domingo, 16 de dezembro de 2018

INVENTÁRIO





A voz, minha mulher de facto dizendo lá para dentro: tens a cama para fazer às visitas. A lâmina líquida das coisas oportunas, espelhos espalhados pelo lacado da noite, devolvendo mínima a luz sobre tudo. Adiante. Estimadas quantidades, iniciamos assim contagem de um certo número de artigos nomeáveis contando connosco: quatro paredes três janelas duas divisões um telhado de uma água um portão de garagem um ponto de luz em cada divisão interruptores a comandá-los uma bancada estruturada em perfis quadrados de ferro uma pedra mármore sobre isto. Dois de alguidar sobre a bancada, um verde outro vermelho, não dando os dois bandeira. Uma embalagem de plástico para o quê lhe faltando a tampa um molho de chaves um escorredor de louça dois cantos um para lado do portão de garagem qual vai primeiro? Atira, vai. À esquerda uma garrafa de gás duas vassouras e uma pá. À direita instrumentação para lidar com pequenos incêndios de trazer por casa lhes faltando só lareira para o ensaio geral vieram aqui parar em trânsito para outra paragem completos por si espeto tenaz fole de couro vassoura pá, um assador de castanhas. Um chapéu de palha sobre um boné sobre espreguiçadeira de praia, uma roçadora de mato sem fio dois baldes de plástico verde e amarelo um moinho de vento com as pás cada uma de sua cor em vermelho roxo laranja amarelo verde azul. Sob a bancada por cima do chão uma caixa de ferramentas esmaltada à cor verde esperança encostada a este conjunto uma bicicleta rosa. O tapete na entrada uns chinelos de Verão móvel metálico para o fogão pano preso por elásticos a esconder outra garrafa de gás ao serviço de lado outro móvel em material termolaminado a duas gavetas de abrir duas portas de bater. Sobre este móvel, um pote com sal em madeira e vidro uma tábua de queijo um pacote de leite por abrir uma cafeteira italiana separada desmontada um copo de vidro virado para baixo. Nossos dois pratos sujos do jantar à espera de ver água vai uma peça basculante onde se guarda o pão do dia um cesto de verga uma travessa de casquinha onde um pacote de café um pacote de piripíri um rolo de sacos plástico. Na parede vão aparafusados uns quantos suportes todos de pau um isqueiro lá um rolo de papel de cozinha um porco segurando no lombo uns panos para as mãos uma pegas ao lado um frigorífico de portas abertas sobre ele um relógio a dar horas fora do lugar noutra hora que não a nossa porém trabalhando tiquetaqueando fazendo horas extras o relógio branco e amarelo um tarro um cinzeiro de barro uma cristaleira em pinho maciço com alguns anos começando por cima um limão em barro vidrado com uma pega nele uma terrina azul e flores a ela agarradas à noite que vai lá fora um par de jarras em louça pintada três portas com ripinhas e vidrinhos a deixar ver um pouco lá para dentro copos de três de água de cerveja de shot de aguardente uma prateleira preenchida com os cacarecos do costume sempre uns porquinhos à cor deles outros brancos de cal floridos uns pratinhos um com nome outro só com uma letra uma vieira virada para cima uma chaminé Algarvia em miniatura um Buda dois elefantes um par desirmanado de botas sobre o tampo um cesto dois cestos de verga um vazio outro cheio de muitas coisas que não prestam um copo de zinco lá dentro uma escova para o cabelo uma tesoura e um lápis de carvão ao lado dois potes de cobre transmontano uma folha de couve em cerâmica uma lanterna a funcionar a pilhas um canivete suíço um maço de tabaco uns tostões um isqueiro uma carteira com algum dinheiro um telemóvel barato desligado até ver do Mundo porque sim porque vejo pela televisão da tasca da esquina ali à rua de cima uma ou outra manifestação umas montras partidas mais incêndios nós ainda aqui lutando pelo nada revolucionário de um sol que já se foi por hoje deixá-lo ir é não pensar muito que tanto nos cansa esta partícula corrupta vizinha que nos separa e aproxima umbilical sulista espertalhona cartomante oportunista carteirista humana bainha dos retorcidos. Golpe de vista para os outros nós nenhuns mais olhos que barriga ferragens marteladas nos costados da madeira e marteladas em si mesmas servindo para abrir fechar gavetas uma infância de cachorro escolhido entre a matilha à justa de uma caixa de cartão na berma dos pinheiros. Babilónia a pé ou de bilhetes pré-comprados ao pé-coxinho a quem dar um coração assim aos saltos um momento vou já aí.

A voz, negra de pancada a cair para dentro de onde vem do teu sono solto a ideia que tinha de ti a perdi antes do primeiro olá o abraço ao futuro adeus. Preciso um pouco mais de ti afastada sabes bem toda essa música que te despe aos meus olhos num acorde de semânticas avulsas palhetas violinos sazonais ligados à tomada dos sentidos. Dança a recta depois da curva se cumprimentam as paralelas para lá de um impossível maravilhoso te cai o pano em crochet no espelho dos teus joelhos brilha a laranja à lua uma ferida aberta a fogo no peito nocturno do céu de cruzadas palavras um par de mochos debaixo do mesmo guarda-chuva o tema magnético esquecido na porta do frigorífico uma mesa um banco corrido de cada seu lado outro lado da rua uma toalha de centro aos quadrados verdes claros verdes escuros duas tolhas de rosto uma em cima de outra um cesto de fruta duas bananas verdes uma embalagem de alumínio uns restos de jantar uma garrafa de litro e meio de água choca uma embalagem de manteiga por abrir dois sinos de chocolate que te adoçarão a boca antes de descoseres a língua que nos permite semelhante desvio. Duas cadeiras de praia junto a nós um biombo a desviar atenção sobre sacos pretos largados por cima de caixas de papelão com equipamentos diversos dentro de si uma ventoinha toda de preto um móvel retrógrado de porta basculante um depósito da pinga um jogo do loto a televisão que nada apanha nas posições possíveis para a antena só chuva miudinha uma ficha tripla um sofá cambalhota um estojo de canetas pretas o livro de Os Cantos de Maldoror uma mesinha de ferro um vaso com flores de plástico uma aparelhagem de rádio e cassete o som emprestado à noite de nós de passagem por este abrigo dos comuns se acertando nos versos um saxofone de preto para a minha preta e um último beijo sempre foi o melhor que conseguimos contar disto e despachar para depois a dois o calendário deste ano de dois mil e dezoito ilustrado com animais da casa um sofá-cama esticado até meio da divisão um edredom para cada um de nós onde está o amor que temos às coisas que cantam sobre nós já dormes que ressonas baixinho desejava eu nunca te ter deixado por acontecer por mais gritos que dês por cima de nós de um dia acima da média.

