domingo, 30 de novembro de 2014

IMPRESSIONISTA






Mãos de carvão encerram o segredo que é teu início. Sublinham o olhar encaracolado, revolto, a última fronteira da noite apagada no teu rosto. Pensamento ateado, de perto, à pedra do corpo. A boca como o único apontamento de água potável, na tua medida de serapilheira. Dorso húmido, musgo que cresce no lugar sombrio da memória, onde ainda estão visíveis as linhas auxiliares do que abandonaste dos primeiros contornos, a pele do que foste. Suspendo o cinzel por instantes, e nem te dás conta. Tens a atenção toda da rua deserta numa hora alta, ditada na superfície das poças de água tua tempestade assim lembrada. Mãe morta, folheada por dedos confusos, decantada por rostos que acontecem dispersos, todos interrompidos por uma lua de rodapé. Enclausurados passivos, desenhados a fogo por cima da massa escura de um sonho rasgado dos livros. Setas paradas pelo lado afiado, exterior, da superfície a elas subtraído, imediatamente antes de serem outra coisa. Peito amputado ao chão de servir, o meu, enquanto uma das tuas mãos recostada nas brasas do teu suspiro corpóreo, a outra, uma maré sem berma, que se espraia pelo osso vivo das mesmas unhas – estacas topográficas – que se enganam nos vértices do meu corpo, inclinadamente baldio. Uma cabeça cortada, de pé, despojada do corpo e unida à terra em tons de pele, à pele, uma sombra branca, untada à última emoção de um todo. Em um canto esquecido, fora do lugar dos ventos, um espelho em que se reflecte uma lua deformada e o meu rosto abotoado ao seu tecido. Lábio inferior, pintado com o mesmo sangue que usaste para me distinguires as mãos nesta escuridão exemplar. A lâmina do colarinho, ajustada ao meu pescoço branco. A fuligem do meu olhar, espalhada pelos espaços vazios das tuas perguntas. Mãos agarram mãos, obrigam rostos a uma escala impensável, ordenam ainda a uma cor que desapareça. As cavidades de outros corpos, preenchidas com o percalço da manhã que os aproveita aos pedaços. Um rosto paralelo antes do chão que copia, um braço que termina na mão que acaba o que ali existe. Supuradas, as linhas contagiam o olhar com as costuras das cores sobreviventes. Numa terra longínqua, o funeral das tuas mãos passa em grãos pelas minhas. Apenso o boneco obrigado de duas crianças, encurtadas no papel da sua infância. Um anão cego, servil, lamenta-se do gesto perdido entre nós vontade assim, enquanto espalha a lenha mal queimada nas tuas costas, do cerne das palavras saliva e adeus, ditas por mim à tua frente. No final da estrada, ainda é o sol poente do teu rubor a última coisa que vejo de perfil. Inelutável o visitar-te os traços, na aguarela comum deste sonho.

