sábado, 14 de junho de 2014

INTERRUPÇÃO





Do princípio digo
Uma imagem, universal:

A falência do último órgão
A própria morte
Em roupas interiores

É passagem, para outro estado
Da matéria contaminada
Do excedente, sanada
Com um grito rouco, se se justifica
A nota estridentemente última desta
Canção arrastada, superficial
Isolamento da pele
Em movimento

Um alçado, único
Bicho nascido:
Tardoz transgressão, cesariana
Á alma do corpo

Do princípio digo
Uma imagem, universal:

A morte intrínseca
Pertence-me como a ti
Pertence: uma coisa
Que sofre de uma vez, só nossa
A dissipação temporária

Vi-a recentemente – á morte – como uma
Pintura de guerra
Debotada

No espaço exíguo, poucos
Móveis: uma cadeira
Da madeira, violenta
Herança de família
Onde me sentei
Em criança, a mesma
Criança que dá a mão
Á minha mão
A morrer, naturalmente

sábado, 7 de junho de 2014

ROTINA






Mato-a ou
Quase dentro de mim
Mato-a ou
Morro eu a tentar
Não ter medo
Dos seus dias
Da sua surpresa
Da alteração de tudo, geométrica disposição
Das entranhas
Da rara coisa que amo
Sôfrego, fiel a um só nome
No feminino: rotina

Altera-se trágica
Num dia, desenha-se
Uma parte de outro
Dia, também
Impossível, um traço
De cada um de nós, um
Segundo

A seguir, sirenes
Tão urgentes
Como já eu fui
Um dia

Saber que, ali
Não estava mais
Perdido dos outros, estava 
Sozinho, entre paredes imaginadas
De giestas, cortava-me
Superficial no horror
Desenhado por um, o meu
Rosto

Todos os dias são
Como esse dia
Foi: uma decisão
À tangente, preferir
O de mim fracturado
Exposto ao céu, ali
Ter tempo para mais
Uma flor, um vento, qualquer
Coisa que arda
Na minha vez, suplico
Aos necrófagos: não se atrasem

domingo, 1 de junho de 2014

DIA DA CRIANÇA






O cão agora desperto, rosna
Pelo dia o seu
Abandono, um barulho que trespassa
As lajes, pouco mais
Difíceis os seus ossos.
Em cada piso, em altura, pouco menos
Audível, quando
Aqui chega calmo.

Pelo prédio escorre
Um silêncio impossível
E um estendal de aço é
Percutido de um lado
Paro o outro.
Os pássaros atrasam-se
Pela manhã, automóveis domingueiros
Deslizam pela mudança
Que se lhes permite
Passarem despercebidos.

O sino dobra
Pelas onze horas, se liberta
Das crianças o grito
No dia que é
Mais delas dizem – Vão ser:
Velocidade
Floresta incendiada pelas costas
Animais dóceis
Mais delas dizem – Vão ser:
Vão ser um
Acidente por onde passam
Incólumes à tangente
Dessas crianças, três
Fogem do destino, as outras
Vão ser o que quiserem, onde se puder ser
Nuvem rigorosa no contorno, longínqua
A cidade horizontal
Dos bichos.
Uma cantilena soprada
Nas gargantas
Pelos desocupados, se memoriza
Cada título gordo
De tinta num jornal, em papel
De extinção.
Este dia é outro
Dia que se arrasta
Imperceptível, alguém
Engana alguém
Em algum lado
Isto acontece agora.
Beijos dados
Por engano, a morte
Simples.

As cabeças deixaram de ser
Divididas por linhas de água,
Passaram a ser
Corpos polímeros, encravados no molde
De um sorriso.
No café do bairro, à esquina
A voz se engrossa do caudal
De um nome, a igreja
De quase todos é a maior
Entidade empregadora
De machos recentes, acabados
Por nascer numa paleta colorida
De indefinição.
Se gostam e mal não há
Nisto, dos bigodes e barbas
Caem casamentos que se não entendem
Na hora da anestesia, as crianças
A haver sol, pedem mais
Gelado.