segunda-feira, 28 de setembro de 2015

GELATINA





O dia novo, de ponteiros prenhos
Das horas mal contadas
São muitos os desenhos
Há-de ser uma flor de cores desbotadas
Começou por ser um cravo na ferradura
Depois quis ser um arranjo floral
Uma coroa de espinhos
E até loiças de cristal
Mal se respira com tanta Primavera
Antes voar como os outros pássaros
Para um paraíso como o do Natal
Alguém que me credite a alma
Com palavras caras
É um fósforo na mão
É sempre uma canção
Palito a imaginação
São pedaços do último presunto
Era dourada da minha dentição
Isso era dantes
Agora troco os dentes por pregos
Mas mordo o isco como os outros
Parentes, Serventes
Todos doentes
De um nome estrangeiro
Espelhos órfãos da Alice
Roupas vestem-se muitas
Mas o cenário é o de sempre
Vigarice
Desta grande aldeia
Faço apenas uma ideia
Os ossos levam apertos
É muita a vindima
Dizem que ao pó voltamos
Para mim é gelatina.


Música: Duble Dread
Letra: Chacho
Vocal Feminino: Anita Nobre







domingo, 27 de setembro de 2015

DEU-LHE O ESTRANHO





Veste camisa, apertada até ao último botão onde acaba o tecido ao pescoço. Em branco; a impressão de um jardim ao abandono, rendado à sua volta. Seu olhar aponta o caminho às mãos; vendo, afasta para o lado o fio inicial da cortina em construção, separando por expressões o que somos da sua matéria perpétua. Por isto, um punhado de diagonais. Um nevoeiro entretecido, usando esta linhaça, espaçado à altura suficiente e o mesmo em largura, para que um rosto se fixe do outro lado. Cordas apanhadas a meio; tem segredo por acabar já foi o dia em que o começou, nó simples suave interrupção à recta que ideia, essa a estrangula dando força às mãos, para que continuem até terminarem o que seja em farrapos. Hera acumulada a um canto, por extenso que seja, seu crescimento limitado a esta esquadria esquecida pelo céu. Depois da porta a estátua de costas, parece despir a pedra que quebra sua promessa de movimento, agarra melhor um livro na mão direita que com a esquerda levanta, acima do tornozelo, seu hábito e o vinca, na posição confortável da aceitação do abismo como primeiro passo a dar. Nas suas costas, ainda é dia e luz que sobeja a acompanhar pequenos gestos em que reparo, vultos que mantêm para outros as arestas visíveis. Trocam lâmpadas mirradas, mesmo assim maiores que meio corpo de um qualquer comum de entre eles. Dois lanços de escadas, permitidos pela quadrícula insuportável por onde é descarregada toda a angústia. Por duvidar, posicionados a meio de nada desce e sobe. Outro acesso não existe, senão a máquina transportadora do louco cenógrafo a ocupar a alma distraída, basculando neste meio corpo vindo de outro lado e depressa desaparece…Outros caminhos, um outro só de seu conhecimento; a pedra de Sísifo aligeirada pela erosão repetitiva. Inclassificável mão cheia de nada, atmosfera interrompida por todas as aparências e todas as vozes. Minhas veias são ramos onde pousar, com pele cascuda a cercar esse tecto, turvando-o com a tempestade possível, a pedir toda a luz de atenção ao ponto onde acabo. Desmultiplicado pelo diverso, tomo o sentido de todas as estradas secundárias dando esperança à minha sede por céus. Desconfio da sua presença. Derramam a figura pelo meu rosto, como cães pontuais à marcação da primeira voz que pareço ter; há lugar para uns quantos no elevador da penumbra. Torno suaves seus rudes modos de unhas indispostas, assobio para o lado por entre a malha da paisagem que nos devolve, a todos, a ilusão da separação. Tocam, lá longe, a melodia comum da sombra. Que não é a mesma coisa. Mão oposta em lugar do coração, olhar desgovernado a espatifar-se no encontro com a parede branca. A representação no espectro, tuneladora a conquistar terra aos outros, a apagar pelo interior a fronteira indefinida, causadora de todos os enganos. Lama, vermes. O reflexo de um sorriso forçado, capturado pela luz artificial, atiçados à vedação da carne. Entre planos: encurvado, atado com arame retorcido até ao encontro entre pontos de si mesmo diferentes. A última parede é a noite, esgravatada por tantos em trânsito. Paciente, o observador tem ainda tempo para instigar um último silêncio; cuspir a aberração, traiçoeiramente, nas costas destes posicionados no meio de nada. Amotinados salobros, ou de outra espécie, projectam para fora de si a doença dos sentidos, como escorrência abreviada em vários minérios, atenuando-se na marga do tempo onde inscrevem, é hora, o princípio do seu nome. Terminam doidos, soltam a faúlha da resposta entre semelhantes; mordem e quebram a aresta da sua estrutura inútil. Atravessando as divisões construídas à pressa, perfeitas mesmo assim, tudo fazendo para que nelas caibam seus olhos tristes. E toda a mobília do passado. Espalham o carvão por esse lugar sem pé, expulsando a humidade aos ossos, famintos que estão por altimetria. Palavra de honra. Com acento simples um nó e tudo a continuar a ser um prumo de gente. Demoras a tomar a direcção à porta, ainda perguntas se amanhã nos esquecemos de voltar a isto. À tangente, somos interrompidos por lanças solares, presas de onde vêm por fio invisível. Deixamos tudo para trás. A bagagem é de mão pois é um só o coração dilacerado. Seculares habitantes da esquina mensurável. Emprestam sua mancha ínfima à largura violenta do céu, fingem ser o pássaro mais próximo, de estar em entendimento com esta liberdade paralisante de nada ou além querer ser. Volto atrás e a ti; desdobras o osso lentamente, envolves a curva do rosto com pedaços do vento. Abandonas o alvo enquadrado pelo teu contorno, e os ponteiros do relógio perdem o tempo na tua direcção marcante. Ordeiros em outro dia, prometemos, um atrás do outro a descer o telhado incompleto. Carrego o mar ao colo, por abandonar à sua sorte, se aqueles não voltam tenho de chamar por outros. Vãos rasgados nas fachadas, transmitidos fora de esquadria mais que isso deformados, liquescendo-se por debaixo ao olhar. Da rua somos rosto ao espelho, irreflectido absurdo. Vigamentos soltos, que atravessam o sonho de um lado ao outro, a entregarem o peso às árvores que esqueço quando, solidários, escoramos nosso peito com as palavras que nos fazem menos falta. Um e outro no seu lugar. Por fim, te levantas e deixas gorjeta à luz que te servia. São trocados, dirás, enquanto essa mancha informe que por ti alastra e tinge tua pele é, a nascente, o que acabará por ser uma lágrima.

