sábado, 29 de março de 2014

TRAMA



O contorno de um sorriso aberto no estômago – enquanto as nossas mãos não o pressente, desabamento pelo corpo grave, a cinza brilhante do que resta dos nossos olhos apertados na ausência dos outros. O que era só mundo além de nós – desaparece para lá desta manhã, onde o nevoeiro toca os sinos do cacilheiro na sua vez. Um corpo retalhado incerto, pelo imaterial da memória. Um corpo sólido de revolução, o eixo de si ferrugem, num hábito de água corrente. Sopram em conjunto plenos, com a boca pelas pedras, os ventos ao contrário. O rio desaparece de nível aos olhos por dentro da construção, em terra, de um barco. A madeira entornada de velha amante das palavras. Contam-se esquecidas, as palavras, de outra água por um caminho de margens inundadas. O raciocínio de linha temporária, desviada direcção pela estória que conto para o espaço disponível. O raciocínio de linha temporária, desviada direcção pelos personagens descolados à carne que já não os suporta como corpo. De lado ao farol incerto na noite – este diversas vezes deslocado entre terras diferentes de rio – sai um desses caminhos de homem impossível. Este homem – ou alguém no lugar, simultâneo desaparecer na casa de quase todos os dias, onde as divisões se esquecem do seu último movimento desencontrado. O inultrapassável do gesto que se confunde com a ferragem da porta que o permite à paisagem familiar. Impaciente. Este homem – ou alguém no lugar, ainda sabia do seu lugar e do grito permeável às pessoas a ele agregadas, inertes soltos na violência do tambor insano dos dias. Um dia. Um dia de todos os outros, esquecidos pelo calendário da família, este homem deu à casa, trazendo com ele a baixa-mar do rio incrustada nos tornozelos, e o pescoço tatuado – uma trama de corda frágil, o perímetro antes da cabeça numa cor quase sangue. Este homem normal, pontual no hábito ébrio e na urgência em ser outro sinal menos dor, além do hálito que percorre agora tudo o que é divisão, a partir das ombreiras da porta de entrada. Este homem chegou a casa com o pescoço tatuado – uma trama de corda frágil, e trazia o colarinho escancarado. A mulher antes de perguntar adivinhou, unindo completo o desenho que faltava ao esboço no pescoço. O contorno de um sorriso aberto no estômago, apagado de si. Morto.

domingo, 23 de março de 2014

À ESCALA





A memória. Outra coisa, o Norte – onde me encontro um lugar, num chão de manhãs solarengas partilhado com um bando de perus sossegados no seu sangue. Os membros todos curtos de voo, uma extensão abreviada do Sul abaixo deles. Sombras volumetricamente instáveis depois do sol, no portão de ferro – espaçam a paisagem atrás de nós. Vertebrado desleixo. O lado tardoz encerrado à vista, por onde se ouve a voz de quem manda para lá, num sotaque das rochas – de onde venho, até à cintura. Caminho daí para cima distraído, num corredor desigual, e quase não reparo no chapéu. O sentido do fedor e do engano os olhos, simetricamente percutidos distantes. E uma cor desconhecida. Atraso-me até um dia, onde me reconheço perfeito miúdo, a usar um sorriso a condizer com joelhos esfolados, centrados na carne viva. Atraso-me até um dia, onde me reconheço perfeito miúdo, encravado numa gargalhada de nervos, desenquadrados da fotografia de árvores desbotadas mais altas do que são, à escala dos anos novos. Antes da lâmina esquecida da faca, num bolso. Antes de um pulso, mal costurado pelo enfermeiro de serviço, acima do nervo branco à mostra. Depois do roubo da atenção tentado a um cão raivoso na sua refeição única. Depois o cheiro da lenha, desse lume recente acabado de atear – o ensaio geral na casa do fogo – interior ao corpo, uma floresta onde se iluminam formas enquanto se arde bastante de pássaros rudes. Pássaros alguns de pouco bico ou nenhum moldado pelas mãos das velhas nos seus finais de tarde na laje térrea, diante da loja das bestas domésticas alimentadas a farelo. Das velhas nos seus finais de braço, negros ponteiros pelas horas familiares dos mortos. É uma noite, e tudo passa. A partir desta janela, o autocarro desloca pontuais pontos de luz, à distância de uma rua intermitente. O pé-direito não é um número menos de três, mal medidos metros confortáveis em altura. A partir desta janela, uma grua calma, cravado elemento na paisagem, lança parada no ponteiro do relógio que falta às velhas, virado para a lateral no fim do aqueduto das águas soltas. A partir desta janela, um pássaro razoável poeta em pleno acto libertário, em que se solta dos versos mais pesados, e descreve a mais elevada narrativa acima dos telhados. Onde uma antena chega mais rápido ao céu. Onde chaminés exaustas de gordura, dobram a direcção no último momento da fachada vertical, e encontram caixas-negras, clarabóias soltas permeáveis à cor da noite. Cordas de aço vazias em largura, ao longo dos edifícios de construção. A excepção, essa interrupção da certeza ao terceiro piso, onde uma toalha branca encardida a meio. E umas calças mal estendidas sem tamanho. A partir desta janela, a cércea que termina na rua vazia. No encontro com o piso mais vago da ocupação, do espaço poluído de fantasmas e máquinas em desordem de estridências interiores à pele. Com nada. A mesma cor o céu todo. Cotejada a cor, tudo o resto é escorrência para cima dos outros contornos da rua, sapatos abandonados e caixilhos. A partir desta janela, um pássaro razoável poeta que deixa atrás de si um rasto de ausência, e engole longe as palavras, mestiçagem de migalhas de pão e parafusos, o perfeito par incorrecto na dança dos elementos polvorentos. Onde a cabeça é a finita porção de geometria que sobra do infinito da memória. O que me tornei depois da hora, do primeiro choro violento.