domingo, 23 de novembro de 2014

LUGAR-COMUM




Pessoas paredes escadas céu, espaços fechados e horizontes curtos numa só frase. Dialectos que se me soltam da língua, esta prancha de saltos onde me abandono aos ventos, metade de mim largado no instável do mundo (oscilam brandos os ossos), outra metade peito aberto, para o abismo que nos liberta de tudo o resto. Estalidos que não reconheço, música acentuada onde tem de ser pela boca. Sons vindos de uma esquina móvel mar, não estou certo de estar completo numa figura. Sobressai a cabeça em alçado lateral contorno da orelha, movimentos de rosto acima da boca que se não vê, a imprimir de veracidade o que se encontra no verso do que ouço. Saem as palavras, a cabeça oscila no sentido do vidro que separa este agora de todos os outros em movimento lá fora, onde poucos juncos fazem vénias à passagem desta composição. Existem poucos silêncios assim, entre as palavras, letra repetida até que exausta, imediatamente anterior à surpresa de reconhecer uma frase inteira «…é assim!» e foi o que se ouviu. Ou me pareceu. Por debaixo do fim à cadeira, uma, onde alguém está, um par de pés quietos e que pouco têm eles a ver com o que se passa mais acima. Uma pausa a que tiver de ser assim parece, enquanto não são eles, pés, chamados para dançar a valsa do caminho, esse desconhecido no quarto do lado, entendido em lençóis de águas tensas (e pássaros em colisão). É o que fica quando me calo. Entre o indicador e o polegar outra conversa de pássaros, pelo gume das unhas a pergunta à pele por superfícies de sentir, um deles ganha no gesto, permanecendo assim imóvel num tempo sobre o corpo cansado do oponente. Visto de costas, uso cabelo curto em tons de cinzento, um casaco que me cobre o corpo nesse lado dois troços de pernas na cor da pele como é, os pés sem espaço entre eles unidos um ao outro e ao chão a que, agora, pertencem sem tamanho. Um volume de formas, dobradas em cilindro, me ocupa as mãos enquanto vou perguntando, um a um, àqueles ali parados. Não me demoro naquilo que digo e quase não me respondem. Dou a mão a uma criança, outra, os dois parados em pé e de frente, por detrás de outra coisa que acontece no meio de nós. Desaparecemos. Componho o casaco, confirmo os dentes no seu lugar. Apanho a muita bagagem espalhada em volta, prendo-a aos lugares do corpo enquanto haver. A tiracolo à cintura nas costas, na mão que sobra. Um dedo de conversa o olhar cortado, um dedo de álcool no fundo do copo. Caminho em linha recta uma faixa em outra cor, por cima de pregos derretidos em formas redondas, afastados entre si um espaço igual ao que significam, linguagem para invisuais. Tenho asas um pescoço dúctil uma boca em osso que alcança, facilmente, o fim ao corpo. Levo a fotografia de uma família que não conheço numa mão, na outra uma edição do Borda d'Água, que estendo a quem está senão eu, que digo não com a cabeça. A minha pele tem outra cor que não a habitual, seguro a roupa junto ao pescoço está frio e tossem à volta. Serve um anel de ouro dedo sim dedo não. Imobilizo-me numa posição de modelar, a partir de aí as pernas desenham aspas na direcção que apontam. Esvoaço entre perfis metálicos, por vezes subo ao telhado, quando quero finjo-me de coxo. Habito uma arquitectura fantasma, um piso inteiro de lojas fechadas, onde ainda há pouco se misturavam cheiros de comidas diferentes. Tem vários acessos, as portas ainda dão para a rua, mas aqui já não se compra ou vende nada. Sobram os nomes do que isto foi, esticados pelas lonas que encerram cada fracção de coisa nenhuma. Espaço aberto a quem queira, é assim possível de ser visitado, um memorial à ganância e ao custo errado das coisas que, devagar, apodrecem. Bateria de mesas e cadeiras, geometricamente dispostas, quase todas vazias a esta hora. Além, um casal de velhos fala entre si num tom moderado, sílabas só deles como cães de casa enroscados nas suas lãs. Pelo tornozelo ouvem-se passos, alguma coisa ou alguém, que se aventuram a atravessar este silêncio com os seus barulhos. O que é, dirige-se a uma das portas, a giratória, por momentos estanca o movimento que se esvai por si. Abre uma coisa sua, e separa as coisas que não interessam. É quando encontra um guarda-chuva. A noite vai chegando, abraça a rua, não há nuvens que a contrariem. São frias as luzes que se acendem por aí. Alguém que tropeça no conjunto, olhando em volta para os que quase não existem. Aqui, esteja quem estiver, todos olham ninguém diz nada – o que haveria para dizer, assim tão rápido? Uma mulher sem rosto, ocupa a última das mesas antes da fachada de vidro que nada esconde do que não acontece lá fora, excepto a chuva que atrasada vem, se inclina sobre a mesa e assim se deixa. Mesa posta com um mínimo de comodidades, um estojo com várias canetas de outras tantas cores. A mulher sem rosto, risca uma folha vincando o sobrolho, esgares só dela, e fala baixinho para ela mesma. Apenas isto. «…Não te lembras do nome dele, não?». Espermatozóides desenhados no vidro pela chuva, mal se aguentam numa forma antes de atingirem a mediana da diagonal, onde se desintegram, dando lugar a outros nesta corrida sem meta. Na rua, numa estação intermédia, abrigam-se crianças junto dos troncos quentes das árvores dos seus protectores. Das copas aos seus corpos descem ramos mecânicos, procurando as suas mãos molhadas de infância espantada pelos elementos. Mudam de sentido. Noutra hora entro pela porta dos