sábado, 26 de abril de 2014

INSTANTÂNEO






No tempo de dois pássaros, descontínuos rebocadores de uma máquina aviadora pelo instantâneo do céu, aumenta-se o engano pela fachada do edifício, alastrada de espelhos farpados. Um reflexo com espaço entre as nuvens para um nome de hotel na língua estrangeira do outro. Desloca-se o motivo à força de asas, numa escala trágica – tangível absurdo – de membros que lhes são corpo anterior à língua. O caminho sombreado – uma qualquer vez, a partir do sonho altimétrico – no solo em colisão solidária com o prolongar de outras coisas que aí se projectam perdidas. Bicho-máquina amputado do nome do meio, derramando azul petróleo pela esteira, acima do Sahara. A peça do corpo que falta – cintado torpor – ausente do sangue que o torna visível cor, ante a precipitação de uma fossa marítima com espaço para o esquecimento em profundidade, onde o rosto da cegueira se imobiliza próximo do grão transformado da rocha, arrefecido pela palavra gesticulada que não vê. Jura de dedos que não fazem falta intrusos pela garganta, onde se demora a voz engolida pelo teu nome inteiro, entoada escarificação de espessura pelo trajecto de todas as curvas do intestino revolto. A falácia da pele incomodada pelo digital indicador do forasteiro. Deslocação do ar: canto superior direito oposto diagonal ao canto inferior esquerdo, enganados ambos a meio do lugar qualquer pelos eixos da dimensão. Largo o céu, volumoso de dois terços do que se vê frontal o antigo edifício da Bolsa de Lisboa deformada, em outro espelho – o Pessoa que é contorno da sua carne-locomotiva – um reflexo mais recente da charneira céu chão não havendo trovoada; também o Hospital de Santa Maria edifício de silêncios, o órgão que falta a alguém dita-se a si em voz alta, assim, por notas dolorosas. Algum verde e castanho em árvores inclinadas pela colina mais um avião que afugenta para os lados do movimento a folhagem das copas das árvores que são poucas para os pássaros. Carro carrinha da esquerda para mão direita como se escreve eu escrevo autocarro. Não vejo chaminés, antenas: tomo os olhos do peixe que aqui não se vê à linha de vida esquecida, por um telhado outro pássaro que se demora pelos olhos, acima do andaime que ficou órfão de uma parede alterada na rugosidade da empena sem janelas. Encurto-me na paisagem por extenso.

