segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

PIONÉS








Os comboios não deviam andar
                                                                    (para trás)

Allen Halloween, Drunfos.



Ganhas a taça. De um branco, tinto ou palhete. Sabes, assim sei eu, nunca é a cor o que verdadeiramente importa. O vazio, sim. Lá no fundo, a te contar pelos dedos certa voz, ficando, te lambuzando os ouvidos, aos poucos e caídos. Quase não restam dentes para arrancar à gengiva da forma. Se massaja a carne com pecado ou outro, se nisto se acredita. Sim, senhor. Nada de mais, pelo menos. O que sobejar, a este nada, serve. Servirá a outro, que se aproveite. Cânticos de época passada, entoados a só voz, datados por carbono admitido em passeios gastos na sola da pedra. Esquadrias intrusas, mal dispostas em espinha. As vozes, algumas luzes, se diminuem quanto baste, à atenção dada a outra coisa que não esta. A coice dado, se não salva a serpente. Dá um olho por isto, enquanto volto não volto. Pássaros escorregadios, brinquedos de lata dobrada, lavando de vermes o tronco às árvores plantadas no espaço de uma limalha intrusa ao olhar. Espaço diluído, percorrido e ultrapassado pela direita do silêncio. Sinetas espessas, percutidas pelo lado de fora, as almas fecham as portas com estrondo, e se desculpam com o mau jeito. Se dá corda ao gesto, um que seja, um que se veja. Tosses. Sim, senhor. E agradeces tudo o que te é tirado. Te tocas, é hora. Não estás certo. Nunca estás. És relógio habitado por falso cuco, amestrando fora de horas os gonzos do lugar dando entrada. Dás lume a quem por perto passa e pede. Nas mãos experimentando a têmpera, a ajustando ao hábito corrente. Mecanismo gago, certo incerto picotado na esponja da pele, apontado a dedo ao longe nada lá. Nevoeiro convulso. Foste enganado, sabes. Dizem que a noite foi a de ontem, e por lá ainda não passámos sequer, não, trovador, não no meu calendário, nu de mulher e seus dias do mês. Tanto melhor, em menos de nada. Me deu certa volta ao estômago, vomitei os restos do jantar, ainda que me não lembre do que comi, ao que joguei a mão. Vai-não-vai, foi. Pões a chaleira ao lume. Na bancada de trabalho cortas o dedo e o gengibre, os reservas para daqui a pouco. Escuta. Eu também. A locução distante de um verbo transitório. Coxeias ligeiramente, sim. Mas, sobretudo calas. Mais à frente, na rua, dizes o que foi de ti. O horizonte é lâmina dada à boca. Palavra gasta no fio circular da mó, lá, encostada ao corpo do moinho inventando correntes para si. Mo apontas por conta do que gastámos à tarde a que viemos a ser. Mansas águas mendigando olhares e actos irreflectidos para seu meio de vazar. Um par de sapatos vermelhos, cravados de esferas negras, abandonados sobre a caliça acomodada, no contentor de entulho atravancando a viela onde nos apanhámos do chão. Visitámos hoje as ruínas de casa, não nossa. Reforçámos a pedra, no rim de nosso querer traçado por vazios arquitectónicos e caídas malhas estruturais. Inspirados, acertámos em implodir, um destes dias, longe de paredes e outros perenes cacarecos. Focos de luz, embutidos em tecto simples, nos rasgam caminho no vidro, até ao limite franco da perspectiva. Animal de balão azul dobrado raso, à mão da criança perdida no túnel de rede suspenso, a meia altura entre o chão do agora e o céu do nunca mais. O degrau do silêncio, em passo confortável, decomposto em cobertor e focinho. Depois de mim, sobes, lenta, a escada do acaso. Entre pisos paras, pedindo ao ar um nada de oxigénio para ti e para os teus pulmões algo desencontrados da sua caixa alta. O cão vai justo à corda da mão. A mosca intrusa, rouba um pouco de atenção. A prosa se fixa, imperturbável. O velho por perto, andar abaixo, tremendo o rosto em vários sentidos, pronunciando a beiça inferior para fora da sua linha, dado por observado, se desconchavando, se libertando da matéria rigorosa do corpo, acelerando o passo ao desaparecer. Roufenho bombo, mesclado no tecido das gentes se passeando em um dia de nada fazer. Há, por aqui, fartura e cachorro. Ócio de brincar, e de se fazer de ocupado. Olho de vidro. Paixão de ventríloquo. Azar. Tudo deitar a perder, se afinal se deixar ver. De onde isto vem, virá outra coisa. Melhor pior, outra coisa. Ladrar de lado, e a esquina morder de