segundos, empunhando a espada de lona que serviu para me proteger da carga de água que cai em exércitos, pelo chão que continua lá fora. Sacudo os últimos pingos deste sangue transparente. Tenho dificuldade em escolher o meu lugar, permaneço de pé. Atrai-me mais este espaço pela sua arquitectura imensa, desabitada, do que pela parte rejeitada pelos outros. Contradições. E mais não digo deste imenso corredor de passagem. As luzes baixas e o mobiliário excedente. Serve à justa para o acontecimento dos transeuntes que pretendem vencer o desnível da rua, entre um quarteirão e outro. O calçado de quem aqui entra percute o chão de pedra, e se libertam sussurros de gente confundida com o mecanismo da porta automática, óleo que escorre pelo interior dos seus caixilhos, derramado aqui e ali pelas bocas tapadas pela mão que não vai a tempo. Um bando de gente exótica, todos vestidos da cabeça aos pés, dá por finda a reunião com o assunto que para aqui os arrastou, ainda quente em cima da mesa. Os pares entendem-se e assim se desejam uns aos outros continuação, depois de confirmarem para efeitos de memória futura o que precisam, traduzido para um número. O coaxar da borracha de uma sola atravessa o espaço, degradando-se lentamente de intenso a moderado nada. A mulher sem rosto, repete a presença pois este é outro dia. Escolheu a mesma mesa com vista para a rua e vão dos dias dois, noves (passo a contar pessoas a partir de agora) fora nada. Admiro-a assim como à mancha que é meu corpo, transmitida no ecrã de um bloco enorme, de vidro recortado em painéis, em frente do qual cedi e me sentei. À esquerda a rua e um comboio que chega. Alimenta-se esta mulher sei lá eu com o quê, se de paisagem corpos em movimento ou naturezas-mortas. Utiliza para tal uma colher que para tudo dará, enquanto desnivela um recipiente para encaminhar até si um líquido à boca, e absorve-o em pequena porção. Termina a refeição, transporta um papel pela boca da esquerda para a direita, enruga os olhos em simultâneo ao movimento de lábios, dos quais utiliza o avesso para lavar os dentes. Engenhoso, como poderia ser outra coisa qualquer. Levanta-se, dirige-se ao caixote do lixo mais próximo, deposita aí os seus restos e volta para o seu lugar. Senta-se tesa no seu espaldar de resina, retira de uma pasta umas quantas folhas, o mesmo estojo repleto de canetas disposto longitudinalmente no sentido da dimensão igual da mesa quadrada, em uma das laterais a poucos centímetros do limite direito. Revolvem suas mãos o interior do estojo, em movimentos de perícia cirúrgica, parecendo ter medo de atingir veia ou nervo, dentro daquela ferida incisão de feltro. Levita e se interrompe algures, à pedra volta estátua ao poeta desconhecido, uma das canetas levantada do seu papel. Tudo muito normal, não vendo eu motivo de me demorar mais por aqui. Pouca visibilidade, os pontos de luz limitados à cor necessária para evitar encontros com a parede. O sinal luminoso que aponta a saída de emergência, se existir um plano e tempo para o executar. De resto, tudo na mesma. A mulher sem rosto hoje não se encontra, e que falta faz a este espaço, humanizando-o. O casal de velhos que ontem aqui não estava, estão sentados também na mesma mesa de antes. Continuam a falar de uma forma quase imperceptível. Estarão estas personagens coordenadas, intercalando-se pelos dias? Hoje venho eu, amanhã vêm vocês ou o contrário. Eu cá estou todos os dias, não me importo por aí além. Os faróis dos veículos lá fora se projectam pelos azulejos que forram os pilares onde assenta a linha do comboio, assim anunciam a chapa do seu contorno. Começa a ser noite outra vez, trazem todas as luzes acesas se não me escapa alguma. Hoje não sinto nada de especial, já disse quase tudo a quem tinha de o dizer e irei dormir descansado. Um avião entretanto, desacelera os seus motores na aproximação à pista desta cidade e, por momentos, se sobrepõe à música de corredor que sai, lá muito ao longe acima das nossas cabeças, a espaços pelas inserções no tecto-falso. Melodias esquecíveis (que trabalho deverá dar a compor esta música sem emoção. E pulso). Uma linha de luzes brancas, a tracejado, indica o caminho às formigas. Sei que chove porque olho para o chão e me apercebo da água alterada pelas poças onde se esticavam, sem vincos, seus lençóis. Um chapéu-de-chuva aberto, aparentemente em bom estado, aguarda que diabo ou vento o carregue. Parece partida. Olho para um céu que não existe, dele a chuva cai, e vou embora. Desconfiado. Chovem dilúvios. Convenhamos. Tudo é lugar para estar e desaparecer, uma língua à qual se vê a ponta bifurcada para os nenhures possíveis de existir, falados à boca pequena, pequenas interjeições, saliva vertida no cimento, tudo muito junto a fazer presa – apressem-se a inscrever nele o vosso nome ou esqueleto, se não coincidirem. Daqui a nada – é pedir pouco – mais ou menos curado de todas as águas que por ele escorrem, sigo eu as suas correntes por onde vão, digo adeus às margens e a quem lá não estiver. Medusas velhas, de plástico, desenham um bailado brusco e lateral às veias de perfil metálico quando, preciso, passa um segundo ao fim da aparição de um comboio sem paragem. Obedeço ao primeiro aviso, para minha segurança, afastando-me para o longe imediato aos limites desta plataforma. Gosto de toda a música que desaparece na paisagem e das coisas que dançam, agora e sempre, sem a ouvir. No qualquer de um lugar.