sábado, 15 de março de 2014

SINAIS


Semáforos, bandeiras e o vento
na pele.
Um ponto, sinais, entre mãos
mudo de voz.
Mesmo o aceno outro
esboço, um gesto
de abandono por extenso.

Traço corpo ponto, interrompido
perpendicular ao chão.
Do lado onde repouso, a respiração parada
explosão no peito.

Sonho mínimo – detalhe
do pesadelo o caminho cortado, cara-metade
desfeita.
Do caminho, outra metade.

No final, ao fundo
a suave sombra da árvore
vertical.
Na garganta o eco a meio
do poço, uma lágrima.

terça-feira, 11 de março de 2014

DEPRESSÃO





Incapacitante outro. Este também de mim que fica para os lados da fronteira anulada, escancarada plana para demónios acossados por unicórnios impacientes, no adentro silencioso de uma cabeça de elefante. Contrabandistas da propriedade verticalmente abandonada do corpo, que me propõem chantagens simples. Coisas iguais a nada ou perto disso. E é desse nada que não faz falta, quando o horizonte é demasiado largo para o prisioneiro que nega a sua melhor hipótese de fuga, encadeado pelo sol que lhe é demais, que as coisas começam a ter um sentido que lhes nasce das laterais, outras coisas. Depois de meses, depois de objectos-par imperfeitos, dolorosos pelo contacto até à víscera, os tecidos íntimos da carne e do sofá, objectos rombos que rasgam a matéria sobrante. Pela habitação espalho todos os rótulos desentendidos na diagonal da leitura, onde procuro por números inebriantes e encorpadas percentagens de teor alcoólico. Me não interesso por sabores, nem por tudo aquilo que estagia sossegado por detrás de superfícies reflectoras do meu rosto. Uso-me desse tudo, e nada. Puta que pariu a doença mental, concebida como trela estranguladora para os cães desavindos da matilha. Me não interesso por sabores, e não são as paisagens permitidas por todas estas janelas, que me projectam para longe destas pesadas sombras que me apagam o contorno igual todos os dias de luz. Incapaz sou, de sentir uma angústia diferente, um ânimo heróico que despolete a última viagem gratuita, ao encontro de outra superfície pedra metal corrente de água. A farda lisa do prisioneiro o pijama, pesadamente grosso do tecido e da conta gráfica apontada nele, invisível, dos banhos que deveria ter tomado. Além dos fluidos corporais, um desgosto conjugado a partir do ser sou serei, um caralho de um nada se me apetecer a mim, que me não apetece nada. Desaparecer sim, uma anulação intensa que seja de um sinal matemático apropriado, se a matemática for razão certa. No insuficiente de tudo se consome. Os efeitos-causa, de todas as substâncias inventadas para paralisar a parte sentida da alma física, arrancada ao corpo as vezes demasiadas que um dia tem. O álcool aguenta-se até à cama, o resto é pesadelo do sistema digestivo, vomitar como um gesto paralelamente normal, o bom-dia para fora na direcção do desconhecido com quem se é cordial. Vinhos traçadores de todas as nuances do rosto, na violência de se sentir carne do outro. A cama das noites curtas, os pés cortados pela forma deste incerto rectângulo, incapaz de conter o que se deseja até ao sangue. De ser coisa além do corpo, desaparecida ausente. Mas é corpo colado com suor ao tecido que me corta às postas. O problema das dimensões largo defeito, é aqui a urdidura de teias imaginadas neste espaço demasiado finito para a minha loucura temporária, que também nega espaços abertos. A cama dos dias longos, transformada nisso pela evolução do sofá no seu feitio que se não me adapta na posição sentada. Horizontalmente indiferenciado, não existe outra posição. Tragicómico lugar de se morrer, não um qualquer e qualquer posição se me afeiçoa, a não ser numa fatalidade de segundos, em que se não escolhe o lado da boca em que se transforma pontuação de frases não-estranhas, repetidas até à exaustão da última coisa.  