domingo, 1 de julho de 2018

QUARTZO






Morrendo o sol, lhe alivias o corpo de roupas e enegreces o olhar com suas curvas de nível se sobrepondo. Atendes à ovação diversa, rumores de tudo enquanto coisa, à mão levantada, desenhada no mesmo à mesma deste ar em sentido com que nos intoxicamos de direcções acabando ao começar. Um pano azul, amarrado pelo vento à árvore ao lado deste caminho. Transições bruscas, corpos mal se mexendo. O locutor do lugar acendido, se perdendo na própria voz em números de posição forçada, subida, atrasada. Números, o silêncio. Assobiam aos bichos de passagem, marcando um ritmo de reflexos nos vidros da construção abandonada à pressa. Corpos se contando em cinco volumes de pedra bujardada e em outros tantos de água para arder em largura na praia da memória. À primeira vez, o mundo se dessintonizando. Empata. Com a diversão de uma literatura de cordel mal-amanhada, de filigranas surreais riscando o verniz deposto no osso das coisas e sobre nós. Qualquer morte chegando. Não dá para levar tudo, dizem. A sério. De aqui se vai largando a carga inútil, em parte explosão do que virá quando menos se espera, a espalhando pela erva alta do vizinho. Empata. Sim. Não há outra. Fala, fala só. De pratas contrastadas com deformações animais, de abrigos individuais, de poemas rebitados de encontro à pele sôfrega. Areias cinéticas, músicas trilhadas por instrumentos do avesso. Fantasmas barrados à porta de sua própria casa, por especuladores do horror às divisões. Este para aqui assim, aquele para lá então. Minas e armadilhas. Merda. Segue. Vai. Encontra o meio aos sólidos. Empata. Vai. Faz, não digas. Das tripas coração ou cordame para segurar a embarcação do sonho ao cais do espaço pensado para não ir a lado algum. Merda. Que andamos em círculos, já aqui passámos.

Isto não vale dois tostões, é certo. Ainda assim. Sublinha legível o pouco que tens na garganta dos incautos, vindos para mais perto, enganados pelo pirilampo da bala entalada nos dentes do desfigurado. Cara a cara, casa a casa. Espécimes de beco, perdoando em grupo o movimento à areia da ampulheta agitada no rosto do cego lúcido, esse prosador à frente da fanfarra do gesto forçado. De lado, outros bebem à sorte, ofendendo a cautela dos dias, empurrados por máquinas afónicas para fora do círculo. Abandonados ao seu traço, entregues à sua traça. Empata. Fala do que não sabes, nunca de ti. Não devíamos. Constrói uma azinhaga de vício constante, de que te possas ocupar mais lá para o fim disto. De nada serve ires à rocha do passado lhe arrancar o mexilhão das preces ao útil, ao traço descontínuo, e desenhares de novo a amazona translúcida a quem deste a mão em miúdo, pelo nevoeiro adentro até bem junto da rebentação, levando na outra mão seu saco de serapilheira gasta, até cima de corvos atados. Corvos de fila treinados para o embuste. Lembras? Lhe beijaste a boca imóvel, lhe amparaste o vómito salgado com um pano encardido, prometendo que por ela esperavas na volta da maré. Lavando de aí as mãos. Caí de joelhos na marcação de sombra distribuída no chão, vinda das suas pernas lavadas de espuma. Voltei a face mais a jeito, de encontro ao seu ventre já grávido de pequenas luas choramingonas. Jurámos um ao outro, acordar mais tarde.

Dançam sombras em espaços apertados, dançam sombras, roçando o interruptor da divisão por ocupar. Batem portas, batem às portas. Assobiam livremente. Vem vento, batem portas. Vêm umas fúrias, batem às portas. Em pleno dia, luzes de presença se avivam nos tectos. Vês? Até aqui já é qualquer coisa de nada. Empata mais. Nada. Custa. E depois? Nada. Voltamos ao mesmo, ao que melhor sabemos fazer. Do canto, dobramos para o que sobra do espaço, voltamos a África se preciso for, aos seus lagos sem princípio. Com que fim? Desmate. Desmame. Para nos cansarmos. Pois. Cansar a besta, lhe acabando com o lugar de volta. Sim, podes dar uma ajuda. Distrai quem estiver por perto, assobia para o lado. Come só de restos. Em falhar, em frente! Não julgues já, não haver aqui um pouco de amor ou atenção ao próximo. Zonas mortas, dizem por dizer. Ovação. Assobios. Ferro com ferro, travado. Fosforescência. Bailarico de loucos infantes, marcando a dança torcendo o pescoço. Buzinas. Passes falhados. Muito bem. Preciosa ajuda a vossa. Belos empata-fodas me saíram vocês. Enquanto isto, em perder ao jogo pensava. Fazes aqui falta e, quando estás, te digo urgente: o que fazes aqui? Bem sei que se erra por pouco, e por nada. Acolhe a ausência, atira o fulminante da solidão para debaixo do tapete. Não fiques à espera do carteiro, nem lhe faças mal se entretanto chegar a vir. Espera um nada, até à explosão. Limpa os pés e vem para dentro, até que se te acabe o corredor – o último a tocar naquela parede, vai abaixo. Não precisamos aqui de muitos, de muita coisa. Dois corpos, uma faca à vez, a duas vozes, uma mania só.