domingo, 16 de novembro de 2014

TÊMPERA





Este, aquele e o outro – separados por dias, estranhos com cintura descaída. A orla dos seus corpos, exposta às marés que nos sobrevivem, essa coisa de contornar. Outras coisas que esquecemos e guardamos escondidas por detrás de um silêncio, uma palavra incerta. Em nada pensar o mais próximo que se consiga disso, se assim for, estimulado por palavras com dorso quente e olhar frio. Volume diáfano, acidentado em altura. A perseguição que termina junto ao pontão que, ali, acaba com os braços cortados à medida da pedra de fecho. Arrebatado pela alucinação de um corpo só que persegue só um corpo, o seu passo impresso na aceleração do chão que desaparece por baixo às roupas, os pulmões sem mais espaço para correntes de ar. Pelo peito, uma dor cinzenta que se palpa de centímetro a centímetro de segundo em segundo, o corpo mesmo de antes e o que fica para depois sem ele mesmo. Dedilhares de cordas nos estendais, pelos nós dos dedos do vento. Companhia para depois, a febre é um sol plano com que se limpa a boca, e se divide em média extrema razão antes de a esquecer por completo. O mesmo se te encontro, e pernoitamos. Outras vezes não é nada disto, e não me importo por assim dizer. Um saxofone tocado de perto, afasta um batelão desgovernado para a margem que não existe entre o que digo e não. Música presa por corrente passa, estrangulada na ilharga apertada do meu entendimento de tudo um pouco. Um número de variedades onde somos só nós e isso, apenas. Um refúgio à vista de todos. Itinerário de arcadas e sumidouros, óleo de linhaça que escorre pelas paredes apagando-nos o nome de uma ponta à outra. Tira-linhas que suspendem o teu corpo para que coincida com o final do meu. Igreja com metade do pé-direito regulamentado para a construção, um dia, da casa que nos é comum, frequentada por outras pessoas que acreditam que o dia de ontem desapareceu sem explicação e hoje é já outro o dia. A mesma porta para entrar e sair. Dias esquecidos, o hálito a noite. Encontrões e o riso perdido de nervoso. Espécie de ausência, o lugar marcado à mesa com um nome proibido, a domar um cavalo de papel branco. O rescaldo demorado do incêndio dos teus olhos no meio do meu corpo. Melhor aqui que na manhã desconhecida, aqui estou agora e te encontrei. Penso ainda um dia…copiar o mal que encerras, levar nos braços o músculo do teu rosto quando me ofendes. Abrir fendas ao corpo, por onde se infiltre o que sobrar dos outros. O ritual do nada que é banal, quando se ouve a mesma canção abaixo e acima do equador. Maciça em pele, a provocação de um corpo ligante com a matéria em pó dos nomes soterrados com cal apagada. Incrustações de memórias, amarelecidas pelo manuseio desregulado do corpo habitual. Despe-se uma fachada às borboletas e aos tiros que se perdem, se em ti não acertam, corpo siderúrgico. Abandonado à raiva afiada das palavras, levanto o horizonte à força de olhar. Distingo-te, perfeita, na metade do que não existe mais.