domingo, 13 de setembro de 2015

AUTO (CLAVE)





O chão em tosco – e as paredes? Estas superfícies por onde se emaranham pés e mãos podem tão pouco estas e aqueles, tudo, como pele por isso em volta. As luzes acesas, pontuais, parece que perdidas no seu próprio céu, na encurvada finitude do túnel (esventrada seja a nossa obra…), assim adiantadas por braços outra vez as paredes, por onde se finge que entra o dia todo por aí. Sincero é aquele que é; quando sou eu, digo que isto me fere menos que o escopro afiado do teu olhar, amolado no que me resta de pedra. Esse olhar teu, desviado, decomposto em traçados técnicos e outras irregularidades. Nos enleamos a pulso, enquanto aqui ficamos, pelo corpo a dizer esta ou aquela insensatez capital, andamento de suor em nosso rosto, quebrando-se assim o contorno onde acabo mal tu começas. Expulsas teu vento contra a pedra, alagas o cavado dos pulmões com o mar, este, que nasce em nós. Oh! Que te perco, sei lá bem onde, se me distraio por pouco e já adeus é tempo ali ao fundo, os lábios que nos suspendem a esta cobertura, em falsete dizes de mim «bruto!» quando sempre voltas. Teu gesto de ver, pio acto (dirás depois que era a seda dos meus segredos que levantavas) em um segundo os braços retesados se viram contra a nossa tempestade incalculável, se atravessam à frente de todos esses olhos que nos seguem, a pendurar cabeças de bois degolados à sua força, na arena de uns poucos metros quadrados, fortificada pelo ânimo do assassino. Qual de nós. A besta ali não escolheu perecer, assim incompleta de um vento último ou do pólen crepuscular que se precipita, se assim o lembrar, não o sabemos (que tanto é já o que temos para ignorar). Sou testemunha e assisto às mãos, que tuas são, a pôr por ordem por esta mesma que te é mais cara, algoritmo demente, significado teu só isso por olhar, parecido com quase estar e eu a sorrir, como um outro, de língua enodoada da apatia a mesma em que falas. Embelezas o teu mostruário (à vista de todos, troféus de aparentes vitórias) com missangas e horrores vindouros, como uma promessa. O melhor que sabes, com o que te sobra da morte. Ela segura, combinando a presença oposta de polegar e indicador, a chávena, como se a esta se segurasse um pouco nada da mesma turfa nascida no dorso da besta inversa, indisponível, nariz apontado no chão, a outra mão que é dela, também esta sim, como à vida se agarrasse, presa ao tronco polido do cabo da faca que disse tudo, sem nada deixar por dizer. Seu hábito encardido do pigmento repentino (brota de ti o petróleo do suspiro último), por hoje vai e persegue minha compreensão, não peças a culpa por seres quem és, infantil perdoas tudo e quem exista. Pelo instante és circuncidado de modos que maneira, esta em que, com mão firme no seu abalo, bujardas o peito da matéria com pontuais nadas, isto é, dobras a pele em volta do coração em morse: dor traço dor espaça o cansaço. O pássaro rasteiro comete a loucura linear de se aproximar ao chão que pisas, e depois nada se perguntas. Retardar o gesto, forçar antes o ar a sair, do interior desta construção fundada em aterro (solo impossível para, aí, se erguer verso ponto final.). No seu negativo escancarado, a paciência tamponada pela cortiça da incompreensão, forma circular de dizer a outro sol por onde ir se quiser. Arrasta os pés, vira a cabeça, entorna os braços no peito, uma das mãos enquanto me olha, se afunda no bolso a procurar o que a ocupe, de ali sai mão vazia. Pára. Olha o céu por entre estas treliças da construção, pesponto ferruginoso