terça-feira, 30 de abril de 2013

AFTER-SHAVE




- Estou irritado!
Antes, fiz a barba à palavra. Rente.
E dispo-a sem sensualidade, e à imagem que a acompanha.
Ela que me servia num tamanho acima do corpo, confortável.
Ainda regateio.
Só por hoje.
Sei que dela tenho feito uso sem pudor.
Antes do desnudar, que agora ao vê-la assim, difícil e nua, me sinto constrangido até aos zeros.
Para não a prender.
Quer sair por aí. Aqui não.
Nem que seja para ir beber um café, à esquina da língua rouca.
Essa sim, abusa.

Sair de casa é o primeiro passo.
A vizinha já tinha reparado que ela, a palavra, não andava bem.
Enferma. Sinal dos tempos.
Disse-o hoje, entre a caixa do correio por abrir e o saco do lixo atado de peso da afronta acumulada em casa.
A nossa.
E eu que não a quero perder.
Eu, que leio livros e parágrafos quase sem dificuldade.
Mas a ela, não.
Não a compreendi, em evidência.
Sentido de pertença desigual.
Assumo o porquê das suas divagações em sulcos, no corredor das nossas assoalhadas.
Insónias.
Que não me preocupasse, já ia para a cama.
E eu adormeci.
E pensei que estaria ali, aquando da alvorada.
Engano o meu.
Do tolo dos homens, ao pensar que ela lhes pertence.
Já tinha sentido a distância, nos noticiários do comum.
Assustador, como convém.
A incutirem o sabor do medo, porque dele se depende para o despropósito da desigualdade.
Dentes para tanto de qualquer coisa.
A chuva da partícula.
O pontilhismo do final de emissão acaba por ser mantra mais desejável.
E próximo da postura em meditação do homem moderno, apoiado no cajado tecnológico.
Que prime em desesperos do funcional.
Permitem-se à ausência do sentido.
Quebra.
Tanto mar em deserto, arrancados em sangue à ânsia dos séculos.
Para quê?
Corpos religiosos da mentira.
O suposto equilíbrio, em demandas irracionais.
Foram tantos os degraus desta escada mal projectada pelos engenheiros do saber.
Carregaram-na em excesso, no que deveria ter de leveza.
A da humildade.
No contacto com o outro, que respira.
Os ventres sofridos, na esperança do contributo para o melhor dos reinos.
Aprendizagem nula.
Civilização dos cântaros efeminados, que perduram na lama dos caminhos.
No princípio, mais carne.
Em unhas do roído pela impaciência.
Ela, a palavra, foi.
Deixou no entanto um bilhete.
Se não definitivo, de aviso.
De permeio.
Para me poder explicar como aqui, claramente, deixava-se algumas.
Para compor, se quisesse.
Na oficina da tertúlia desejei ter mil bocas, para poder gritar com ela. Para ela.
Mas não saíam.
Como no pesadelo da memória, escancarada na mudez da transmissão.
O divórcio já tinha sido pressentido desde a seca imposta pelas casas do vinho aos seus desalmados frequentadores.
Amigos poetas.
Ela fez uma escolha.
Preferiu juntar-se-lhes em bandos, na vindima alternativa do adjectivo.
Ao entardecer, não a censuro.
Que viva para sempre e amanhã também.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

LISBOA





- Desconfio de lugares mágicos.
Encerram em si a disponibilidade de te tornar ilusionista da rotina.
Mas este não.
De naipe cheio e convulsões do seu empedrado irregular, que se torna num morse cacofónico de teclas pretas e brancas.
Lisboa. Maior de idade.
Que sinto na minha pele como mais um pêlo encravado.
Incrustado.
Relação de quase adopção por esta mãe-cidade, que tanto afaga com os seus reflexos dourados em esquinas de transitário, como repreende em cada escadaria do desequilíbrio.
Com ferro a meio. Tauromáquico.
Sente-se a continuação do braço de metal chumbado na calçada, a prolongar-se pela estratificação do terreno das memórias.
A repetição de cada sonho, ou a percepção deste, em cada beco visitado.
Alguns com mais frequência, mas sempre em descoberta.
Arranjo sempre algum exemplo da vivência nesta cidade, como grafitado de fantasia.
Nas paredes de reboco instável das areias de ampulheta, que não esperam pela ordenação do teu pensar.
Mal arquivado.
Gosto de me perder no encontro com a estória.
Das almas várias e divorciadas da moral vigente.
São puras.
O pulsar das suas tascas, com as rugas da vida bem presentes nas caras dos velhos cujo olhar é o bastante para que entres nas suas muralhas do conto.
Mesas de canto, prefiro.
Em que traço as diagonais bastantes, no encontro do meu observar com os daquelas personagens reais.
Não pedem permissão para te contar as suas dores do parto.
Difícil dos dias.
Apenas uma esmola.
A do copo de vinho partilhado em poesias de jarros cerâmicos.
Vermelhos do lastro.