domingo, 9 de novembro de 2014

HÁBITO





Ter por costume andar
Vagarosamente a pé, junto a paredes
Sinalizadas com o aviso
De derrocada eminente. Caminhos
De fuga, onde
A escolha é única. Demorar no que tiver
De ser. Entretanto
Virar na esquina anterior,
Descontinuado de outros ombros
A falar sozinho, animado
Por todas estas arestas
Que nos separam. Representar
O pensamento à letra
Para não me esquecer
Do que sou e
Doer mais do que é necessário,
Para estar presente
No meio de tudo, tangentes
Traçadas de modo cego àquelas
Paredes enquanto elementos
Verticais.

Droga de substituição. Deixar
As palavras sólidas, impregnadas de
Princípios activos. Deixar
Derreter por debaixo da língua.
Quando acordo a tempo, pela anestesia
De sentidos e expressões
Possíveis, nada
Disto quero dizer mais
Do que seja ocupar o habitáculo
Da alma entre uma hora
E outra.

Ninharias de combustão espontânea
Enquanto houver terra
Para arder. Treino
O olhar de tanto ver, quase cega
Sem saber bem por onde vão
Todos estes movimentos, bruscamente
Interrompidos onde se iniciam
Outros de mexer. Pôr a mão
À pena, descer-te pela cervical
Quase sem perceberes
Que sou eu e é minha
A voz que te ocorre demasiado
Perto. Dizer gritando
Simultâneo ao olhar, quando não
É outra coisa que me ocupa.
Por simpatia me aproximo
De ti. Ao que és parte
De curiosidade e feitiço, as rugas
E esgares fora de esquadria.
Atraído por temperaturas
Inexplicáveis, não
Sinto quase nada
De especial. Por um
Qualquer. A verdade é
Que sinto. Pouco
O que quer
Que seja.

Invertebrado de sentimentos, choro
Pelas coisas erradas. Habito
Um inverno de verbos, cinzentos
A maior parte. Fósforos
Uns atrás dos outros, um inferno
E que bela é a luz que nego
Por detrás das cortinas, separada
Por tons todas as saliências
Ósseas, da sua natureza
As árvores em excesso
De carga, motivadas
Por pássaros calados e maravilhosos
Nas suas penas.

Picada até ao osso a construção
Dos dias, paredes divisórias
Que se deitam abaixo
De quando em vez. Por momentos
Vemo-nos uns aos outros
Nas posições distraídas que são
Só nossas.

Aflitos, abrimos a boca
Pela calada. Olhamos
Um para o outro. Dispomo-nos, compostos
E indispomo-nos. De qualquer forma
Vai tudo abaixo, com o peso
Que se transmite às coisas que ficam
Para depois. Até ao osso
Nos livramos de uma coisa
Pior, deixamos o esqueleto
Porque faz falta
E rasgamos a fachada
Para que deixe entrar
Toda a luz que se lamenta
Nas ruas da frente. É frio
O cimento no chão
Sem mais nada. Rugoso
Aos pés e à voz que fica. Convergimos
Em um ponto, nós
Perdemos tempo a dividir
O espaço num sentido
Que se entenda. Quando necessário
Nos encostamos
Topo a topo, regados
Por um mínimo de compreensão. Frases
De merda, cada matéria
Aprende-se a olhar
Cada coisa que vive e não
Arrancada ao seu hábito, a mão
Que não hesita.

Humidade transmitida pelos corpos
Às paredes que se evaporam
Em menos de nada,
De cima para baixo. Riscam-se comodidades
Directamente no chão
Com o azul que se despenha
Do céu, pó de anjos
Construtores. Mandam
As boas práticas, que se deixem
Alguns espaços à pele
Para que se revista de espessura, uma
Esperança, a resistência
Aos elementos. A partir daqui
É uma questão de tempo,
Chave-na-mão para o que der
Quando vier. De mim,
O que vou contar não acontece
Destas paredes para dentro,
É fora de mão em frente
Ao prédio que queiram que exista, e não existe
Campainha para chamar
Quem por ali estiver
Para estar.
O varredor incomoda,
Com o ferro da pá e as cerdas da vassoura,
O separador central de betão
Encardido. Se movimenta
Mecânico, o rosto prolonga-o
Com o vazio dos olhos, que prende
Frontal a cada carroçaria
Que por ele passa.
Varre quase tudo para fora
Do utensílio, parece se interessar
Mais por cada rosto
Ao volante, de certa forma
Tentando provocar a distracção
De quem conduz a máquina
Por este livro aberto
De asfalto.