viés à sina. Parar de rimar, imediatamente. Ir à porta, rodar o puxador. Confirmar estar fechada, ir ao balcão pedir chave que sirva. Não, não sou eu. Parte deste. Abres a caixa. Alinhas, no chão, as ferramentas que nunca pões a uso, e inventas para elas o absurdo da necessidade particular. E problemas de construção. Timorato servente no asilo da esperança, temo aquele que surpreendo ao espelho. Coincidimos por nesga, em discordar sobre o mesmo tema ou figura. Partilhamos a gaveta única dos riscadores diversos. Ao contorno do corpo, damos um costume parecido. À vida, nos dá igual. A nada. Puxas água ao autoclismo, rodas a chave, viras o rosto para debaixo da calçada a fingir, no interior do edifício de servir. Buzinam. Desviam olhar, nós olhamos de igual. Podia ser o carro do peixe, a biblioteca ambulante, o homem dos gelados, o amolador de facas desusado de flautas de Pã, o padeiro. Vários são. E nenhum me serve. Procurar por ti, revolvendo chaves no fundo da mala de viagem. Aqui estás deste lado, hoje. Andas atrasado, pois areia é vírgula para frase andando por aí. Desces o balde negro à fria noite circular, o atestas um nada de memórias e rostos deformados. Acendes cigarro, antes e depois do coito. Não travas. Vais andando. E suspiras. Usas e abusas do químico nos papéis que te dão à mão a rasurar, em se cumprindo. Papéis espalhados à toa do gesto, pelo tampo em pedra, no interior da divisão no piso térreo. Queres querer. E nada. A mão vai nua à corrente. Se equilibra o corpo, em um dístico colado ao ar quente do sopro desencantado da tua boca breve. Anda irrequieto um cavalo de madeira. Espera. Enquanto se transporta o sentido sem fundo, da página anterior para o subsequente agora ainda, sem movimentos estudados. Precipitação. Voltámos à noite. Pagas tu. Mandas vir. Esconjuras o carácter circunflexo, desta falta de jeito em te fazer um agrado. Desprezas qualquer manifestação de sinal contrário. Deu positivo, para o que deixaste entrar. Passa. Eu ao menos tu, te dá igual. Sim, senhor. Quantas vezes fora o Mundo em carreiros. Formigas descomprometidas com a albarda dos afazeres. Moedas batem, umas nas outras, reproduzindo o ruído de um olhar atingido por imagens disparadas de um só ponto. Contamos armas. Juramos servir, à justa, o propósito firme de não dobrar a folha em mais de duas. Contamos estar por aqui um dia ou dois, amanhã e depois. Outra vez. Voltar à vida que nos traz o dia por passar, olhando por cima dos ombros para trás das costas. A luz se não abre, se acende. À hora dela. Não ligues. Me podes responder, então. Se não tem isso que se ligar ao que seja. A este àquele ponto à parte, chamas o agora. Já. Lá vai. E estão quase todos aqui. Corremos o risco de Deus ligar e cá, por pouco, não estarmos a nos explicar. Para, esquece. Lhe agradece outra vez, tal como o farias com qualquer perfeito desconhecido. A combinação do entendimento, porta abrir fechar abrir bater. Ir para dentro, perguntar. Ao de ti mesmo perguntar se alguém viu ouviu alguma coisa de mais. Sim, senhor. Aí estás? E ainda, legitimamente, será este perder o fio à meada do caminho desencontrado. Desconsegui, sim. Ali está, ele ali a se descontinuar. Sangra? Veremos. Vá lá. Estou perto, de nunca lá chegar. Estou certo. Pensava já que estava perdido, além de tudo. Indirecta, esta luz implica no restolho das sombras precisas. Sombras reanimadas, à superfície do transtorno. Vamos a ver, e é pouco. De esta hora de aqui, em diante, nunca haverá tempo para nada. Sabemos. E nada se marca para nós, com a tinta de uma data. Não.  E nem há certa, a proporção de ouro que nos caia bem e nos coloque em posição, determinada seja, no interior da fotografia, nos beneficiando de alguma forma, e de que maneira. Fotografia olha o boneco, atirada para debaixo do tapete, em se revelando, da herança dos outros. Ámen. És o que se fixa de um grão em superfície qualquer. O que foi? Não respondas, não agora.  A tentação, insuspeitamente, é toda ordem projectada à carne, com a precisão transgressora fora do risco. A tentação, de igual para cada um, é a vianda dada à mão cheia à boca no focinho da besta ideal, em dia incerto. Outro dia nos traz, o que ontem e antes de ontem nos trouxe: o clarão lapidar da repetição, e a esperança retorcida sobre o que haverá de novo na hora próxima.