Acudo ao miradouro das Portas do Sol.
Que a cidade também precisa do afago dos seus poetas, sempre perdidos nas suas palavras.
Em ordenhas da composição.
E por vezes descuram o gesto.
Do conforto em dizer-lhe que a habitamos, muitas das vezes no egoísmo de confessionário.
Ela, parece que obrigada em ouvir-nos em surdina.
Porque lhe pedimos tanto?
É só a procura da solução para o caminhar de viajantes do verbo.
É pedir tudo.
Estaremos nós em condições de a receber nos braços no final dos tempos?
Em velhices do dedilhar.
Guitarras a chorar, órfãs dos mestres.
Lares da conveniência.
Temo que acabará por ser abandonada à mercê dos umbigos.
Salteadores da riqueza que pensam ser as suas entranhas.
Pura ilusão das almas menores, violadas em criança, ao lhes ser roubado o choro da emoção.
Insanos.
Não vêem que os tesouros do ofuscado foram já imortalizados.
E transformados. De ouro dos reinos em palavras.
Em poesia.
Troca justa e com sentido do seguro contratado.
Lisboa nunca foi enganada.
Iludida, por vezes.
Em paixões de dor pelos seus amantes de passagem.
Porque quis.
Nunca abriu as suas ruelas com desdém. Antes entrega.
E sem ciúme quando observa o carnal a acontecer, em prédios de Alfama a ruir.
Do peso dos homens e mulheres, menores nas suas pornografias de substituição.
Encantadoras na sedução dos xailes em garrote nos pescoços desnudos.
Sou obrigado a admitir que ainda não estamos prontos para a oferenda sem retorno.
Cantiga do bandido.
Ela diz que espera. 

sábado, 27 de abril de 2013

TELEFONEMA




O dia começa no meio da ferrugem.
Chapas a cortar à dimensão da vida. À esquadria é complicado!
Que das medidas em apontamento, se transformam em orçamentos do pesar.
A manhã, passo-a em ânsia da chegada do parar do meio-dia.
Bairro da Meia-Laranja no pensamento, de quem ainda não se encontra.
Em condição de assumir que tudo não passa de um embuste.
O de ti.
Por ora, passageiro.
Que a escadaria da confecção aguarda nos seus pregões de amortizar.
Entretanto, telefono.
Ainda em cabine, no retro dos dias passados.
E que bem.
Barrigas cheias do aluguer de espaço.
O meu, todo ocupado.
Lancinante.
A preocupação é o momento.
Que foge e parece parar.
Com sussurros pelo meio, em vibrações de electricidade.
A confusão que me faz aquele rilhar de dentes dos eléctricos, na sua passagem pelos carris.
Ouço o sinal de espera.
Do outro lado, espero que sim.
A amiga que trabalha no centro.
Da cidade e da confusão de nós.
Atende.
Confirma o compromisso para a hora de almoço.
Vamos acompanhados a solo.
O percurso até ela, sem entraves. Também pelas colinas.
Quando assumes o de A para B, parece que não existem barreiras.
Metro, autocarro ou meias-solas de desconforto.
Eu, quase.
Aqueles 15 minutos roubados à entidade patronal são preciosos.
O suficiente para ter algum avanço sobre os humores.
Sem sinal deles, os bons.
A gargalhada que resiste, mais não é que o aplauso à miséria humana.
Interior.
Mais forte que o berço da rectidão.
Estranho.
O ser, desumano em si.
Mesmo quando não haja razões para tal.
Famoso discurso das cabeças equilibradas.
A desgraça que cresce em ti, parece que umbilical com o pavor dos milénios em fazer o acerto com a criação.
Seria equação ousada, a do início dos dias?
Porquê tanta interrogação com sinal de negativo, no meio de tantos sorrisos de criança?
E cores exacerbadas.
Ainda não sei o suficiente.
Falta a cátedra do enrugamento.