Acordam à vista, os bêbados. Apontam para esta mesa, atiram seus absurdos os ordenando a sentar a meu lado. Apontam a direito ao mesmo rosto, riem incontinentes, falando mal de quem ainda lhes vai segurando nas canetas e lhes quer bem assim-assim. Desapontados pela atenção que lhes nego, se revoltam dois ou três deles, indo juntos embora à casa de banho, fazer barulho e contar azulejos. Um deles vomita, outro vem à frente a pedir mais vinho ao taberneiro. O que falta, se fica. Doentes de duas abas, passageiros de só ida. Não vos empato mais. Já cá não está quem falou. Se entretenham sozinhos. Façam de conta que já cá não estou. Voltem à casa de partida se preciso for, não me peçam é opinião sobretudo. Não façam nada, digam, se calhar melhor. Desamparem a loja ao Senhor. O estrondo da louça por detrás do balcão, é fraco aceno à nossa imagem parecida, se afastando até depois. Despedir-nos-emos, ou não, não vem a propósito. Nos mudamos de só lugar, ficando na mesma. Sim. Há coisas piores, coisas em que não acertamos. Não. Jogas em equipa, eu nem a feijões. Entre nós, perdemos tudo.

O vento deforma a paixão pelas linhas a direito. Os últimos pássaros contornam o impossível, dando asas à morte dos lugares de passagem. Matéria se decompondo em articulados de terra viva. Esquinas se avivando de luares difíceis de se apagar. Tinha razão ou não, rapaz? Vale o que vale, te dizer bem te tinha dito. Não leves a mal, se de aqui para a frente nada houver para contar sobre nós. Melhor. Deixa tudo como encontraste. Vazio. Empata. Vá. Nada custa, para além destes momentos que nunca evitamos por não nos conseguirmos desviar a tempo. Deixa. Há males piores. Pois há. Há mais alguém passando sede pela morte dos outros. Bebe. Bebe tu do mesmo copo, não me sujes outro. Vem aqui só te despedir. Com o sol já para lá, ou quase chegando, não te aventures nessa manobra divertida, desesperada, de querer cá ficar. Vamos.

Esquecer todo antes, é pôr à míngua o incêndio do ciúme. É. Estarmo-nos a cagar para esta dor no peito ao contrário. É. Haver nada melhor para fazer. É. Jogar quantas pedras à figura de um assunto. Que falta falarmos. É. Lumes e costumes brandos, levam seu tempo. O que não temos. Estamos quites. Não falamos de nós, dos outros não queremos saber. Bravo. Naturalmente, se recebem em casa os próximos, sobreviventes a dias seguidos retornados. Afinados à cor a desaparecer. E se dão à corda da conversa, confirmam o que sabíamos já de outra conversa trocada. Que um deles tinha apanhado pela frente um AVC vindo em sentido contrário. Mal se nota. A boca um pouco ao lado, sim. O rosto, livre da camada de desgaste de origem. Uns anos a menos, mais coisa. Um dó li tá, quem está livre livre está. E só. Para o enganar de fresco, voltamos tudo, não ao princípio, mas ao meio da conversa. De falar, não perdeu ele a vontade. Safa.

Mãos à obra, a erguer a coisa mais inútil a meus olhos. Olhar o tecto encardido de humidades, correr a casa toda à procura da origem desta maldade. Desenhar num pedaço de papel rasgado em dois, um simples esquema entendido por todos.

Aplicar cura à doença do tempo, é o mister perdido de todo artesão de sonho bera. Trás pás zás. Ui. Não? Venho já.