Há um tempo depois nós nada e continuamos cá como se nada fosse de alguma forma os mesmos quem sabe o melhor disto nem somos nós são as paredes um telhado para a noite não nos cair em cima tão depressa já fomos lá fora mais de uma vez para voltar a entrar no mesmo esquema de esquecer tudo só um pouco nunca o suficiente brincar às casinhas em sermos sérios logo mais agora ou nunca o mapa de um chão de desperdícios onde nos assoamos. Querias saber o que tenho eu e eu tão só a ti deixando de imaginar outra manhã fora do teu sorriso a divisão às escuras. Lá fora ninguém não sendo noite fazendo companhia às ruas. Passando de uma divisão a outra um tapete de interiores uma porta um interruptor de duas teclas uma só delas acendendo a luz roleta mais à frente sobre a cama sempre feita onde nunca dormimos um peixe palhaço dos sete mares que são teu nome um machado tapado pela toalha das mãos uma faca de mato na gaveta da cómoda um tijolo de pequenas dimensões a fingir onde colado em alto-relevo a figura de nossa senhora adorada pelos pastorinhos. Cães ladram para dentro de um telefone de copos rudimentar esticam corda à conversa que andamos para ter faz dias uma guitarra em azuis nós em branco de hoje a quantos dias lolitas de porcelana corada um castiçal uma tripla de velas apagadas seis cadeiras de director empilhadas umas nas outras uma mochila um centro em tudo a dar para a periferia do olhar em cuidados para o perto de ser tão depois disto um guarda-fatos com um barrote a ele encostado um aquecedor para os dias que tremem agarrados a nós que não somos brincadeira.

Apago a luz nunca te vi tão bem no escuro como daqui a pouco. Duas rosetas a que prendemos os cortinados. Cada um para seu lado. Quando for manhã o que se mexe lá fora nunca lá chegaremos de outra forma senão da conhecida. Demos conta um do outro, e nos enganámos mais de uma vez voltando atrás a contar o mesmo, voltámos sempre, virando as costas ao certo a fazer. Demos sempre as boas-noites aos lábios se fechando carnívoros sobre nós não duramos para sempre fica só mais um pouco para aí.

sábado, 24 de novembro de 2018

OLHA QUE SEMPRE







Mão que serve outra que sirva terá, de sempre ser assim ser não direita e esquerda suficiente razão que nos corte o afago à besta fossilizada. Deus das minhas misérias. Caminho de meia pedra, aresta sentida, a fazer do reflexo uníssono. O engano da meteorologia sobre esse dia afastado por azar. Incomodar o espelho com a esfera repetida da mão desengonçada e veloz. Meter o dia na palma da mão de um desgraçado qualquer ao engano, um qualquer. Encontramo-los, a esses, meio perdidos a meio corpo mergulhados na orientação dos teus cabelos, desfazendo a curva na pedra de um mundo. Incorrectas mãos; indicadores atados por um fio de palavras repetidas. Nuas em pelo, lidas à pele de um segundo passado. Amplificadoras mãos; à meeira do abismo de boca, esse descampado por urbanizar. Quase tudo hoje mesmo ao contrário, uns a menos metros cúbicos de terra impraticável.

Estacionar de marcha atrás no lugar pago ao sol, os olhos numa infância de insecto. Falas trapezoidais, azedas, invioláveis. A meia altura ali chegado, empurrando formas para a sombra de si mesmas e depois, as enfaixando com odores de eucalipto. Com mais força a mão na recepção à tinta, sobe e desce, desmascarando a perfeição das superfícies acabadas de fresco.

Não agora, mas será este o movimento repetido na aproximação ao acordo com o caseiro da morada sem cobertura: me agrada todo o tecido de céu que em cima lhe cai tão bem.

Comer com os olhos, perder de cabeça o dialecto achatado das águas. Perder todo o tempo, para poder ir mais depressa e chegar a horas a lado algum. Dar uma lição sobre noite, sobretudo, aos gatos vadios perdidos entre as âmbulas do tempo desmedido alastrando por aí. Indo de encontro aos relógios. Tolerar sua vaidade, ao outro lado deste lado. Falsa maré afundada num poço de manilhas. Mijava-me pelas pernas abaixo todas as noites, até há bem pouco tempo.

Nada na manga. Cavaletes de pau santo, dispersos pelo contorno de fora da praça visitada, cobertos por panos de cores distantes e indiferentes. Sobras de um número falhado por ilusionista disposto a isso por pouco. A figura de um anjo de fora, cunhada na bainha do sonho em posições diversas. Ouso me abrasar, de oníricos pesares de pechisbeque. Pois meu castigo é me esquecer de tudo por mil e uma noites seguidas de silêncio.

Um entra e sai. Sempre tantos sacos rotos pendurados na mão, tão pesados de nada. Ir de visita à tia solteirona, e voltar de mãos a abanar como antes de lá ter ido. Cães a ladrar aos que não estão bem a ver o que isto é. Apanhado sou, por olhos e meias de vidro. Sigo em frente. Finco os dedos no perfil da vítima que me interrompe o horizonte.

Do nada, acordava. Pago bilhete inteiro por dia incompleto. Não se mexem um milímetro, os bichos que me guardam de mim.

Puxar o ar, acelerando faísca ao peito. Disseste, e teu hálito vive ainda de encontro à calote de tais palavras as levando à derrocada morna, ao te perguntar como aqui viemos dar, que sabia eu já a resposta. Se foi já, qualquer amor ontem consentido. É fraco o que sobeja, um vestígio geométrico do que nos segurou enquanto figuras de um teatro de sombras postiças. Calculámos mal, a hipotenusa de nos desentendermos quanto à conta a rachar ao meio. Vamos ficando à réstia da habitação, para lá cá, no corredor atravancado pela paz podre das muitas páginas nunca decoradas às tantas de passagem. Tais livros, livros de sons inquinados, livros surdos de tanto se fazerem ouvir; vozes se queimando ao ar, se espalhando, batendo lá, certo quociente como consciente de algo pior ainda por vir. Matemático. Mandamos vir, como sempre o fizemos, e assentamos arraial no coração das coisas com esquina viva. A monotonia das raízes, cercando o tipo de letra usada, muito escolhida, à sorte de se poder pior experimentar a infecção fora do lugar à cautela. Devemos ter forte a declaração de todos os vícios, de todas essas incompatibilidades que nos estorvam a direcção errada.

O futuro é, por vezes querer contrário tal termo e impulso. Foi ou não, não vem ao caso, entendido o sombrio pulsar das cordas se ajustando ao gargalo do vasilhame. Corpo a menos que só isso. Em jeito, o soluço mais forte que se consiga expulsando para fora do quarto quanta inquietação domesticada. A bandeira do signo é uma cortina em branco. Minúsculas de palavras por dizer, engordando as maiúsculas de si mesmas. Falta já pouco para ser tarde de mais.