De ruídos intestinais, repetem-se
Os fantasmas colossais. Rangem
As condutas no seu trajecto
De ar acima das cabeças, o espaço
No chão irregular de vinílico
Sobressalto, que se estende pelos dias
Em rasgos assimétricos. Estruturas
De suporte revestidas
Por inox escovado, pela tosse
Dos transeuntes. Sonoro
Aviso.

Porta de um prédio. Em alumínio
Anodizado de dourado. No mesmo material
Almofadas inferiores, duas folhas
De vão. Um fixo, outro
Móvel. Dois puxadores à altura
Que devem estar, por volta
Da cintura da maioria de nós
Mal medidos em cor
Preta. Em um dos vidros, um
Rectângulo de papel colado
Nas bermas com fita
Mais ou menos
Transparente. A mensagem
Gravada: PUBLICIDADE
AQUI NÃO,
OBRIGADA. Alguém
Que se aproxima perigosamente
Da entrada. Pára.
Se senta num dos muretes, lateralmente
Disponíveis. Em pedra
É mulher, tem um ar
Vencido, fuma como
Se o tempo tivesse metade
Da duração dos relógios, esses
Medidores da temperatura
Dos dias. Usa cabelo
Mal cortado, cor incerta
Próxima da paleta
Dos castanhos, será
Porventura a sua cor
Verdadeira. Não parece ali
Morar. Espera apenas
Que o cigarro se apague
Nas unhas, alguém
Que a venha buscar ou
Se esqueça ela mesma
Que ali se encontra.

Pelas costas uma sombra
Rapidamente se torna
Nítida. E transborda
Pelos cinco degraus
De uma mão. Leva a chave correcta
À fechadura da porta
E entra. Assim
Se permite a passagem
Para o interior
Da construção. Da rua
É visível o átrio
Das escadas, uma bateria
De caixas de correio
Na parede direita, um
Ressalto no pano implantado,
Raias de mármore confundem
Os olhos na altura
Do pé-direito, a tela
De arte avulsa, a animosidade
Do que é naturalmente
Arrancado ao coração
Da pedra.

O cigarro se extinguiu,
A mulher por ali ainda
Permanece, se finge
Ocupada, desinteressadamente
Exposta em reflexos
No espelho. Surge do nada,
Assim como tudo,
Uma outra personagem, uma outra
Mulher de sorriso fixo, toda ela branca
De costumes, rápida
A estender a mão com uma
Publicidade a um centro
De recuperação física. Pergunta
Uma mulher à outra «Posso
Entregar-lhe?» A voz
Ainda fica, enleada
Por momentos no ponto
De interrogação – enquanto voz,
Da sua dona se prolonga
Pelo passeio, desaparecendo
Por detrás de uma esquina
Próxima. A mulher que fumava
E se desinteressava, outrora
Lenta, também
Desapareceu. De memória
As suas vestes, preto integral
E calçado de caminhada
Na mesma direcção
De tons. O velho
Porteiro conhecido
Dos dias e do hábito, saca um
«Boas-tardes»
E sobe ao patim
Do prédio, se volta, lê
Algumas matrículas, rápidas que são
A escrever-se nas folhas
De asfalto. A estrada em frente.
Coloca a chave na fechadura
Com a precisão silenciosa
Do hábito, desaparece para lá
Da porta em esquadria
Com o ressalto revestido
De abstracção. No interior, em frente
À porta da rua, se implanta outra
Porta. A do elevador.

Por momentos não
Se regista qualquer movimento,
Depois, quase
Em simultâneo, chega
O carteiro. Pelo reflexo
No vidro da porta
Do prédio, e não sendo
Motivo de distracção
O pequeno rectângulo
De papel com a mensagem
Que lá está, é possível
Se perceber o trânsito
A engrossar. Chega
Outra pessoa mete a chave
À porta. Entra e
Desaparece – Por qual das portas?