Pela rua fria, madrugando, intransigente, o velho esquizofrénico, forçando o ritual, a se chegar à paragem onde, à mesma hora de sempre, espera o autocarro um fêmea exemplar de idade meia. Lhe dar a mão, e a falha dos dentes num sorriso aberto, dispersos pelo tempo de chegar seu transporte. Ela se abre de afecto, e o velho, nessa faísca arrancada à existência a lhe fugir, vive pouco mais que a maravilha do milagre caído a seus pés. O autocarro arranca, e de uma de suas janelas se sacode ainda um adeus ao velho. Em desaparecendo a forma motora no ponto final da rua, o velho se transfere de modos para as fachadas à volta, atravessando a passadeira, se equilibrando na bengala, se sentando no degrau em pedra da mercearia, até à hora de abrir o comércio. Me atrasando, já o vi aí entrar, demorando pouco a sair, com uma garrafa pela mão, já aberta, de um leite achocolatado, e se voltar a sentar no mesmo degrau. E beber de um trago só. O que ainda não sei é, se recuperará ele a tara.

domingo, 3 de dezembro de 2017

PONTO MORTO





Volto o rio para trás
Das costas lá vai
Disto e só. Lá,
Águas concisas, negras,
Por lhe bater
A noite. Sento.
Sinto. Muito
Acorde imperfeito,
Esgadanhado
Nessa guitarra
Impressa de memória,
Se aproximando, e pouco
Me beliscando
A forma vista
Ao perto.

Novos loucos
No lugar antigo,
Tomando a praça
Construída, se dobrando,
Se alterando,
Enchendo a caixa
Ressonante
De eco suficiente.

Mastigam a pastilha
Dos dias, levam
O casaco despido
Enrolado no braço,
Passam aos pares,
Olá! Se lavando
Em sorrisos,
Falando em saudades
Tuas.

Entre tanto
Aponto àquele que,
Vindo de ali
Ao fundo,
Abre porta
Acende ponto
De luz,
O normal,
Não fosse quem o fez,
Um motor ter
De propósito
Deixado a trabalhar
No meio da rua,
E quem o esperava
Não muito longe,
A arrefecer.

Que isto vos interesse,
Não. Nem isto é trama
Que se desenhe
Com alguma calma
A mais,
De encontro
À perna traçada,
Evitando olhar de frente
As circunferências
Do azar, iluminadas
Pelos candeeiros
Em branco
Sobrando à noite.

Nitidamente se ouve
Discutir sobre
Horários não
Cumpridos à risca;
Por um fio,
Quem nos avisa,
Aguenta os cavalos
À prosa, segura com a mão
Aquela porta
Meia aberta.

Lugares de ofício
Com gente dentro
Muito fora ainda,
À vista desta rua
Que os estranha
E deforma com uma
Longa eucaristia
De reflexos. Sentados
A laborar para o boneco,
No último dia
Inútil, de mais
Uma semana.

A volta perfeita,
Embandeirada em arco,
Dada à pedra
Do edifício
Em boa
Altura.

Meio arco e tanto
Tapado por uma árvore;
Um instante
Disto apenas
Um quarto
Visível,
Ao passar por ali
À frente
O autocarro
Preso à rede
Da madrugada.

E o motor,
Caralho,
E o motor,
Se não é ele
O mesmo. Fico assim
Achar. Um meio
Fio de urina
Reflectindo o sentido
Contrário ao ponteiro
Das horas.

O vento despega
As imagens ao tempo
De serem réplicas de
Um pouco já passado, já
Não aqui
Me apanhavas;
Ramos de árvores
Desfigurando
Ao segundo
O barulho que
Me rouba olhar.

Passas a correr
E há ainda vida
Nisso. Meu igual,
Sobre ti
Aterram asas, frias
Coberturas instáveis
Puxando a linha
De terra para dentro
Do momento, para fora
Da tua boca
Escorre espesso
O fumo do que há
Em ser
A manhã. Flâmula
Desarticulada,
Turvando o entender
Aos calceteiros
Do caminho mais curto.

Superfícies de contacto;
Máquinas de sentido
Único, desaparecem,
Silenciosas, pela corete
Da voz que as anima.

Em caixas
De luz, onde
Mal se percebe
A palavra
SAÍDA, à cor principal
Do olhar indo
De branco, o que nunca
Com nada
Se casa, forçando
A curva à pergunta
Que se planta
Em volta, disposta
A tudo.

A condição adversa,
Climatérica, falo
Agora a frio, é
A pontada romba
Inclinada pela unha
Me arrancando ao sono
Deste dia sem princípio.