O intenso odor a falência, largado por entre gestos medíocres. Involuntária, a noção distanciada de que alma e espuma um momento de tempos, uma perigosa abundância de gosto, mais mar que solidão. A loucura de se antecipar o incerto. Tudo nos foge por acaso de aqui, aos lugares do propósito e da morte combinada a dois em tempos. Te fazes de esquecida, e nem isso agora serve é não. Separadores de betão, dispostos em espinha, e protecções acrílicas acomodadas aos dentes da nossa fadiga rilhada. Olha não.

Levar esta prosa a ponto de rebuçado, até que se lhe não distinga pinga de sangue ou sentido para quê. Faz pouco faz, dos lugares onde passámos à história de todos eles, desordem e multidão. Serena deriva. Havendo ainda palavras e pouca diferença entre nós nas idades, distância à origem, fogo e fundação, é levar pela mão um espantalho até bem a meio de um campo ocupado por milhafres sabidos. Mau feitio, é dar função aos instrumentos de frase batida, estudar a planta dos danos térreos, a distribuição das redes, às arrecuas olhando para os lados, resistir às mesmas palavras como iguais de sangue preso.

Culturas mistas. Aposto nisso o que não tenho. De graus e natureza tão diferente, vinda de aqueles ali no imediato vindouro. Amoralizar a constante, arrepiar caminho, lançar olhar de gente às coisas com princípio. Há uma arte nua nisto, fiando expressivas linhas de luz nas falas para o boneco, nas falhas geográficas se abrindo ao lado de um corpo com as mãos limpas. Está frio, passado. É de mestre, corromper os úteis escravos dos refinamentos. O problema, se o há, se põe assim mais do lado da utilidade da ordem a dar, do que da forma certa em fazê-lo. A tudo, um só golpe tropical.

Dar voz meridional aos porquês, quê do quê, a única prática digna distribuída ao mancebo de bibliotecas. Tais livros desnecessários, antepassados de uma noite estreita. Hesitar, vos digo tão só isto, entre estrelas à mostra e cacimbo que tudo prende à manhã que virá por trás das costas, são só meias pedras as mesmas histórias regulares. Esse comboio já partiu, a primeira pedra nele entrou. Rompantes. Disposições outrora mãos, de claridade e ocultação. Um oriente desdentado, a que se dá graças por não ser já ali já agora. Acabando assim tudo do pé para a mão. E insistimos nesta lástima, porquê? Pela puta da prosa? Para viver em união de facto com um incêndio? Se livre a palavra de um profundo sentido, inevitavelmente não outro que o tempo. Um eco caçador de juízos artificiais. A estranheza de se exibir o coração e, hesitar muita da vontade por terras de boca.

Deuses se pondo nos Deuses, esta a coragem de um animal de boas razões e cores súbitas. Meio abismo onde o vento aguentaste.


domingo, 21 de outubro de 2018

CONTRA TERCEIROS







Acolher o homem
Um dos seus
Passos talvez
Amanhã facilmente
Discutível.

Partido o instrumento
É o fim.

Perigoso hoje
Fazer continência
À linguagem
Da vontade. Enfeitados
Hoje insignificantes
Amanhã. Incurável
Forma de olhar
A mulher.

Ser nome
De padrões
Pode não ser
Insulto capaz,
Criações necessariamente
Água e erro,
Múltiplo cidadão
Forçado à liberdade
Dos mecânicos
O mundo em nome
Breve por vezes
Cores diferentes
Cores sem ruído
Morais de fruição
Clara qualquer grande
Expressão a disfarçar
O recatamento.

Certa piedade
Traje arrumado,
Talvez o louco
Passado da língua
Provocada presa
Artificial. Precisamente
No instante Infinito
Pensar
À partida, depressa
Suportar a disciplina
Invisível das aparências.

Cansados de vício
Nos vamos em morais
Ali mais à frente
Desviar animal
Encorajá-lo às verdades
Esse animal
Suficiente ingrediente
Suburbano
Incitado ao complexo
Prazer das luvas.

Há muito que
O texto nos transforma em
Natureza-morta em
Punhados de eterno.

Voar para o inverso,
Avançar diferente
Estranhamente interior
Uma vez mais
Efeito de rendas
E horas
Por um fio.

Afinar a cor
Às palavras na cabeça
À roda à roda
O tambor do corpo
Fraca razão.

Imprevistas amplificações
Doentes de «velhos
Tempos».

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

CARMEN MIRANDA







Sonoplastia desdentada, esta, criando a ilusão de se coincidir em húmus e lubrificantes. Entre água e chama, entre torneiras e lâmpadas. As máquinas acabando o dia, ainda as árvores rastreando os ventos, filtradas pela cortina de uma sala de estar mal ventilada. A porção acertada de guaraná no fundo de uma caneca, se dissolve em um inquérito de gargantas levadas a um tempo de antes à faca. Horizontes de quartzo em medida mal cheia, polegada e meia de mal-estar. Estamos tão-só para aqui sozinhos, sôfregos, embutidos em maresia vária e inconsequente. Ancião e suas rimas de anzol, largando incontinência e desgovernadas âncoras de significados à pele. Sinto muito. Sozinhos, tão-só disto. Sozinhos, manietando mãos aos espectros digitais, tantos às tantas de um, haja espaço e memória para tanto. O comboio chega, vai vazio no andar superior; entregando, bufo, em mãos os aflitos da hora tardia, os fazendo beijar as extremidades laminares da plataforma. Dividindo espaços temporais, um arranjo de mobiliário urbano lambido pelo sol até ver, por mais ninguém se dando ares de um Deus em forma para nunca parecer perfeito. Sinalização horizontal mostrando certo caminho, a quem se atreva a ir ainda, bolseiro de certa fama anterior, em contramão. Subir degraus dois a dois, sempre foi sinal impaciente e saudável de uma pressa em chegar inteiro ao castigo, levado aos fados do ditado e trabalhos levados para casa. Não havendo nada em contrário, se continuarão de nós a mergulhar a côdea de um pão de dias na malga fendilhada, até cima de ânimo e leites azedos. Ficar a pagar tão pouco por coisa nenhuma, é o negócio de uma vida em que nos querem fazer acreditar. A loja dos animais ao lado da adega, é como melhor as arrumo, às memórias deste ser mais a Norte acertando contas c’um diacho. Nos espalhamos ao comprido de um anfiteatro de colcheias e suas posições inquietas, à meia-distância do silêncio. Madeiras e cordas ensaiam o grito pelo interior da esperança, na desintegração atonal em que nos resolvemos. Neste corpo em segundo, tempo em lado algum igual, depois desta hora marcada por garrote de limos e o beijo na boca da alforreca prematura, dada à luz, unha com carne, sobressais. Soberba vítima, ensombrada pelo vermelho-sangue de um chapéu fogo posto négligé, ton sur ton, desmaiado, em uns persistentes furos abaixo de ainda ter estômago para estas coisas. A cinta elegante de um animal passageiro. Sólido geométrico, acrescentando altura e tesão à multidão ordeira do desejo. Te ofereço a paz minguante de um amor a meio da empreitada, e o sentido absoluto de um fémur arruinado por tanto bailarico. Palco com fundo falso, plantado à superfície com umas quantas espécies de reforma agrária atirantada à terra dos céus. Por uns quantos degraus de pedra falsa, são encavalitados os mistérios possíveis, corriqueiros, na prévia maçada de se esperar sentado por certo ruído ou salsifré – somos putas, é isso? Em vários tons nos desdobrando, à mulher e ao homem, engatando noites enganando os dias. Vozes amarelecidas, desenhando ruas para si, desaguando no Centro de Congressos à pinha de ninguém aí, todos saídos já desta para melhor. Medalhas e santinhas de mesa-de-cabeceira, maculando todos os quartos. Hipotecando vida a seguir por esta de aqui ir ficando, em perturbadas conjugações de verbos pobres, descarrilando em conversas paralelas. Alimento de águas tépidas. Plano cortado a tempo. Perder um programa, andar na linha. Metades se dissolvendo doentes, se tornando enunciados, arrefecem mãos lá, ao deus-dará, aplaudindo a desmesura de uma música a arder indo ao fundo do caminho.

