segunda-feira, 30 de setembro de 2013

PLANO



Não estou habituado a sentir um distúrbio emocional, todos os dias. Estou, mas nunca me lembro, e zango-me sempre. Por me esquecer que as nuvens, por vezes, passam com um desenho de caracol arrastado, onde me sento numa posição de reflexão, afastado para as alturas como elas, nuvens. As calças que visto, parece que me apertam mais nuns dias do que noutros, e já não como assim tanta carne. As luzes, intensas demais. O mundo roda numa velocidade de tortura, e quando pára, o chão torna-se o único lugar confortável. Um aperto de mão solto, quase força nenhuma nos ossos, que dou entre as minhas duas mãos, num compromisso instável. A caminho do estrangeiro, essas pessoas de fora, todas minhas, tudo eu, exposto aos elementos, imperturbáveis na sua violência. Ao teu sorriso. Olho, quando me deixam, por cima do nível da água que me pinta de roxo os lábios. Pareço feliz nos olhos, ao esboçar um cumprimento ao outro, desconhecido. Essa mesma água, um plano recto, que me encobre os pés. Pisam outro chão, instável como os passos que desenham, e é lodo. 

domingo, 29 de setembro de 2013

NEVOEIRO



A noite está mais fria, mas tive a sorte de aqui chegar. A uma cozinha acolhedora, para a última refeição. É um espaço abandonado por outros, onde resta uma caixa de fósforos e uma cadeira velha de madeira. A carne trouxe eu, ainda nua e embrulhada em sangue. Um fósforo acende o forno de lenha, e não é o primeiro, com a madeira da última cadeira que aqui havia. No tempo rápido que preciso, para olhar o resto do espaço. Tento não me distrair, abrandar, com as chamas atiçadas às pernas partidas da cadeira. O fumo já sai do forno, um nevoeiro de laboratório, a nascer. Pouco denso, e com um aroma a vida debaixo de outro céu. É o bastante, para emprestar sem tempo, uma cor da família dos cinzentos, a tudo o que é superfície. Toca em tudo, com um à vontade cúmplice, quase um abraço. Lá fora, na rua deserta, percebo que acotovelam-se rajadas de um mesmo vento, essa entidade única que ganha sempre um braço a mais, de ferro. Para decidirem qual delas consegue a mão da dança, com a chaminé que alimenta de ar novo o forno em chamas. O nevoeiro faz amigos.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

23:59



Um clarão de luz. Uma luz que vem do fundo, negro, atrás de uma silhueta. Uma luz imensa, intermitente na intensão. Percebe-se uma boca, um perfil de meio corpo. Mãos escondidas, num reflexo de movimento, apagadas pelo fundo negro. Um rosto indeciso na face a expor àquela luz, atado no alto, num fio de cabelo escorrido. Palavras sobre tudo, que já escreveram cartas, rilhadas por dentes corrigidos, parados, num branco artificial. A cidade desenha-se a partir do fundo, reclamando pontos de fuga, outras cores. A boca percebida, por cima do contorno dos edifícios, contornos da sua canção. O ritmo de queixos caídos, em tiques de expressão. Palmas desprovidas de emoção, enquanto a cabeça roda à volta por dentro, desenfreada. Os nomes alterados, em projecções estrábicas de frases incompletas, sobrepostas em camadas. Da indiferença dos olhos fechados. Um clarão de luz. Uma luz que vem do fundo, negro, atrás de uma silhueta.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

ERRANTE



Começo por cima, pelo telhado. Não, telhado não. Céu. Debaixo dele, todos os outros espaços se habituam. Não, espaços não. Mundo. Onde cabe tudo o que é aberto vivo, operado com o coração à vista de todos. Todos os pedaços de corpos sem direcção. Às vezes, um homem esquecido. Uma estação. Um homem em pedaços num mundo de prisão. Este é um homem demasiado grande para caber entre paredes, e não existem prontas para vesti-lo, confortáveis. Uma casa. Não, casa não. Destroços. Já coube ele numa, mas ruiu com o peso da sua tristeza. Serve-lhe a rua, como um espaço, e tem um pau na mão. Não, pau não. Ficção. Treina uma magia desajeitada. Não sei se foi ele, mas começou a chover. Não, chover não. Chorar. E molha a pele de todos, mais o pêlo dos seus cães. Não, cães não. Filhos. Nascem-lhe dos pés, e são três. Atrasam-no sem corda, e são de uma raça adequada para o frio. Olham só o chão. O homem pára várias vezes no espaço da rua. Não, pára não. Existe devagar. A este homem, nunca o tinha visto. Aos cães também não, mas são estes mais difíceis de pararem quietos nas minhas recordações, ávidos de ossos. Este homem carrega uma agressividade suave, deixando a força da dentada para os seus cães, treinados a desobedecer aos outros homens. Não, agressividade não. Missão. Dele, homem, este homem, só virá a ordem, e será o mal só por isso, por mandar. Um homem que veste o manto da rua, que é sempre um tamanho acima do seu corpo. E a rua não é mansa, tem ela a raiva toda que não cabe nos lares, e eu não sei onde mora este homem. Olhar para ele, sei. Olhar os olhos dele, a sua brecha de fraqueza. Ver chuva nos seus cantos, retida como uma lágrima para sempre. A sua pena. Uma pesada tristeza, e debaixo dela já ruiu uma casa. Ele passa por mim, e a sua alcateia sossegada rejeita-me, continuando a olhar só para o chão. O homem que trouxe a chuva olha para mim. Eu continuo parado. Não, parado não. Perdido.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

“LONGA DURAÇÃO”











 


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