domingo, 20 de abril de 2014

TÍMPANO




Distingo o teu contorno numa luz específica, contemporâneo do modo barulhento do pássaro engrenado na primeira mudança do dia. O rosto de um de nós – construção ilegal, para onde desapareço no final da tarde. Ressoamos desencontro pelo tambor da rua, instrumentos de pé velozes. O desenho ondulado do vento que se aproxima de um canto silencioso na nossa sombra. Digo desaparecer e tu não o sabes até amanhã. Entendes num sinal de igual e eu finjo a tua direcção, alterando-me a tempo de não ser o outro lado da rua. Confirmo se não há mais ninguém a vir para dentro. Não, ninguém. O esqueleto da noite ainda sem carne, a última luz inclinada que escorre dos telhados. Volto inverso pela escada do mesmo prédio, desmultiplicado pelo reflexo nos espelhos dos degraus por ali acima. Paro. No último piso somos dois para a refeição que houver do outro lado da porta, eu e a luz de fora que sobra da clarabóia. O patim deserto de mais sombras que não a minha. Se continuo, não há mais portas do lado direito. Agarro a parede e o corrimão, crucifixo barato errado nas horas e só levo a roupa no corpo. Não chovia antes de subir e não chovia quando desapareceste, não me lembro se foi antes de teres ido ou se passei por outros lugares antes de ter subido, o momento preciso em que ocupei todos os espaços vagos nestas roupas com papéis amarrotados de branco. Onde as minhas mãos evitam tocar, na sugestão de um curso de água violento pelo abrupto rochoso dos nossos olhos que se esquecem do contorno da última coisa que existe com vida. Coisa que se não escreve, com medo do corpo gigantesco da palavra que fica para sempre espalhada pelas esquinas da memória, nascida dessa tinta que se dissolve com a água dos olhos e se escreve noutra língua que se não conhece. Um mistério que me não interessa não há tempo, tenho de despir estas roupas que me ensopam até aos ossos deste dia que já não quero com o teu cheiro. Arrebataste-me a manhã onde viviam os contornos da coisa de nós e o dia de hoje também. E já não volto a descer as escadas. Continuo parado em frente à porta, vejo-me sombra indistinta à volta de um olho de vidro que nada vê para dentro, se existir aí alguém. Dispo-me num cerimonial ordeiro, dobro as roupas pelas costuras e deposito-as em cima do tapete velho da entrada, enquanto procuro a chave. Entro numa casa escura, um quarto único com luz por descuido, os estores que ficaram esquecidos na posição recolhida, com vista para a imensidão da paisagem do prédio em frente. Baptizo no momento esta divisão de estendal, trago comigo as roupas. São cordas o que imagino mal esticadas, presas às paredes, uma teia funcional onde esqueço as roupas, desdobradas como insectos tecidos ali à mão de serem pele. Enlouqueço antes do corredor, nunca sei de que lado, se da despensa vazia ou da instalação sanitária onde estendo a mão aos meus bichos aprisionados. A mão que estendo para dentro do corpo a contar artérias ao acaso, o poço onde perco o grito e sempre pensei que o corpo fosse estanque a uma voz que se engole, da minha voz sabia da tua voz não, esquecida numa canção que me inquieta. Afasto o corpo nu de mim, moldando-me na geometria da divisão, nesta casa a mais fria onde a pele se incomoda. Demoro-me por ferramentas já escolhidas de outro dia, insuflando de vida a madeira do centro, levantando-a do chão no lugar de um coração será família o outro nome, com essa acende-se uma fogueira e já ardeu uma vez era frio. Temo-nos, temendo-nos, a nós e às temperaturas. Sujo-me do difícil – confortável nó górdio que se não consegue explicar mais apertado – da sombra líquida que transborda de um corpo nu a um palmo do chão, espalhando uma nascente por onde insistem peixes na corrente inversa, com sangue seco nas guelras que me tocam já as pernas. Outro sul o coração – outra construção inacabada por inteiro -, substituído por um molusco experimentado na tempestade, que se agarra à nossa comum parede solta. Maravilhosa máquina imperfeita, que funciona mal com amor. Abandono um de mim a arder, e tomo a direcção da escada, paro, agarro o corrimão. Lentamente se substitui o ar nos pulmões, por uma viscosa criação de mim até à boca. Fecho a porta por trás de mim, esqueço o caminho e indico-o por gestos. Falta-me sempre qualquer coisa quando saio para fora e nunca sei o que é, me não consigo lembrar do corpo prolongado invisível pelas cordas do estendal à minha volta. Lembro-me de outra coisa, de ti às vezes, lembro-me de tudo, enquanto há uma cascata de peixes tristes que me saem dos olhos surreais mesmo com chuva. Trovões, outra percussão, o coração da terra ao alto o céu. Notas missionárias musicais, decompostas pelas rótulas no campo aberto onde se dança sozinho. Paro as vezes que forem, volto a dançar tu ao longe. Grito-te: não esperes um dia de viagem e sou o teu lugar do lado vazio. Daí onde nada juntos, mãos fechadas a bater nas portas que já não sei a minha, tenho pressa deixei insectos vestidos de corda bem costurados pelos pulsos.