domingo, 1 de julho de 2018

QUARTZO






Morrendo o sol, lhe alivias o corpo de roupas e enegreces o olhar com suas curvas de nível se sobrepondo. Atendes à ovação diversa, rumores de tudo enquanto coisa, à mão levantada, desenhada no mesmo à mesma deste ar em sentido com que nos intoxicamos de direcções acabando ao começar. Um pano azul, amarrado pelo vento à árvore ao lado deste caminho. Transições bruscas, corpos mal se mexendo. O locutor do lugar acendido, se perdendo na própria voz em números de posição forçada, subida, atrasada. Números, o silêncio. Assobiam aos bichos de passagem, marcando um ritmo de reflexos nos vidros da construção abandonada à pressa. Corpos se contando em cinco volumes de pedra bujardada e em outros tantos de água para arder em largura na praia da memória. À primeira vez, o mundo se dessintonizando. Empata. Com a diversão de uma literatura de cordel mal-amanhada, de filigranas surreais riscando o verniz deposto no osso das coisas e sobre nós. Qualquer morte chegando. Não dá para levar tudo, dizem. A sério. De aqui se vai largando a carga inútil, em parte explosão do que virá quando menos se espera, a espalhando pela erva alta do vizinho. Empata. Sim. Não há outra. Fala, fala só. De pratas contrastadas com deformações animais, de abrigos individuais, de poemas rebitados de encontro à pele sôfrega. Areias cinéticas, músicas trilhadas por instrumentos do avesso. Fantasmas barrados à porta de sua própria casa, por especuladores do horror às divisões. Este para aqui assim, aquele para lá então. Minas e armadilhas. Merda. Segue. Vai. Encontra o meio aos sólidos. Empata. Vai. Faz, não digas. Das tripas coração ou cordame para segurar a embarcação do sonho ao cais do espaço pensado para não ir a lado algum. Merda. Que andamos em círculos, já aqui passámos.

Isto não vale dois tostões, é certo. Ainda assim. Sublinha legível o pouco que tens na garganta dos incautos, vindos para mais perto, enganados pelo pirilampo da bala entalada nos dentes do desfigurado. Cara a cara, casa a casa. Espécimes de beco, perdoando em grupo o movimento à areia da ampulheta agitada no rosto do cego lúcido, esse prosador à frente da fanfarra do gesto forçado. De lado, outros bebem à sorte, ofendendo a cautela dos dias, empurrados por máquinas afónicas para fora do círculo. Abandonados ao seu traço, entregues à sua traça. Empata. Fala do que não sabes, nunca de ti. Não devíamos. Constrói uma azinhaga de vício constante, de que te possas ocupar mais lá para o fim disto. De nada serve ires à rocha do passado lhe arrancar o mexilhão das preces ao útil, ao traço descontínuo, e desenhares de novo a amazona translúcida a quem deste a mão em miúdo, pelo nevoeiro adentro até bem junto da rebentação, levando na outra mão seu saco de serapilheira gasta, até cima de corvos atados. Corvos de fila treinados para o embuste. Lembras? Lhe beijaste a boca imóvel, lhe amparaste o vómito salgado com um pano encardido, prometendo que por ela esperavas na volta da maré. Lavando de aí as mãos. Caí de joelhos na marcação de sombra distribuída no chão, vinda das suas pernas lavadas de espuma. Voltei a face mais a jeito, de encontro ao seu ventre já grávido de pequenas luas choramingonas. Jurámos um ao outro, acordar mais tarde.

Dançam sombras em espaços apertados, dançam sombras, roçando o interruptor da divisão por ocupar. Batem portas, batem às portas. Assobiam livremente. Vem vento, batem portas. Vêm umas fúrias, batem às portas. Em pleno dia, luzes de presença se avivam nos tectos. Vês? Até aqui já é qualquer coisa de nada. Empata mais. Nada. Custa. E depois? Nada. Voltamos ao mesmo, ao que melhor sabemos fazer. Do canto, dobramos para o que sobra do espaço, voltamos a África se preciso for, aos seus lagos sem princípio. Com que fim? Desmate. Desmame. Para nos cansarmos. Pois. Cansar a besta, lhe acabando com o lugar de volta. Sim, podes dar uma ajuda. Distrai quem estiver por perto, assobia para o lado. Come só de restos. Em falhar, em frente! Não julgues já, não haver aqui um pouco de amor ou atenção ao próximo. Zonas mortas, dizem por dizer. Ovação. Assobios. Ferro com ferro, travado. Fosforescência. Bailarico de loucos infantes, marcando a dança torcendo o pescoço. Buzinas. Passes falhados. Muito bem. Preciosa ajuda a vossa. Belos empata-fodas me saíram vocês. Enquanto isto, em perder ao jogo pensava. Fazes aqui falta e, quando estás, te digo urgente: o que fazes aqui? Bem sei que se erra por pouco, e por nada. Acolhe a ausência, atira o fulminante da solidão para debaixo do tapete. Não fiques à espera do carteiro, nem lhe faças mal se entretanto chegar a vir. Espera um nada, até à explosão. Limpa os pés e vem para dentro, até que se te acabe o corredor – o último a tocar naquela parede, vai abaixo. Não precisamos aqui de muitos, de muita coisa. Dois corpos, uma faca à vez, a duas vozes, uma mania só.