O caminho, ofegante.
Espero encontrar uma face alinhada com a minha procura.
Ela nunca se atrasa. Anglicismos.
Na esquina.
-Olá.
-Vamos?
De mãos dadas, não.
Que falta de educação, a de pensar em partilhar com os demais o nosso mal-estar.
Invejosos.

COZIDO À PORTUGUESA



As carnes que forem mais salgadas devem ficar de molho



Saí da prisão há pouco.

Alguns dias.

Os primeiros em liberdades de retoma.

O mar.
Dizer para os outros, chegados, aquilo que quero sentir dentro de mim.
Lição.
Apreendida.
À boca cheia de mil razões.
Que sim.
Agora é todo um caminhar. Falta é aprender.
Os pés às vezes sofrem de falta de direcção.
Em pequeno usei botas correctivas.
Pesadas. Como me sinto.
Convém ser passos pequenos.
Não aquele tropeço, esqueço.
Vejo-me de repente, e de forma naturalmente forçada, com a necessidade de preencher os dias.
E a economia. Nisso, mãos largas.
Arranjo, com bengala em cunha, um biscate.
Gosto da palavra, respira-se. Com um sentido de não definitivo.
Se um gajo trabalha, respeito!
Se é um biscate, desenrasca-se.
Todos os dias deveriam ter uma componente, ainda que em part-time, de biscates. Sempre são uns hobbies.

Este, no armazém das oficinas onde o meu pai trabalha.
Ainda bem que um pouco ao lado.
Porque não temos ambos muita paciência para qualidades de tempo em família.
Em que dignos condutores de monólogos da coisa certa.
Tem de ser sempre daquela maneira, senão parece que não resulta. Teimosos.
Convenhamos.
Melhor outro tutor a quem prestar vassalagem e serviço. Menos chato.

Parece que sem sentido de humor.
Tem noites.
Que a gargalhada mergulhada em cascos de carvalho, chega a convencer-me da sua certidão.
Na minha de nascimento, ele meu pai.

Na oficina da arte, a que me dedico por estes dias.
Estes começam sempre pelo balneário.
Antes de entrar em campo.
Fracção urbana, com sabor a betuminoso.
No escaldante parque de bobines de fio eléctrico, a que recorro cada meia hora na parte da manhã, para acudir algum electricista com pressa de ir almoçar ao Prior Velho.
Hoje é dia de cozido à portuguesa.

Volto para a troca.
De calçado e de meia.
Até na farda tem de estar tudo a condizer, que os espelhos dos vidros dos carros insistem em devolver-nos a imagem, de formas nunca à escala real.
Mentem-nos.
Porque nunca é reflectido o bom de ti. Ou porque assim não acreditas.
Antes despenteado, que o gel deixa vestígios.
De partículas confusas em assumir o papel de transgressor, da cabeça em alma.
As botas com biqueira de aço permitem o saudável exercício do desdém.
Pelas coisas em que tocas.
Rei Midas da ferrugem, das porcas e parafusos.
Desbobina.

O senhor das tensões, altas e normais, está à espera.
Que depois arrefece a refeição.
Pelo meio, conversas de bola e remates. Alguns certeiros, eu é que não gosto.
Partilho outros.
Já não é mau.
Doutra forma, ausência. De fora para dentro. Nem que seja o ambulatório do Miguel Bombarda.
Uma pessoa tem de nutrir algum especial nem que seja gosto, por algo.
Às vezes.



quinta-feira, 25 de abril de 2013

CIMENTO-COLA






Não fui alérgico a tudo.

Sem dente da frente.
Sinto-me como o excluído que já sou, apenas exagerado.
Faz algum sentido? Para mim.
O dentista explica, por brocas e com pinças, aquilo que o descuido já tinha sussurrado.
Pergunta se pode. O quê?
Fazer-te sofrer.
É só mais um degrau.
Eu já sofro. Assim, é com procuração clinica.
Parece que menos mal, quando são os médicos a intervir no teu corpo, com falas mansas e apalpadelas benignas.
Ou a rasgar a carne.
Esta, é paliativa.
Se tens algum problema-puzzle difícil de organizar nos teus nervos diários, nada como uma boa rasgadela.
De diário.
Mas esta foi no céu.
Da boca que tinha tumores.
Convém sair, senão mais problemas.
Pode haver mais?
Acho que sabes do rosário das contas.
Pago sem ver a porra da conta. E conta.
Para tudo o que vais entregando, o desmembrar.
Afinal ainda tens tanto.
Boca. Nariz.
Esse nem por isso, que o cheiro a vómito e a merda da falta de asseios me incomoda.
Agora já não. A sério.
Apenas agridoce.
Braço é preciso.
Nem que seja para tirar a nota amarrotada do bolso da moeda que por simpatia, os alfaiates de bom senso e sentido do marketing, colocam nas calças.
As minhas já há algum tempo que não sentem o detergente.

