sábado, 16 de maio de 2020

MANAS




Um dia destes um dia, é hoje. O céu cinzeiro, a martelada a princípio ouvida a custo. Espalham-se ao comprido no vidro, milhentos pontos finais de água, à minha frente. Dou ouvidos às tripas. Submerso no vidro, desfocado, o corpo metálico de uma draga encostada à doca molhada. Dou ouvidos às tripas. A intermitência da luz vermelha, redonda, no painel de instrumentos atrás do volante. Dou ouvidos às tripas. As obras paradas ao almoço. Chove a cópia de uma chuva já caída. A hélice do catamarã, ruidosa na manobra de atracagem, entrando por todas as frinchas. Se aceleram águas. Vegetação daninha para um lado para outro, ensinada pelo vento. Um homem que chega à paragem ainda agora, a tempo. Um autocarro que passa sem parar. O mesmo homem que não dá tempo a um pensamento de se formar e reage, saindo para a chuva andando em frente. Ao retrovisor do lado esquerdo chega, a imagem de outro homem, preto de preto vestido, abrigando-se da chuva dando-se-lhe a cobertura da estação fluvial. Entre duas esquinas anda cá e lá, olhar o chão. Mais longe metido até meio da paisagem, vai o Cristo Rei abraçando as cinzas, molhado da cabeça aos pés, vigiando um país fechado sobre si mesmo. Caiu-lhe, descartável, a máscara. Decora a data, é um dia de Maio. Chove mais, mais. Fecho os olhos, viro lixo dentro de um saco de plástico perfumado, escutando a chuva a cair à superfície. Dou ouvidos às tripas. Abro os olhos, os vidros começam a se embaciar. Abro os vidros. Todos os barulhos entram por aqui dentro. Marcando minhas roupas a chuva caindo.

As manas saindo de um barco chegado agora, vêm para aqui apanhar boleia com os sorrisos de marfim, que tenho de cor, cobertos de pano. Um automóvel estaciona perto, e escuto o travão de mão a ser puxado. Demora um nada, e arranca. Os pássaros chegam-se à frente, ao princípio de uma canção de amor. As obra já estão a laborar, rebarbadoras cortam alto e bom som os ferros que querem. Vem lá outro barco. A chuva acalma, me deixando mais nervoso. Olho todos os espelhos retrovisores, e repito a operação. Cortam os ferros, sei. Um ponto ou outro de água, ainda descem no vidro. As manas esperam sentadas nos bancos. Assim é quê? Um pássaro me passa à frente dos olhos. Martelam lá os números. Os equívocos, sólidos de revolução. Tosse alto o operário em cima da última placa ensaiando o pau-de-fileira, fazendo adeus ao da grua para que venha a ele. Na bisga, descreve-se meia-laranja com a lança em movimento. Estanca. Tarde começa. Gritam do interior da construção. Será o encarregado de mandar esta estrutura pelos ares? Contam ainda fazer o meio-fio render.

Ainda dentro, rodo a chave na ignição. Tudo a vermelho, os quilómetros que já andei, a hora a que estou certo, o nível da temperatura e do combustível que me resta, a bateria a dar sinal, um ponto de interrogação aprisionado dentro de uma circunferência, a palavra STOP. Bato com a porta, vou à rua lamber as línguas de areia do rio. O marulhar das águas chegando-se à margem, tocando de raspão ainda outro homem só passeando-lhe à beira. Parou a chuva, sopra o vento. Canta o galo às duas da tarde. Martelam. Na ponta do cais junto à estação fluvial, fazem bicha os dedos de uma mão cheia de pescadores vestidos de oleado verde e amarelo. Falam de assustar o peixe. Foda-se, larga um de boca, o que é que estás aqui a fazer, outro para outro. Uma fumarada de nuvens arranca por cima dos prédios da cidade na outra margem, velha menina. Vai prò caralho, ainda os ouço dizer, vai prò caralho. EMBARQUE EM TEMPO REAL, diz um anúncio, REGRESSO A BORDO, diz outro. Acordam as águas de repente, lançam ondas curtas para a praia, dura uns segundos esta convulsão. Chega-se, vem passear os cães, mais um de mãos nos bolsos, chegando-se à água que estrebuchou faz pouco e agora vaivém baixinho. Os cães espalham-se pelo areal, continuam a martelar, o vento sopra, os pescadores ficaram quietos, epá impacientou-se o dono deles. Não há um avião no céu, nem um. O galo canta às duas e pouco da tarde. Epá de novo o dono deles. Um bando de aves, solta-se de uma língua de areia. Um barco vem andando a meio do rio outro parte já do outro lado, vêm ao mesmo. Há barcos em terra, também, contem-nos.

Vou às compras, e trago a mais o vinho. Embebedo-me ferozmente, chamando nomes a toda a gente e dura isto um bocado é quase noite. Estamos dentro de um lugar só nosso. Nauseado, ajoelho-me ao pés da sanita; vomito, deixando cair a prótese dos dentes da frente lá dentro, e puxo o autoclismo automaticamente. Foda-se digo eu. Amanhã é outro dia, estás a morder. Dou ouvidos às tripas. A fome voltou. E não sei mesmo o que me fizeram as manas, passou, joguei para trás das costas.