Acordam à vista, os bêbados. Apontam para esta mesa, atiram seus absurdos os ordenando a sentar a meu lado. Apontam a direito ao mesmo rosto, riem incontinentes, falando mal de quem ainda lhes vai segurando nas canetas e lhes quer bem assim-assim. Desapontados pela atenção que lhes nego, se revoltam dois ou três deles, indo juntos embora à casa de banho, fazer barulho e contar azulejos. Um deles vomita, outro vem à frente a pedir mais vinho ao taberneiro. O que falta, se fica. Doentes de duas abas, passageiros de só ida. Não vos empato mais. Já cá não está quem falou. Se entretenham sozinhos. Façam de conta que já cá não estou. Voltem à casa de partida se preciso for, não me peçam é opinião sobretudo. Não façam nada, digam, se calhar melhor. Desamparem a loja ao Senhor. O estrondo da louça por detrás do balcão, é fraco aceno à nossa imagem parecida, se afastando até depois. Despedir-nos-emos, ou não, não vem a propósito. Nos mudamos de só lugar, ficando na mesma. Sim. Há coisas piores, coisas em que não acertamos. Não. Jogas em equipa, eu nem a feijões. Entre nós, perdemos tudo.

O vento deforma a paixão pelas linhas a direito. Os últimos pássaros contornam o impossível, dando asas à morte dos lugares de passagem. Matéria se decompondo em articulados de terra viva. Esquinas se avivando de luares difíceis de se apagar. Tinha razão ou não, rapaz? Vale o que vale, te dizer bem te tinha dito. Não leves a mal, se de aqui para a frente nada houver para contar sobre nós. Melhor. Deixa tudo como encontraste. Vazio. Empata. Vá. Nada custa, para além destes momentos que nunca evitamos por não nos conseguirmos desviar a tempo. Deixa. Há males piores. Pois há. Há mais alguém passando sede pela morte dos outros. Bebe. Bebe tu do mesmo copo, não me sujes outro. Vem aqui só te despedir. Com o sol já para lá, ou quase chegando, não te aventures nessa manobra divertida, desesperada, de querer cá ficar. Vamos.

Esquecer todo antes, é pôr à míngua o incêndio do ciúme. É. Estarmo-nos a cagar para esta dor no peito ao contrário. É. Haver nada melhor para fazer. É. Jogar quantas pedras à figura de um assunto. Que falta falarmos. É. Lumes e costumes brandos, levam seu tempo. O que não temos. Estamos quites. Não falamos de nós, dos outros não queremos saber. Bravo. Naturalmente, se recebem em casa os próximos, sobreviventes a dias seguidos retornados. Afinados à cor a desaparecer. E se dão à corda da conversa, confirmam o que sabíamos já de outra conversa trocada. Que um deles tinha apanhado pela frente um AVC vindo em sentido contrário. Mal se nota. A boca um pouco ao lado, sim. O rosto, livre da camada de desgaste de origem. Uns anos a menos, mais coisa. Um dó li tá, quem está livre livre está. E só. Para o enganar de fresco, voltamos tudo, não ao princípio, mas ao meio da conversa. De falar, não perdeu ele a vontade. Safa.

Mãos à obra, a erguer a coisa mais inútil a meus olhos. Olhar o tecto encardido de humidades, correr a casa toda à procura da origem desta maldade. Desenhar num pedaço de papel rasgado em dois, um simples esquema entendido por todos.

Aplicar cura à doença do tempo, é o mister perdido de todo artesão de sonho bera. Trás pás zás. Ui. Não? Venho já.

A repetir manhãs, de frente para o aqueduto das almas suicidas, a lhe contar algumas pedras de cabeça. Te enganaste, antes e depois de mim. Beliscar o osso, em incontidos actos de ternura aos simples de nervo. A dádiva sentida aos acostumados ao esconso dos dias. O horizonte se torna, à força, naquela estampa maravilhosa de boas cores impressa no livro encostado ao meio da sala, preso com gravidade ao móvel e nunca aberto mais do que uma só vez. Quando to mostrei. Se tornam, aquele horizonte e este livro, um e outro, mobília aparatosa da qual nos desviamos por impulso. Enegrecem os caminhos a noite vai a passar, nos damos com ela pela frente. Os cães lhe entorpecem as canelas com seus latidos por extenso. Outros bichos e nós, lhe cabemos no bolso. Tiramos à sorte, a ver quem de nós não pregará os olhos e se esquecerá depressa da sólida geometria de tudo se apagando, não sonhando sequer. Tempo há de sobra, para nos esquecermos quem de nós. Somos à mesma, e já tínhamos sido antes, apanhados na rede da madrugada, essa intentona de pássaros esquivos decantados ao ar, apostados em impingir novo dia às coisas contornadas por aparente desvio à norma do dia anterior. Debicam eles a pele luminosa, arrancada à possibilidade de aqui nos ficarmos pouco mais, nos prolongarmos uns segundos numa ideia fixa de amor à espécie descontinuada, ou o que pensamos deixar, atirado nos braços de um ente familiar, bicho e gente. Vinha a calhar vir a passar, e era sobre esta madrugada, por cima dela, que iria falar, não fosse a distracção dos pássaros me ter desviado do objecto e tema, e de que forma, sobre os quais apontava a mira. Os olhos a olhar, diz logo, aprisionam ao perto o detalhe que se não pede a um pensamento livre. Remoçamos, espumando pela boca loas ao absurdo, num ventre de álcool amniótico. Vem com a primeira hora da manhã, um doce distúrbio e amargo de boca, baralhando épocas imprecisas, acordadas no corpo moribundo de sono. Olho aberto outro fechado, me endireito no sofá de pele rasgada atestada de verdade pelos gatos da praceta, olho à direita à esquerda, não vem ninguém. Piso o chão, carregando sobre as lesmas que me atapetam o soalho saídas se sabe lá de onde. Transbordo a febre para a cal fendilhada da penumbra, finjo estar só para aqui assim. Não há palavra, uma só, que me entregue à concordância de um tempo específico, não, não há, nem se pressente aqui a prematura necessidade de se desmascarar o presente a partir de um artefacto acabado de inventar. Andar perdido na minha cabeça, virando do avesso seus corredores de mal-entendido, me toma toda sensibilidade à extremidade dos membros. Não quer isto dizer que, de longe a longe, não te ouça falar animado sobre jaulas para crianças, sobre contos de reis desperdiçados em farmácia, sobre o projecto incrível de havermos de cá voltar a Marte e nos multiplicarmos de vez à vez, sobre futebóis de aguardente, sobre o homem que matou a mulher por esta não ter apagado o cigarro quando aquele o ditou, ou sobre quem melhor se desenrasca na cozinha da casa dos segredos. Atenção! Não quer isto dizer que te não levo a sério, não é verdade. Pois tens toda minha atenção. Para que o desvio te não saia às cegas te darei um abraço e um empurrão, assim que tenhas escolhido o caixilho de qual janela desta altura por onde te irás, abespinhado, assentar os pés no chão. Como vês, não ando a dormir assim tanto, tenho estas olheiras que me não deixam mentir. Só não quero ter mais motivo de sobra, para demorar conversa entre nós à mesa do café.

