esta pele um pouco
Lenta para ser
Traduzida por um
Tambor.

Sou também
Aquele que vai
Esquecido, desconcertado
No banco de trás
Deste veículo
Desgovernado.
Não me canso,
Por pedir repetitivamente
Para que aumentem
O volume ao som
Do que dizem,
Instintivamente. Finco o pé
No tapete, abruptamente,
Omitindo o que seja
Demasiadas vezes.
É também o melhor, dizem,
Este lugar que me cedem,
Cínicos, aqueles
Que aguardam
Em serena convulsão,
Espalhados por quilómetros,
Na berma da estrada sinuosa
Que percorro
Impávido, e me acenam
Com o tom branco
Incomodado com
O vermelho cuspido
Pela morte próxima – a que devo
Toda esta solenidade?

Quando parece ter chegado
Inadequado fim,
Desato a rigidez
Aos músculos do corpo,
Pouso a mão
Ao lado do corpo, toco
Naquilo que tomo
Como o areal de um lugar
Que não existe, e é
Tão só
A tua mão.

Estivadores da melancolia,
Prestam homenagem
Fingida na soleira
Da entrada. Impedem-se
Uns aos outros, tantos
Como os dedos
De uma mão. E o cão
Acena com a língua
Atiçada aos tornozelos
De um deles. Como as palavras
São gravadas a quente
No cunhal do edifício
Temporal. Ao acaso,
Triangulações espalhadas
Em pontos escusados
Em ignorar, apontados
Na fina folha
Da tua febre. A luz
Insuportável pelo que
Amanhece. Doente
Por esgana, transmito
À constelação turva
Do teu olhar,
O eclipse
Do meu ser. Pelo nervo
Condutor, se perde
A nostalgia de um inverno
Anterior. Pelo interior
Das veias a descoberto.
Esta porta é marcada
Com um rectângulo
Branco. Negra
Cruz desenhada
A tapar o olho de
Boi. Morreu.