A repetir manhãs, de frente para o aqueduto das almas suicidas, a lhe contar algumas pedras de cabeça. Te enganaste, antes e depois de mim. Beliscar o osso, em incontidos actos de ternura aos simples de nervo. A dádiva sentida aos acostumados ao esconso dos dias. O horizonte se torna, à força, naquela estampa maravilhosa de boas cores impressa no livro encostado ao meio da sala, preso com gravidade ao móvel e nunca aberto mais do que uma só vez. Quando to mostrei. Se tornam, aquele horizonte e este livro, um e outro, mobília aparatosa da qual nos desviamos por impulso. Enegrecem os caminhos a noite vai a passar, nos damos com ela pela frente. Os cães lhe entorpecem as canelas com seus latidos por extenso. Outros bichos e nós, lhe cabemos no bolso. Tiramos à sorte, a ver quem de nós não pregará os olhos e se esquecerá depressa da sólida geometria de tudo se apagando, não sonhando sequer. Tempo há de sobra, para nos esquecermos quem de nós. Somos à mesma, e já tínhamos sido antes, apanhados na rede da madrugada, essa intentona de pássaros esquivos decantados ao ar, apostados em impingir novo dia às coisas contornadas por aparente desvio à norma do dia anterior. Debicam eles a pele luminosa, arrancada à possibilidade de aqui nos ficarmos pouco mais, nos prolongarmos uns segundos numa ideia fixa de amor à espécie descontinuada, ou o que pensamos deixar, atirado nos braços de um ente familiar, bicho e gente. Vinha a calhar vir a passar, e era sobre esta madrugada, por cima dela, que iria falar, não fosse a distracção dos pássaros me ter desviado do objecto e tema, e de que forma, sobre os quais apontava a mira. Os olhos a olhar, diz logo, aprisionam ao perto o detalhe que se não pede a um pensamento livre. Remoçamos, espumando pela boca loas ao absurdo, num ventre de álcool amniótico. Vem com a primeira hora da manhã, um doce distúrbio e amargo de boca, baralhando épocas imprecisas, acordadas no corpo moribundo de sono. Olho aberto outro fechado, me endireito no sofá de pele rasgada atestada de verdade pelos gatos da praceta, olho à direita à esquerda, não vem ninguém. Piso o chão, carregando sobre as lesmas que me atapetam o soalho saídas se sabe lá de onde. Transbordo a febre para a cal fendilhada da penumbra, finjo estar só para aqui assim. Não há palavra, uma só, que me entregue à concordância de um tempo específico, não, não há, nem se pressente aqui a prematura necessidade de se desmascarar o presente a partir de um artefacto acabado de inventar. Andar perdido na minha cabeça, virando do avesso seus corredores de mal-entendido, me toma toda sensibilidade à extremidade dos membros. Não quer isto dizer que, de longe a longe, não te ouça falar animado sobre jaulas para crianças, sobre contos de reis desperdiçados em farmácia, sobre o projecto incrível de havermos de cá voltar a Marte e nos multiplicarmos de vez à vez, sobre futebóis de aguardente, sobre o homem que matou a mulher por esta não ter apagado o cigarro quando aquele o ditou, ou sobre quem melhor se desenrasca na cozinha da casa dos segredos. Atenção! Não quer isto dizer que te não levo a sério, não é verdade. Pois tens toda minha atenção. Para que o desvio te não saia às cegas te darei um abraço e um empurrão, assim que tenhas escolhido o caixilho de qual janela desta altura por onde te irás, abespinhado, assentar os pés no chão. Como vês, não ando a dormir assim tanto, tenho estas olheiras que me não deixam mentir. Só não quero ter mais motivo de sobra, para demorar conversa entre nós à mesa do café.

Ando a contar desde aqui, entre este e outro, espelhos e cobertores. Ventos-meninos despachando arbustos de encontro à parede que nos separa. Sobre interiores, debaixo da roupagem de cortiça colada ao corpo das árvores, concordamos que é pouca casa para bicho-do-mato, ainda que à escala mínima. Vim cedo, demasiado cedo, mas já não conseguia dormir a teu lado, nesta noite que me ardia nas costas. Assim, levantei breve sem desassossegar. Tomei café sozinho, de pé. Fumei ainda noite. Me banhei em águas mornas. Evitei o reflexo, ai de mim, nas pratas areadas de fresco. Empurrei móvel para chegar aos sapatos atirados para um canto. Dei beijo de fugida à criança de nós, enleada às suas quimeras. Utilizei o verbo amar, se bem me lembro, conjugado num presente. Atirado para o futuro, soletro em espaço apertado sobre quantas voltas à chave na porta se deu, enquanto se vai levando o lixo para baixo. O ar parado na caixa de escada ficará, tresandando um instante.