O colapso das dioptrias, das imagens em paisagem, a que se não consegue atear de vastidão, no profanado espaço interior ao corpo. O lugar das meias de renda da infância, dos parentes de fantasmas que trabalhavam na cozinha de uma quinta brasonada no muro intransponível numa zona esquecida. O inferno se é rosto na cara dos outros, incompreendida expressão deles olhos pelo teu movimento parado, enquanto se lhes diz que não é possível tudo aqui, nem até ao café da esquina. A partir do corpo prostrado geométrico no meio neutro coisa nenhuma do sofá, troço de rocha instável sobre os pilares descansados das pernas fundadas nos pés sapatas, directamente abandonadas à superfície, desertas de enterros e terra aprofundada até à água. Traço-me ao contrário, não importa, tudo é circunferência, os mesmos sítios algures na vertigem da roda, onde se enlouquece em dias não esquecidos. Abandono-me aos sons de dentro ao corpo, onde não funciono em pensamentos mais vastos que a largura da cortina dos vãos. Não compreendo o resto, e recuso. Pergunto pouco, desvio-me do ser em mim original, transformando-me mais cínico, para a única via disponível da desordem natural das coisas. Não quero ser outro nem este, um estado de água porventura, rápido no encontro com uma parede natural no espaço de um abraço, do caos à natureza. Como pode a paisagem ser tão neutra, no que os olhos desenham para dentro da alma. Depressão profunda, sem fundo. Mundo animal. A incapacidade do garfo em ser ferramenta numa posição, a faca hesitante entre o fio da fronteira, a ponta mais ao cabo ou se entra pelo corpo adentro. Tons de carmim engarrafado, sangue que se engole em qualquer temperatura, a boca descaída frincha na inexistência de um plano de emergência. Maus fígados, outra cor, mau vinho. Disfuncional ocaso, e o dia pior. Incremento das horas maiores até zero. Na vertigem alcoólica, acordo num pesadelo acidentado de frente com o lugar onde nasci. Menos mal mas não cura, o vinho. Nem fogos transparentes, milagres que te agarram a cintura enquanto prolongamento da garganta longa ateada de betuminoso virgem. Arrasto-me lesma despegada à superfície, até ao canto do quarto com gavetas. Escolho os comprimidos mais brancos, a única cor capaz de me tocar as mãos, num momento. As bulas resumem-se até ao lugar dos efeitos, a única parte do texto que me emociona até à indiferença. Subo as doses aos pares, múltiplos, no espaço de minutos. Esqueço que a certeza, um resultado, é uma assunção inventada para o sossego dos racionais isentos. O caminho curto pela escarpa, pelos cantos da boca resíduos de mar, espuma química do corpo a apagar neuroses. O temperamento frio do fogo. O barulho imaginado, não sei, de petroleiros quietos encalhados longe numa lateral à praia, atravessados paralelos à espinha que abandono para trás das costas. Sou ainda eu, desviado por barulhos que me afligem a partir das escadas comuns, os diálogos e passos que não suporto sorrateiros por baixo dos milímetros que separam a porta do piso do exterior que recuso. Esta rua como rápida excepção, ponto de origem trânsito ponto de recolha inverso. Na rota das especiarias da alma, saleiro e pimenteiro amortecedores desta carroçaria insana, alérgica a mecânicos, padres sinaleiros e semáforos de baixo consumo. Para o caralho que os fodam a todos e às putas desordeiras, calçadas de meias desligadas do corpo por espaçadores de linho. Grandessíssimos cabrões os demónios e as aranhas que os ajudam por dentro das paredes de carne entrelaçando farrapos imperfeitamente geométricos. A noite intermitente, dependente dos candeeiros de luz dolorosamente amarela. O formato maior da folha onde se escreve angústia. Vomito bastante, nunca purga suficiente dos fígados e pedaços soltos dentro do meu corpo desmultiplicado por tantos zeros. A barreira da cegueira, os óculos turvos da poeira que sobra dos poucos móveis que aqui existem. Para o caralho tudo e todos nós. O sexo é coisa das paredes vizinhas, transições impossíveis para corpos assim anulados. A mulher que me ocupa a cama – mil vezes antes me transformou em carvão carnal de labaredas inextinguíveis até agora – lamenta-se gritos às paredes, o porquê disto de mim, e traz-me um volume de tabaco para a semana. Ela fala, muito, explica-me assim o infinito da causa racional a que pertence. Ainda não entendo, e ouço-lhe a voz desviada para a minha cabeça entre as pernas, as mãos juntas na reza ao absurdo do totem inicial, enquanto vomito não sabemos se a última vez por hoje golfadas de espesso desânimo.