sábado, 12 de abril de 2014

CORPO PRESENTE





Mato-a contra o vento, a voz
que se demora. No seu plural
disperso pelas margens mal desenhadas do rio.
Morosas artes por camadas – são demasiadas em
eco circunflexo, afiado.
Decido à tangente que não é sobre ela, cadáver, o que
vou calar.
Mato-a, assim que seja minha
voz. Outra que seja
interrompida no cume de
uma conversa.
Regressará murmurada, por outra
voz. Não sei ainda
se viva.
Não há lugar para ela
agora. Este é o momento
órfão de um outro, estrangulado
no incompreensível de um
barulho. Do corpo polifónico, parado
num pensamento rápido.
Sempre tardio o sol
pela espinha, o avesso
meio-dia.
Relógio elástico, de pele
pontual.
Disfuncionais órgãos, encobertos
pelo finito do corpo. Extremidades
longínquas.
Aqui-d ‘el-corpo, presente
retalhado.
Do agora, o corpo
que se arrepende.
Do agora, o corpo
que se pressente.
Outro corpo. Almas de sangue
separado por todos os tipos
de parede.
Doloroso contorno
do corpo, entredentes
do corpo, santo de azar
do corpo, instrumento incestuoso.
Demasiado corpo que sobra
à palavra – mãe.
Não sei dizer o corpo num
tamanho. Sem espaço para
o construir eterno
pelas paredes de outras coisas
sem corpo. A alma
ventríloqua . Autista
limitado na expressão
universal. Preciso desse espaço
total. Como o corpo
dispensável.
Estanque, no limite
da cortina que separa
a latrina de todos os outros
na divisão. Qualquer tecido dobrado
num pau. As coisas
mais curtas.
O pesar dos corpos que faltam
à parte melhor. Próxima
de outros corpos.
Por insuficiente memória, entenda-se
pelos cantos amarelecidos
do corpo. O som
reverberação fúnebre, o mais
branco dos espaços.
Corpo solúvel, arremessado
para a próxima sombra.
Exangue cegueira, provisória
até à morte das minhas outras extremidades.
Intermitente o olhar, nem sempre
directo. Instável
languidez das curvas
em velocidade. Instável
corpo incompleto no tempo.
Corpo matemático difícil, o erro
preciso. Negação.
Uma escolha, o que resta decidido
pelo espaço. Imparcial zero
onde tudo começou, morri.
Corpo zona franca.
Corpo franco-atirador.
Munição. Inflexível
do corpo em contraluz.
do corpo em colisão
vertical. Alguma flecha
à queima-roupa.
O reflexo de um corpo, vómito
operático. Anulado
pelo principal do rosto, enquanto
continua às cegas.
E desaparece a forma
a meio. Nem sempre
por esta desordem.
Corpo irritante, arde
tardoz. Comungando com
outro corpo de lado.
Corpo é presente, ouço-o
admirado pelos cantos.
Dele apenas a sombra
silenciosa da voz, não a sua
voz. Mato-a, e foi
a primeira.
Corpo onde mãos
falam. Não o ouço, teatro
alterne da lateral à boca. A expressão
escondida.
O corpo da frente é calmo, literatura
de superfície. Podia não ser
a palavra, uma mancha
suficiente.
O corpo incómodo, abreviado na
posição desnecessária.
O corpo de outro – principio
de chamas afastadas, as mãos
estrangeiras. Pela pele
de fronteira.
O corpo de outro, aqui, é corpo
de fora. Acena.
A voz ricochete, ritual da
sílaba terminal.
O corpo mímico, as duas mãos
ao lado. Do rosto
ligeiro espaçamento.
Abalo de terra, simulacro
do que seria.
O corpo tremor, não lhe bastasse
a órbita dos ombros.
O corpo suspeita, estrutura
inacabada.
Palavras em morse, percutidas
nas costas.
A voz em toque, de finados
esta voz. Como barulho
primal.
A voz outra, e
outra vez. Mato-a
neste presente se for
demasiado.
O corpo da mensagem encorpada
ausência.
Um motivo mal desenhado, que me descreva
melhor que a voz, juro
pela minha faca.

domingo, 6 de abril de 2014

FECHO






num final de lugar, o último movimento
desenha-se na sombra de pedras
insignificantes.

FECHO.

a transferência, caminho
dos elementos que não pertencem aos lugares
ao vento, a água
corrige de arrasto outras pedras.

FECHO.

caminhos mínimos, um pelas hortas
e figueiras fundas pelos baldes de tinta sem cor além
da ferrugem, interrompidos
no perímetro dos orifícios escancarados, a purga
das raízes no mar.

FECHO.

outro caminho, o das árvores altas
de gestos, de membros
extensos de abrigo aos filhos das suas sombras
armam-se de pedras
arrefecidas, fingem-se de frutos uma cor suja, armadura
de casca visível.

FECHO.

o lugar de um domingo
em fotografia claro –
escuro.
a família que já não existe
cumprimenta a divisão vazia
onde estão, ordenados
quietos pela desordem dos anos em que foram
capturados por frias mãos
sazonais.

FECHO.

a memória desviada por um vento
de norte enleado, incompleto, acima
das copas dos castanheiros.
os dedos magoados das cúpulas
espinhosas, ouriços depois da escolha dolorosa,
roupa confortavelmente apertada nos membros de locomoção,
repartida por metade de um mistério
interior, em segredo.

FECHO.

o fruto armadilhado para
impacientes, alimento de extremidades.
temperaturas.