Entra a tarde pelo céu, se abre
Uma ferida móvel, o rasto
De sol ateado por um
Avião, enquanto o próprio
Sol se evade por detrás
Da mancha antropófaga
Da cidade, reduzida
Ao seu pouco de cada vez
Que se olha assim
Desaparece aos olhos.

O trânsito não coagula,
Ferida aberta ao ar
Escorre, exposta em pus
Metálico, se exala o corpo
Urbano, um perfume
De borracha usada, percutida
Pelas engrenagens. Sacos
De diversos tamanhos ocupam
As mãos das pessoas
Desta hora. Duas freiras
Impecavelmente vestidas, e os seus
Óculos de aros redondos
Assentam nos seus rostos
Engomados – passam outros
E comem a andar,
Mãos nos bolsos. Comem
O que houver em um
Distribuidor de rações
Automático.

Sobrepostos em camadas
Autocarro, comboio e
Viaturas escorrem, expostas
Em pus metálico.

O dia, outro. Seguinte, assim
Clareou. De manhã
Sol, agradável
Até aos joelhos. Pelo meio-dia
A luz se aborrece
Em fiapos se mistura
Qual café com leite,
Derramando o apagamento
Gradual pelo céu
Servido. O porteiro
É digital. Se acerta
Com o comboio que vem
Do outro lado, e aqui
Chega preciso
Às 13h18. Dêem-lhe
Dois minutos, e é
Vê-lo à porta do prédio. Não
Do lado de fora, na rua,
Mas entalado na porta
Entreaberta. Usa óculos
De fundo de garrafa,
Porém acreditem. Tudo se vê
E nada, a ele
Escapa. Mora nos fundos
Se não mesmo abaixo
Da terra, sua expressão
De toupeira alinhada com as suas
Mãos à altura do peito. Observa
Apenas o movimento, frontal
Como alguém que se isola
De nervo ao receber
Um vento agradável,
Numa dada altura de um
Dia? Não, espera
Pela sua mulher
Que se não teria
Demorado por aí
Além, e vinha
Com o saco do pão
A sacudir em um
Dos seus braços. Um casal
De porteiros. Matemáticos
Da disponibilidade a todo custo,
Se revezam como
Numa corrida de estafetas. Que o corpo
De um deles tem de estar presente
Dentro de portas. Murmura
Algo o porteiro, a mulher
Compreende. Sai ele
E não demorará. Será breve,
Semibreve, o tempo
De calcorrear os dois passos
Mal medidos entre a porta
Do prédio e o interface
De transportes públicos
Ao virar da esquina. Quem sai
Do prédio virado
Para a rua à direita. O carteiro
Chega. Semibreve, o tempo
De se ouvir o eco vago
Do papel recortado nos sobrescritos
 Que beijam à força
O fundo frio do metal
Da caixa do correio. Toca ao mesmo
Tempo as campainhas,
Mestria de pianista que conhece
Os nomes de quem
Ali mora - «Correiiiooo…
…Obrigado!»

Uma velha traça
Meia a circunferência
Da sua corcunda,
Pela faixa de rodagem. Um puto
Vestido com casaco
De capuz, abstrai-se
Suspenso pelas batidas
Da bola que empresta
Ao ar, sincopado
Por segundos. Vira a esquina.