segunda-feira, 3 de março de 2014

ASYLO




Esta porta não tem número – é escultura quase plana, algum relevo roubado à espessura bruta de uma pessoa lembrada parada à sua frente. Material esmurrado silêncio pela sua mão em falta, som artificialmente concebido para percorrer o pé-direito do edifício esquecido de chapéus mais altos.
A rua insinua-se gargalhada pelas costas, como um rio histérico indeciso de margens. De estridências de borracha e pele falsa nos calcanhares. Barulhos fazem todos, na corrente de pedras soltas onde se apagam letras na face ao ar, disponíveis para versos incompletos pontuados amnésia onde deviam rimar. Um tronco imperfeitamente belo, o melhor em idade descendente da floresta Norte, tombou directamente para degrau. Executado várias vezes a caminho da altura, nesta coisa que lar não é palavra suficiente, habitada por mais caixas que corpos, com as palavras HERANÇA REJEITADA inscritas nas faces todas. Enigmas, sorrisos alarmantes de escrivães mortos, parte das suas palavras em fuga pelas frinchas do cartão velho, alegorias do infinito reciclável. Espelhos partidos em todos os pisos, pelas ocidentais biqueiras dos sapatos por aqui perdidos num tempo, outro. Os corpos nunca originais, distraídos das suas esquinas, são aqui outras coisas da luz, contornos absolutamente inúteis. Artifícios apagados no cheiro de roupa despida lenta e grave de cima para baixo. Os objectos sempre superfícies à quantidade, em que se tropeça pensamento, num quarto vivo lá no fundo tantos dias quantos cantos. Prolongam-se rodapés no edifício de poucos pisos ocupados, a constante interrompida por vãos de outras portas sem número e estuques barrigudos. O meu apelido incompleto, na boca imediatamente esquecida na paisagem do teu corpo interrompido em corte. Plano aos pés descalços, golpes nus à superfície. Resume-se queixume geométrico de um anjo, desajeitado pelo torpor do vício que lhe não pertence. Ossos compassados a espaços ponto. Só suficiente, por eles separados. O céu como pesadelo igual aos outros, atravessado por angústias velozes e facas afiadas debaixo da cama onde já existimos. Caído anjo, barafusta ao nível do chão das nódoas que lhe escurecem o corpo pálido perfeito, antítese desta luz da cidade dolorosa. Colateral insistência, sugestão. As sombras mal medidas dos prédios, que adormecem de lado ao meu corpo, nos cantos do quarto. Vivo lá no fundo. Para lá a fronteira abandonada por um espírito irrequieto, junto dos materiais transformados em construção.
Esta porta não tem número – é letra.
Um lugar lembrado pele, anestesia dobrada em palavras posições todas, sexo indescritível, espesso como a madeira do piso. Objectos mais antigos que a minha vida, empilhados por loucuras arrumadas, outras vidas a um canto. A desistência de um anjo, surdo e pálido – o corpo nu que guardo à janela com parapeito de Inverno, a estação do último suspiro da manhã.