FECHO.

vestígios de pé, na areia
instável prefácio de mar. e o lameiro
lambido de nevoeiro pesado
pela manhã, geada
nos ponteiros à maquina do meio, distribuídos
todos à sua vontade pelos muros
irregulares da rocha arrancada
à mão.
pelo férreo do homem-pássaro, cerebral tempestade
clara, próxima
à noite luminosa atraída pela paisagem
de minas de cobre oculto
abaixo da manta, terrena de sete palmos
de coisas da vida.

FECHO.

revolta de invertebrados, não percepcionada
a partir da via rápida, gente pequena
em geometria, distribuída
por automóveis de concepção individual em número.
a carroçaria e o segmento de direcção, e transporte
das carnes de fumeiro, atrasadas
na decomposição pelo terror
do incêndio controlado
na boca artificial de pedra.
extensões de matéria queimada, a vestir
de lã os corpos na terra.
uma expressão vermelha no rosto.
a caminhada deslocada
da estrada, para a largura
de homem acrescentada da drenagem
do tempestuoso veículo
desgovernado.

FECHO.

pelo eixo da dança
equidistante às paredes do espaço
ditado a partir de um dos cantos, por um manequim
de alfaiate com a pele unicamente plástica,
ultrajada sem conta, à hora diurna
de uma das refeições, pelo todo
da corporação de bombeiros mais próximos, ausência
familiar do comandante.

FECHO.

pelo vidro, reflexos.
ouço corpos coloridos pelo afastamento
à mesa onde a refeição é servida
através de fios, linhas de baixo
graves na distracção do tempo
encurtado entre umbigos.
o odor de cabelos extensos, enrolados
a partir da floresta encerrada
na noite mais parda.

FECHO.

bigodes encerados pelo ponto
de orvalho dos nossos corpos
iguais na tormenta
calma.
ondas de calor rebentam
anuladas contra o branco imaginado
dos mosaicos na instalação
sanitária, onde
aprendo o meu contorno, onde
desenho com as mãos encruzilhadas
para a alma que fica
de negro entre as juntas nas dimensões
imperfeitas do quadrado nascido de uma
fábrica encerrada.

FECHO.

toda a música que se deixa
aí, à porta
ruge ansiosa
nos tempos certos.

FECHO.

mãos meigas de giz, colaboram
em traços a descoberto, próximo
das aberturas na roupagem.
fémures de oficina, moldados
a partir do salto falhado por um
atleta de alta competição
entre pares.

FECHO.

calçadas na cidade, desdentados
sizos de vidraço arrancados
por educação.
às forças da desordem à civil, vestes
indiferenciadas na cor
que as sustenta.

FECHO.

palavras mortas, sulcadas
à superfície das mãos distraídas
da estória, cumprem-se
rituais do quotidiano.
desvios frequentes para
ofícios desconhecidos, bricolages
de cuspo aramado, em materiais impossíveis
de profissão.

as mãos um palmo
de água contaminada com produtos incompatíveis
com pele, onde
símbolos expostos à radiação exibicionista
sem luvas.
a corrosão recorda-se de ossos, salva-se
vermelhidão epidérmica em segundos.

FECHO.

tudo é o mesmo, caos, o chão também
de mosaicos um mar de algibeira, a calma
inundação de um lar abandonado
à pressa.
os tubos de esgoto subterrâneos, túneis
circulares indecifráveis, a comunicação
entre as masmorras de porcelana.
pontificam sem o digital dos dedos, de quem
as moldou máquinas.
a prosa de um sifão maldito, carrasco
encerrado na saída a céu aberto, antes do tecto,
acima da matéria putrefacta que o toca
insistentemente, do que sobra leve ao corpo.
escamas, cabelos extensos, lágrimas adiposas
os calos dos pés escavados até à dor que ensina
a fronteira do corpo, no seu contorno
sensível.

FECHO.

cabos de aço guiados
cegos pelo adentro viscoso da matéria
rejeitada à superfície, estreita comunicação funcional
dos subsolos em cada piso em altura.
paredes exteriores, paredes de vinil
os tubos violentados por pressões
desviadas da disciplina da física, acessíveis
ao comum dos alquimistas do absurdo.
o rumor do céu deslocado, lento
pelas misteriosas nuvens do tudo possível que é tecto
acima a alma
esperança em espessura.
a negação finita dos espaços, parede.

parede de FECHO.