Três personagens, deles
Dois homens e
Uma mulher. Todos
Indecisos pelo lugar
Onde perder o tempo: à sombra?
Está frio. Ao sol, sentados
No murete da escada do prédio?
Está ocupado por mim.
Na esquina?
Cheira a mijo. Ficam aí.
A mulher fala, com a boca
Virada para a calçada,
Enquanto folheia
Uma revista. Um dos homens
Protege a esquina
Com o seu corpo, um pé
No chão e o outro
Na construção. Ambas as mãos
Nos bolsos. A mulher dobra
A revista, enquanto não
Se cala, e altera
Constantemente a mão
Que segura aquela «Quando
Estamos a aprender, é normal»
Dizem. Cala-se a mulher,
Continua um homem para
O outro em diálogo
De todos. A mulher muda
O sentido das madeixas
Do seu cabelo,
Com uma das mãos, a outra segura
A revista. Dobra a revista,
Começa a falar, gesticula
Na direcção dos peitos
Dos homens. Se cala,
Empunha a revista
Na página anterior, aberta
Ao acaso. Aproxima-se
Do fim daquela
Publicação. Quase sem palavras,
Fotografias de outros
Homens, mulheres, todos
Sorriem, imagens
De receitas, um belo lombo
De qualquer coisa
Que se come. Atado
Por cordas. Uma outra velha
Passa pelo grupo, despercebida
Enquanto coxeia, puxada
Por dois cães presos
Pelas trelas, aventura-se igualmente
Pela faixa de rodagem. É uma
Hora em que dá para isso,
Uma pequena frincha
No tempo da cidade,
Para os que nada já
Têm a perder, para os velhos
Audazes, inconscientes
De todos os vícios, os que falam
Uma língua estrangeira,
Uma mamã africana vestida
Com as cores dos frutos
Verdadeiros.

Outro dia, sopra o vento pelas bermas
O que sobra de usado, vincado
Pela leveza dos materiais
Que não desaparecem. Pássaros
De corda, prescindem das asas
Para serem como nós, alheados
Das nuvens, desenhando o desnível
Ruços de vidraço.
A folhagem motorizada
Das árvores em diálogos de óleo,
Lubrificados abraços a nada
Nos intervalos da dúvida. Seguram
A língua com uma
Das mãos junto
À boca, posições
De gesso. Duas mulheres
Alinhadas à face
De um edifício
De apartamentos, olham
A estrada raramente vazia. Um veículo
Trava a fundo, evitando
Um mal menor, a morte
De alguém. Que falta
Me fazem. E disso
Não sabem. Olham a estrada,
As mulheres, com a calma
Das desocupadas. Fervem
A sopa da semana
Directamente no estômago – lhes azedam
Os gestos pelos quais
Comunicam, em morse
De maxilares quase
Imperceptíveis. Ouvem-se,
Sobretudo quando alguém
No seu julgamento
Passa mal vestido, com uma
Cor fora do tom. Uma camisa
Fora do seu lugar. Sopra o vento
Pelos fios condutores, ao alto
Pelos cordões das roupas,
Pelos cabelos quase todos,
Pelas árvores. Os pássaros
Aflitos de tanto transtorno,
Ou simplesmente desinteressados
Pelo espaço que a eles pertence,
Sem mistério nem engarrafamentos,
Escolhem o solo, para aí
Se perderem no seu tracejado
De procura por algo
Que os forre, por dentro, e assim
Tornar os órgãos úteis. A ameaça
Da chuva como pedaços de ondas
Dissidentes do lugar de onde
Vêm. Se liberta a luz
Do final da tarde, para desaparecer
Por entre o trânsito, pelo interior
De comboios e escritórios, uma luz
Solitária, acendida por dentro
De um veículo, por alguém
Que não vê o sítio
Às coisas. Acendem-se
Os sinais de mudança
De direcção de um
Autocarro que retoma
A sua marcha na faixa
De rodagem. Os habitantes
Da cidade, retomam
Os seus lugares no hábito
Dos dias. Comprimem-se
Contra os vidros das paragens
Dos transportes públicos. O comboio
Parte acima das suas cabeças, o ser
Agrupa-se em números
De dedos, de uma mão
Afastam-se o indispensável
Para que, por eles, passe
O ar viciado. Da urbe
Pedra em lioz, amolecida
Nos cantos pela água que fala
Devagar. Violentada aqui
E ali por negativos abertos
Para inserção de grelhas
De ventilação, pontos de luz
E fixações de metal
Intrusivo. Pela sua superfície
Falo, de muros alguns
Próximos e de outros
Ainda por construir. Nomes
De fugitivos, dedos
Em crescimento, pintados pela pressa
Da mensagem vertical, olhos semicerrados
A contemplar pouca coisa
Na parede em frente. Sinal
Sonoro. Um comboio está
Para partir, um outro chega. Repartem
Por eles o que resta da luz
Nas ruas. Outra luz
Se esgueira pela abertura
Do túnel. Insectos sentimentais, exaustos dali
Saem com costas vergadas. Saem e
Suas mãos vazias.