Ando a contar desde aqui, entre este e outro, espelhos e cobertores. Ventos-meninos despachando arbustos de encontro à parede que nos separa. Sobre interiores, debaixo da roupagem de cortiça colada ao corpo das árvores, concordamos que é pouca casa para bicho-do-mato, ainda que à escala mínima. Vim cedo, demasiado cedo, mas já não conseguia dormir a teu lado, nesta noite que me ardia nas costas. Assim, levantei breve sem desassossegar. Tomei café sozinho, de pé. Fumei ainda noite. Me banhei em águas mornas. Evitei o reflexo, ai de mim, nas pratas areadas de fresco. Empurrei móvel para chegar aos sapatos atirados para um canto. Dei beijo de fugida à criança de nós, enleada às suas quimeras. Utilizei o verbo amar, se bem me lembro, conjugado num presente. Atirado para o futuro, soletro em espaço apertado sobre quantas voltas à chave na porta se deu, enquanto se vai levando o lixo para baixo. O ar parado na caixa de escada ficará, tresandando um instante.

sábado, 26 de maio de 2018

TERRAPLANO






Cada um no seu lugar então sou, este princípio de sombra infundada. E é o que é, distinto de nada ser; não que não seja um bom disfarce a manter. Água descarregada, sim. O pio dos pássaros, costurando a última parcela de linho neste recorte a meio pelo dia. Os pássaros, e nossas penas. Ardis de bronze, assegurando a efígie aos próximos. As crianças espalham cartas ao acaso pelo chão de inertes. Naipes de sol e lua, se acertando e caindo em desordem que se entende. Andamos pois, descalços pela casa. Andávamos, vamos, antes daquela voz se retirar, e nos obrigar à acção até à absoluta extinção dos cristais resistentes. Nos cortamos com a parte que nos excede, enrodilhados no cotão difícil do rectângulo jogado no chão acima. Vamos ao lugar, em gestos atalhados. Maus ossos dizem, não fazem a figura de um ás. Montículos de tecido, cozidos à distância repetida na largura do artigo; suaves dunas de corda se dissolvendo em significados. E alguém no céu mexeu, mais de uma vez. Cadeias de ferro penduradas no prego, desenhando bicho de luas rodopiando, cercando sol azul de fingimento, por aí fora, desaguando a última ilharga na praceta de um sino quadrado. Me dás resposta seca, à pergunta que me não lembro de ter feito, e te retiras para os fundos indo dar água às plantas de que falas quando com elas não falas. Encontros de parede, se dando à esquadria das sombras. O vento vem encostar a mortalha dos cortinados à planta nua de meus pés, me entrevando a fala nesta divisão branca. Caixa de ritmos substituindo a maquinal esperança, pela experiência atonal do coração que se me desprega do peito oferecido à bala de teu olhar. Polindo a pedra, se ganha um espelho de águas paradas, sôfregas por matéria a se diluir. O susto pregado ao ser assim mesmo, encontrando palavra que é só por hoje amanhã. Cânticos texturados, se alternando a instrumento flautado, em valeta caídos juntos num fraseado de copos meios cheios. Vamos, nos continuando. Corres na minha direcção sem morada, te atiras para cima do catre, estendes o peso todo do corpo a meu lado esquecido. Húmus, psoríase: depositados à beira da ferida escancarada, rasgada durante a fuga ao incêndio acabado de lavrar, prometendo noite longa e um belo jogo de luzes e azar ao jogo. Reviro olhar à existência aparecida do que lá fui, registado à queima-roupa por fotógrafo acidental. Perco andar, num pezinho de dança com o ímpar. E assim, se conquista, artificialmente, a palmo, pouco mais de metro quadrado ao terreno da morte. Fonte de águas santas, fumeiros desatados, canícula – pão de mistura. Frutos secando sobre serapilheira sobreposta à cortinha orientada para o sul do sol. Tenho um cão de febre e a visita deste enfermeiro pontual, não se esquecendo de mim bem quero em dias seguidos, precisos, uma série deles, me picando ao de leve nos braços, me corrompendo a morte me trazendo à vida, se valendo da carta alta dos venenos. De cima do lioz aparelhado à berma do cais, putos se oferecem às águas sujas do rio, experimentando à vez iludir o tempo de ir. Intrusos rígidos, descompondo tudo todos, em ânsias – atiram terra aos olhos que os olham; atiram suas merdas reagindo a quente, defecando decassílabos difíceis de arrumar na prateleira dos que se ficam. Tiro ao boneco. O gosto dos alteradores de consciência, resistente ao desalojamento debaixo da língua. Jogos de arcada, psicadélicos. Elefantes sagrados, revestidos a napa cravada de afiadas tachas, cuspindo cor diversa e putas de estilo, exagerando oferenda aos mortais. Todo o equipamento alinhado ao longo desta câmara escura obturada por paredes de fungos de estimação e ódios de cultura. O espaço nos engole, pois, nos desviando de viver outra vida. Fechas a porta da instalação sanitária, te ouço deste lado a descer o pano das roupas que te sustentam, e o crescendo quase nítido da sofreguidão a que te abandonas no agrado à própria. Não havendo nada em contrário, bates à porta antes de saíres por aí. Cá te espero. Isto promete. Indumentárias a preto e branco, aos quadrados de outra cor, lisas, usadas acima do joelho, arregaçadas no braço, listadas, com dizeres. E não é tudo, não. Não te esqueças do que ias a dizer. Voltamos já. Homem breve, desmemoriado convenientemente pelo pesadelo adoptado. «Filho atravessado» é o que me ditas ao ouvido, entredentes, esperançado em resultados visíveis gravados no branco da folha. Brinquedo vaivém, balouçando a sombra que te estende deste nada para o lado, do lado a fixar como coisa sem importância. A mania da prosa se repetindo, ecoando fundo a despropósito, na louça da alma sem tampo para baixar. E de ti, nicles, nada se sabe. O resguardo da esperança é fino empecilho ao banho de sangue que se entorna em cada noite bem dormida. Insalubre sonho ou doce insónia? Venha o Diabo e escolha por mim assim como assim, como todas as vezes antes. És outra. Fechas a porta, te encontro a diferença: dás duas voltas à chave, nitidamente. Acusas o tema de terra e ar (não contes comigo e outros de nós), suavizas a instabilidade dos entornos vívidos, ao marulhar das ondas de vidraço se levantando no terreno da tua projecção. Vai dar um beijinho ao avô, vai lá. Preciso do número do teu segredo, sei que o sabes de cor e salteado. Anteontem o sabias. Basta mo dares e ficaremos como dantes, indiferentes. A casa nos espera no fim da rua, vazia, vibrante da mixórdia sonora que a entope no interior dos tabiques. Hipotecámos todo vasilhame, por um fio de água corrente. Sujeitos a litígio com as perguntas de nós, levamos ao extremo a imobilidade do personagem. Espera sentado. Também eu já quis mais sair de aqui, respirar outra coisa. Não sou capaz. Te acompanharei porém, caso mudes de ideias, até ao fundo do corredor, saindo pouco antes do quarto de serviço. Blocos de pavimento à cor envergonhada, dispostos em espinha, formando dancefloor de aluados. Apanhando à mesma do vento, tal e qual. Árvores de folha caduca, metidas pelo elenco dentro das espécies. Fixações àquilo. Barras metálicas. Varões de aço. Rosas-de-pedra. Punhado de terra. Piso artificial. Areia solta. O mesmo vento de há pouco, e sombras no entra e sai pelas portas abertas, na arquitectura notável que se desenha para os espaços vazios. Queres o quê? E tu? Como dantes se davam as mãos, se empurravam carrinhos de rolamentos. Cavalo de pau não é já, mas se lança fluente em frente de igual. Se arrastam pela tarde, as embarcações idas ao futuro, alguém as levando a estacionar no hangar do dia presente. Um mais um, pois. Dois mais um, sais. Ser saliente, a recusa em me esquecer de trocados. O assombro das mãos apetecidas que se jogam numa só mão. FAITES VOS JEUX. Pois dizem más-línguas que nunca nada de diferente sai à morte viciada, condenada que está a recolher o mesmo cadáver esquisito de todo igual.