costurado pelas mesmíssimas mãos que me afastam para lá. Encosta o corpo, por ora o dela, à pedra; marca a pulsação com o desnível das pernas, ponto de rótulas flectidas em graus desavindos, leva à boca a cerâmica, sorve seu dentro em menos de nada. Quase que apostava nela, e em como tudo aquilo estava a ferver. Finge bem, o mínimo de olhos a revirarem diferentes, e era porque eu olhava com atenção. Vêm fardados, vestes da cor céu nenhum, com aquela cor de azul e tal, as mãos descrevem circunferências, inscrevendo aí bocas de espanto, sua palavra falta à conversa ao mesmo tempo, nesse tempo em que afastam as nuvens com o credo em outro céu e assunto que não o deles. Bagaço, um cheirinho de café, parecem-me ser o final ao que dizer. «Vê!...Têm de sair daí três fios…». Seco a última lágrima que fingida, por nada mais parecer ter a dizer, quando me estendem lenços já usados, húmidos, vincados, esborratados com os tamanhos de boca vários, destes meus personagens que o não sabem que são, outros fogem e nem o olhar me emprestam. Sou calmo em figura e paciência (mentiroso!), como o fotógrafo das espécies bravias, dos motivos fugitivos dias a fio, sem espirrar ou quebrar os ossos da mão que os apanha com os dedos entrelaçados. Ainda agora, pousam dois malandros à minha frente; mantendo a ponta do aparo na folha, se desenham a si mesmos atropelando a linha superior dos meus óculos. Desconfiados, olham para todos os lados, não para mim, remexem de cuidados sua bagagem de mão, e de lá tiram um aparelho de comunicar, trocam os seus cartões, ligam os aparelhos ao mesmo tempo, juntam costas e contam a partir daqui se afastam cada um a falar sozinho, para nós e para um outro. Percebo apenas a palavra VISITAR. Se dispõem (e se indispõem) as palavras, como louça a escorrer, o seu vidro a ser lambido pelos contornos do que se diz, sons naturais em acidente. Significa tudo tão pouco, ao fundo ela para ele sorri, a desviar o olhar do caminho que têm, por quase nada se encontra este com a parede ali de lado. Outro estica o braço, polegar em norte, depois passa, quem cumprimenta é segredo desta construção que o acolhe do lado esquerdo ao motivo observado. Reparo meu: por ali fora, junto à berma, estacionaram todos seus veículos tão direitos, uns a seguir os outros à distância fixa, mão invisível que esticou o nível enquanto sibilava a ordem de imobilização – obedeceram cegamente, e não entreviram o que era apenas pormenor: PROIBIDO ESTACIONAR. Para dizer que não, que seja à vez. Não é sempre não. Não é importante que assim o seja. Não ligues. Não voltes (nunca a não voltar). Não to digo outra vez. Entorta-se nas minhas costas um sonoro desvio de atenção, obriga-me a ter de te ver uma outra vez a noite em par, plasmada no todo espaço que é ali depois da fachada de vidro que me entorpece a mão, ainda antes sequer de ter vontade de a tocar. Por dentro das coisas construídas para nos modificar, ou simplesmente esquecer que algo existe fora delas, pé-direito maior que a dúvida que se instala entre o que somos e o tecto infinito. Ainda nas minhas costas, alguém «vida madrasta» diz que aceito como verdade, cegamente, sem confirmar o rosto que é sua nascente. Palavra. Esfrega os olhos, personagem, e mantém morno o diálogo que manténs com essa aí do lado; se não é assim, respeito. Enterneço-me e amolgo o aparo com o coração de sentir lá por casa, fazendo a vontade a este tempo de não acontecer, elevação por dizer assim, e aponto o rosto dela a pousar no algodão de outro ombro, de quem é complemento a este costume de segundos.