Me defendo
Com um punhado de:

Notas musicais,
Traçados de condutas,
Enfiamentos de condutores,
Juntas betumadas a parafina.

Este sistema forjado
À demasia de um voo
De curta distância. E
Vou andando, se
Se não importam.

Patas felpudas, tesouradas
No horizonte. Um olho,
Quem o tem
É soberano verbal,
Fechado em
Espaço aberto.

Liberto o cão na caça
Aos ouriços nocturnos, ele já
Não está nem aí, nem cabe
De contente, desaparecendo
Por detrás da sombra
Das árvores banhadas
Pelo zinco da lua. O chamo,
Não vem mais.

Rilho os dentes, e
Durmo. Se há sonho,
É lá fora.

Espalhadores de poliuretano
Superficial, queimando
A hora pulmonar, indo
E vindo de longe
A longe, dentro do mesmo
Quarto, avivando
Os veios à madeira
Do chão,
O preparando para outro
Inquilino, insensível
À loucura da máquina
De afagar e ao forte
Odor químico
Que permanecerá até
Que se vá embora. Insensível
À vida, vai
Vivendo. Em bruto
Conjugar da palavra
Solar.

À guitarra, um solo
À terra.

Virá o dia, e alguém
Não atenderá
Por tanto
Entender.

Avisado estás,
Apita ou
Guarda essa moeda
No bolso;
Estás convidado,
Para um copo ou coisa
Que o vale,
Mais forte do que
Eu.

Coçar o piolho, levantar
A casa do estorvo
Em que se encontra,
A levando ao grito
No interior da tela
Esticada.

Floresta sintética,
Barbatana dentada,
Dedo em riste – fechar
À chave
Estas formas
Na estante do sentido.

Arrastam os pés
À mesa de encontro
Aos meus ombros;
Se rompendo em vermelhos
Circulares, me cantam
Aos ouvidos um fraseado
De fantasmas repetidos
No ecrã das coisas
De se apanhar
E deixar.

Uma palmada nas costas
Ao tempo mesmo
De um nome ser
Empunhado por quem
É, oferecendo
À consignação
Do meu parecer,
O movimento de serras
De corte
Fazendo o giro
Algo tarde,
Aos crepúsculos interrompidos
Por gargalhadas velozes.

Pitch control,
Self control,
Pest control.

Do estrangeiro que me sou,
Estas palavras enxovalhando
O contorno crítico
Da urbe à memória
De um qualquer
Arquitecto agarrado
Ao passado e á maravilha
Deste aquele
JUST ONE FIX. Por ele,
Nada ficará
De pé.

Se envolve o segredo
Em um pano estampado
De brancas aves,
Artificiais enteadas
Da porção geométrica,
Alienígenas.

Param as mãos
No vermelho da superfície
Eléctrica, para onde
Me inclino, traduzindo
Sons impossíveis, saídos
Do núcleo fremente
Àquele realejo abandonado
Sobre a paisagem
Do pensar.

Pássaros pilotos,
Tocadores de ar pesado
Ligando os pontos
Pelas costas
Ao Absurdo.

Máxima incongruência,
Mínima influência.

Dependência total, delirando
De infinito acabando
Por dar em
Louco melhor, melhor
Assim.

Jogos de arcada,
Diálogos e vendas
De garagem.

Roupagem que encolhe logo
No lugar do pescoço, e um
Colar de rebites
Directos à pele, são
O ornato de
Que não
Prescindo.

Flores enrugadas, travestidas
Em forma
Singular, sem modos
Pousadas
Na sala de estar.

Uma ampola de coisa
Nenhuma jogada
Como trunfo,
Ao tapete
De entrada
Na habitação do personagem
Ditado ao comum
Dos mortais.

Me caem todos
Os parentes à lama,
Patinando. Vão
Uma última vez
À terra,
Matar saudades
Da jardinagem artística.

Matar, sim,
A junta aos ladrilhos
Do argumento atravessado
Na garganta, disposto
Cintando a mestra
Impossível de aparelhar.

Em plano inclinado
Se destravando, descaindo,
A viatura
Assombrada, vai
Certa hora
Em ponto
Morto.

Como que afectado
Por trembolona ou
Banho de zinco,
O rosto fica
À banda, em sentido
Desfigurado, enquanto passam
Pelas brasas
De uma leitura.

Venha o diabo
E escolha,
Quem de nós
Melhor tinja, a
Acrílico seu,
Pardo pranto.

Sejamos breves pois
Nos cai em cima,
Não tarda,
Novo velho
Dia.

Luzes de presença e
Trepadeiras sentimentais,
Murcham, escalando
Pelas paredes. Alto
E bom som,
O que não puder
Nunca ser dito.