domingo, 4 de março de 2018

TRIAGEM







António José de Oliveira, gabinete de electrocardiograma. David Alexandre, gabinete dois. Tosses, e calas o que te vai para aí. Circulam espessas as vozes, algumas coagulando nos encontros de chão e parede. Maria Emílio Loureiro, triagem 1. Conversação entre Governo e PSD, ou lá o que é, passa, na televisão sem som. A jovem, exagerando a cor do sangue no rosto, tendo se sabe lá o quê, à espera que a chamem lá dentro. Luís Castanheira, gabinete de electrocardiograma. Podia guardar os nomes para mim, mas não os quero. Certos e enganados, de viva voz, atirados para dentro da sala de espera. Onde os sentar, cadeiras azuis. Devia ser quarta-feira, alguém disse. Paulo Alexandre Mocha, gabinete 11. Familiar do senhor Jorge Amorim, à sala de médicos. Valentina do Ó, gabinete 7. Paulo Jorge Santos, triagem 1. O casal de meia-idade, meias-tintas apertando no tornozelo dificultando a progressão em tão pouco espaço, se chega aos outros, nós, os que já cá estamos, se sentam na fiada de cadeiras junto à parede onde estão pregados a Planta de Emergência e sinalética avulsa. Não se liga a nada, nem a coisa nenhuma. Sim, vai à volta. O baraço escarlate é desenrolado, se imagina, sobre os quadrados de chão branco sujo, se desfiando aos poucos nas arestas vivas da construção. Toca o telefone. Investimento no interior, em análise no noticiário. Mais tosses. A pondo no colo, desapertas a mala de mão, a custo, e de lá dentro tiras uma maçã. Mordes. Vais levando a respiração, sentindo a pata de um bicho de grande porte sobre o peito. Maria Mendes Cardoso, gabinete de electrocardiograma. Quem te julgas? Pela parede, fora a fora envidraçada, passa a vista para as ambulâncias estacionadas lá fora. Gritam aí, na rua, à porta das Urgências. Descentralização de competências. Cordão de ouro ao pescoço de um, casaco sobre o braço. Lá fora fresco, abafado cá dentro. O sócio, contando pelos dedos a família de um número, e ele próprio, da Sorte Grande em sair de aqui vivo. O sócio, de boné com a pala para trás e passado, o número aí gravado, preto no branco. A velha, de pulseira amarela no pulso, mais perto de cortar a meta, com a mão fechada sobre os olhos. Valentim de Sousa Capeta, gabinete 12. Teresa Garrido, triagem 1. Disse. De lado, como estás e eu, à mão da janela a toda altura, por onde nos entra a rua desabando sua intempérie. É noite, sabemos já. Acompanhante de Joaquim Magro, gabinete 7. Te faço festa, fixando olhar a ferragem cravada na tua orelha. Francisca Dias Ribeiro, gabinete 4. Putos pobres, correndo desalmados por viela de lugar subdesenvolvido, sintonizados no ecrã do tecto. Pode estar perto. Até aqui acordo, outra manhã se não sabe, se acompanhada de frases soltas, se varrida pelas mãos se afastando uma da outra, negando dizer adeus, outra coisa. Mário Rui Raimundo, triagem 1. A borracha do calçado, chiando apagamento ao andar. Flores vermelhas, apanhando da chuva e das luzes lançadas pelas viaturas de emergência. Intermitentes pela divisão dentro, se estancando na parede ao alto. Dez para as dez, não mais, riscadas no relógio. António Candeias, gabinete 8. Mukhtar Ahmed, gabinete 3. Jéssica Perfeito, triagem 1. Pedimos a vossa atenção, por favor, pedimos a todos os familiares de doentes quantos aqui estejam, que se retirem para a sala de espera até à meia-noite. Mudança de turno. Turismo no Algarve. Elisa Martins, gabinete 2. Dezoito dá seis, conta alguém por alto. Pai e filho chegam. Pai, desviado por piratas do ar dele só, o olhar esgazeado marcando todos os lugares ocupados ou não. Joaquim Pinto, triagem 1. Hélder Correia, gabinete 7. Te manténs calada, eu ao lado. Beijo para quem chega, café e cigarros para quem fica. Turismo em Portugal. Mário Raimundo, balcão 8, cirurgia. Zuleica Gonçalves, gabinete 12. Margarida Borges, gabinete 8. António Oliveira, gabinete 11. Se revolvem, as várias posições do desconforto, no assento; fazem ranger a estrutura que os prende a todos nós. Colóquio dos Simples. Cajueiro, romanzeira, gengibre, pimenta, figueira-do-inferno e o diabo a sete, lavrados no vinil colado à parede. “O que hoje não sabemos, amanhã saberemos”. Será tarde? Céus. Por dias. Drogas e coisas da Índia. Fácil nos perder, no que nos acrescenta de rua. Primeiro debate entre Fernando Negrão e António Costa. Luís Castanheira, gabinete de electrocardiograma. Te sobressaltas, pondo rápida a mão sobre o peito. Não, descansa, estás ainda aqui inteira. Eu conto de aqui. Sim…claro! Criança se distrai, suas pernas em balouço indo vindo debaixo da cadeira, olhando o televisor onde não passa o noticiário. O velho de muletas demora mais que esta frase a ser construída, a se sentar a meu lado.  