Aplica a anestesia e penso.
Tenho comigo algo mais eficiente para a dor.
Se calhar o doutor tem pudor e não deixa utilizar a sua oficina para fins paliativos.
Aparadores.
Assim que o bisturi toma a direcção do pulso forte e decidido daquele cirurgião das cavidades, deixo de pensar.
Sinto.
O sangue a jorrar pelos cantos da boca, misturado com o latejar metálico dos instrumentos afinados daquela orquestra.
Digo. Esteja à vontade.
Até à garganta tem terreno para escarificar.
Depois engulo.
São instantes.
Da qualidade daqueles que se querem breves. O suficiente.
Para não pores em causa a ideia de finitude.
Aguenta.
Remédio.
Para a tosse não tem nada, não doutor?
Chato que não se possa fumar.
Anos mais tarde, também nos cafés.
Um pouco de fumo para despistar, isso é que era.
Mas não, pois trabalho a fazer.
E falo. Erecto.
Com mestria e requintes de transplante.
Não é comum chegar assim até mim, alguém tão necessitado. Diz o doutor.
Agradeço a simpatia.
Verdade. Tens a boca numa miséria. A boca?
Fodasse, todo eu sou miséria.
Com pressa da resolução.
Terminal não sabe, que isto de assumir compromissos não é para mim.
Por hoje, isso arranja-se.
Ainda uma moeda no dito de alfaiate.
Melhor.
Alguém a quem ligar, depois de sair do cadeirão.
Que descanso.
Ele que não me ouve bem, tem máscara anti poeiras na boca.
A sério?
Enfim, só para algumas.
Com largo espectro não saem tão em conta.
Esta, o patrão oferece.

E aquele personagem agarra-se a qualquer coisa que lhe permita sair por uns momentos.
Neste caso, até simpatizo.
Sítio interessante.
Cave de um edifício. Daqueles bem construídos, a pensar no marquês.
Perto das Amoreiras. Lisboa.
Escura, mas com bancos de madeira e as últimas publicações em revista das vaidades nacionais.
O trabalho em si, aparatoso. E barulhento.
Consiste em amassar bem aquela amálgama de material em pó, que se quer graduado.
Em cimento-cola.
Espero que não se espalhe muito.
Para que não se confunda. A ele e a mim.
Com o branco também pó.
Que se espraia no comprimento.
Da mesa improvisada em barris.
Cheios e vazios.
Como os dias.

Ele mais velho. O personagem.
E enfermeiro.
Ralhete por não ajudar muito.
Em casa, a mesma coisa.
Habituado a mesa posta e a roupa lavada. Eu é que não gosto.
Melhor com o sebo acumulado na relva do Cais do Sodré à espera do primeiro barco.
Que me leve daqui.
O da manhã.
Que a noite já engoliu todas as forças.
E formas.
De me enganar.
Mas isso é só mais logo.
Agora tenho de perder o medo e a ânsia.
De sentir o primeiro.
Não o barco, mas o chuto da agulha.
Com cuidado. Não temo, é diplomado.
Na escola da passagem e dos azedumes de retornado.
Até adquiridos nas fileiras da Legião Estrangeira, porque muito viajado.
Só não sai do mesmo sítio.
Por mim, prefiro esta.
Viagem do transporte ao cerne de mim e à negritude do pensar.
Que se quer nenhum. Agora.
Porque todo o espaço é pouco.
Para a explosão em milhares de nebulosas a tocarem no fio dos teus cabelos.
Encaracolado.
Afago de tormenta que agora é luz.
Da felicidade que se espalha no apartamento espaçoso em número de assoalhadas do sentir.
Que é sexual e não contido.
Mulher. Muitas.
Enleadas no teu espaço público e por tempo indeterminado.
Cedido gentilmente ao artifício da animação. Sim, és tu.
Branca das Neves e do São Bernardo.
Pipa aberta em salvamentos de soterrados.

Tem mesmo jeito, o gajo.
Sinto mais quando vou tirar análises.
Aquela enfermeira decana então.
Á bruta.