O velho de muletas, segurando o relógio de pulso, deixando mão aí sobre o vidro do mostrador. O velho de muletas, depois de entrar, em sono profundo, se irá convulsionar se engasgando de pesadelos, e cair ao chão a tremer. Eu e outro homem por perto, descemos mão nele, e o subimos para a cadeira. Agradece, sincero, por detrás da cortina de água frente aos olhos. O velho de muletas, não espera por ser chamado; vem queimar as horas, até ser dia outra vez; não tem ninguém com ele, nada na manga, nada nos bolsos. Não pede nada, não pergunta nada. Só. Fica. O casal de meia-idade se levanta; pousam os casacos sobre os ombros, sobem as calças na cintura. Fechos abrem fecham. Carlos Constantino, triagem 1. Marcelino Santos, gabinete 13. Dez e vinte, ainda noite. Debate quinzenal no Parlamento. Sou deste país, prometem. A jovem, de cabelos pintados à cor verde, à cor cinza. Hilda Fartagh, gabinete 13. Arruma as coisas. Acompanhante de Domingos Ferreira, à sala de médicos. Paulo dos Santos, gabinete 8. Vanda Condessa, gabinete 8. Se repetem. Leonor Vergueiro, triagem 1. Manuel Encarnação, gabinete 3. Paulo Jorge dos Santos, gabinete 8. Sandra Magro, gabinete 1. Esmeralda Caetano, gabinete 14. Parou a chuva. Falam baixo. Passam pelas brasas. Uma calma que não é de aqui. Voltas à mala, levantas de aí garrafa de água. Dividimos. Foi a filha que, antes de sairmos à pressa de casa, se lembrou de a encher com água nova. Não está connosco, dorme em casa de outros. A meio da tarde começou a chover. Nevão começou ontem à tarde. Voltaste para me buscar. Marco Mateus, triagem 1. A criança tosse. É a única criança desta hora, e ouve espirituais negros pela telefonia da mãe enquanto espera por ser chamada. Dez e trinta. Tossem. Chega mais gente, famílias de número inteiro. Jorge Coelho diz que são precisas medidas radicais. E chá. Recebo mensagem no telefone, mãe perguntando por nós. Estamos bem, respondo. À espera. Privados vão limpar florestas, até 15 de Março? Vão? Aldina Paula, gabinete 15. Antónia Ferreira, gabinete 7. Onze e dez. Ilda Romão, gabinete 11. A sala se encheu, de ruídos vindos do altifalante. Atravessando chuva como outra qualquer. Riem, de cagaço. Estou? Dez segundos. A olhar para cima, a olhar para nada. Família de António Ribeiro, gabinete 10. Com sotaque, se ouvem. Boa noite. Vou chamar pelo nome do doente. Eu chamo. Maria Fernanda. Maria de Fátima. Maria Elvira. Leopoldina da Conceição. Desculpe? Felicidade Maria. Joaquim António. Alfredo João. Rosa Almeida, gabinete 14. Ricardo Cabral. Luís Felipe Candeias. Acompanhante de Luís Silva, gabinete 4. Joaquim Manuel. Ricardina Maria. Domingos Ferro. José Augusto Cardoso. Maria Isabel. Joana da Piedade. Quem chamei, pode-me acompanhar. Proprietários são culpados da propagação dos incêndios? Portas automáticas, de duas folhas. Onze e vinte cinco. Deverá haver endurecimento das penas para incendiários? Perguntam por ti, e não sei já que responder. Falar. Dizer de outra coisa, de nós mais à frente. Estamos doentes de viver. Madeira queimada pode ser usada? Devia saber, e não. Sandra Marlu, gabinete 1. Esfregas o calcanhar com uma mão, com a outra, falas ao telefone. Sim. Sim. Não. É. Amanhã se verá, o que no dia de hoje não cabe mais. Onze e meia. Não podemos confiar no que ela diz. Acompanhante de Joaquim Ribeiro, ao átrio de emergência. Água cortada pela lâmina do rosto. Fora. Lá. Agressão. Sandra Maria Magno, gabinete 8. Laura Pedroso, gabinete 2. Acham que estes panos cheiram a clorofórmio? Népia. Alguns. Meia-noite vinte cinco. Maria Isabel Rosa, gabinete 12. Vê se ela consegue vir cá fora. Um segundo. Porta que se fecha. Tossem. Bates no joelho com a mão, duas três vezes. Abandonam o átrio exterior, de muletas, ao vento. Urgente. Reagindo, se contam candeeiros pelo interior do estômago forrado a papel de noite. Fechas os olhos. Dormes, ou finges. Suspiram. Bocejam. Gabinete 8. Gabinete 8. Dormem, por certo, alguns dos que estão espalhados por duas três cadeiras, olho fechado, olho aberto. Cães, farejando o que se não espera. Duas e vinte. Estamos no bom caminho para errar. Aqui se falam, se não todas, exagerando, um punhado de línguas diferentes. O velho de há pouco, agora em frente, pousadas que estão a seus pés as muletas, para o caminho, encosta o corpo ao contorno curvo do pilar de betão aparente, estremecendo de quando em quando. Não descansa. A maria-rapaz, de olhos injectados de abandono e substâncias de distrair, deu quantas voltas à imaginação, ocupando as posições possíveis, sentado, deitada, por lugares que vão ficando aos poucos à disposição. Arranca em mudança repentina, acelerando até à instalação sanitária, fazendo estrondo a fechar a porta, fazendo barulho lá dentro, vindo voltando a gingar, capuz enfiado na cabeça. Duas e meia. Tossem. O ar condicionado, nivelando a temperatura por baixo, fazendo respirar melhor. Outro. O filho bastardo do profeta, se aliterando em certo afastamento, vai à rua, dança por dentro da chuva, vem para dentro, experimenta os lugares vagos, e outras coisas, se levanta, vai à instalação sanitária, vem devagar para junto de nós, ao mesmo tempo que enfaixa os braços, direito esquerdo, com papel higiénico que irá desenrolar, devagar, para o usar, misturado com desinfectante, na lavagem dos pés. Se descalça. Exala o fedor difícil da refrega corpo-a-corpo com ele mesmo. Se anima. Executa a dança guerreira, pacificadora do seu modo de estar. O olhar que dele se perde, é tão só a linha fraca que o vai ligando à linha de terra. Salta à corda que não tem. Desenha para nós a adivinha que é só dele. Três pequenos pássaros pousam em si, livres de errar o espaço.