sábado, 27 de dezembro de 2014

INACABADO






O quarto incompleto das horas. Panos que o encerram, negros do fumo esquecido dos homens anteriores enquanto eu, espessura plana que se atravessa no sentido da noite para lá da silhueta, corpo-sombra e sombra da sombra de um corpo. Cubo aberto, planificação infinita do mundo e seu avesso, nas dimensões inexactas do sonho vivido. O quarto inalterado na combustão espontânea da matéria esquecida pelas arestas (vivas e mortas) à vez côncavas e convexas, os odores extremados da rosa às fezes ainda quentes. Meu rosto desviado, a película dos olhos sobreposta tempestade ao eixo do crânio. Cânticos da negação perturbam as águas onde peixes mergulham nesse meio físico da carne húmida, nascente de tinturas vermelhas, onde os tecidos afastados, atrasados, na dupla-face incoincidente. Corpo-rubro, corpo-decadente, flor que nasce e morre os dias todos. O quarto fechado. Ao outro e para os outros a lua decalcada do que virá, falsa a luz que dela não vem. Pura em desassombro a colisão frontal que se não evita a tempo, de um só contorno o cadáver dentro do cadáver ambos pássaros de um lado. A praia do chão desfeito, dividida em poeira e coisa maior, inerte, pequena pedra ainda pedra assim regressa em vento à sua rocha. Céu rasurado, negado, pelas diagonais do sémen intemporal que atravessa suas margens, inutilizado pelas lágrimas dos arrependidos. O desejo irreflectido na folha fixa da janela; a outra folha, que a completa, escancarada, paralela ao corpo em ressalto imerso na sombra. Um dos braços gravidade conformada ao corpo; o outro, braço atmosférico em movimentos que ditam, por extenso, uma ânsia violenta em ser paisagem à pele, outra pele, vidro transformado na esquina do fogo interior. Tábuas do mesmo chão (deserta a praia), unidas e separadas pelo traço vincado ou a aparente permissão do tracejado, pisadas por membros em distorções geométricas. Nuvens que são fantasmas cozidos pelo vento nos seus panos de algodão rugoso, conchas no lugar do coração – quando pára uma nuvem na terceira posição da palavra na frase do horizonte? Quando apunhalada por uma dessas tábuas, arrancada ao chão por inteiro. Em marchas inversas outra vez os braços, que se elevam na ponte do corpo, um só e mesmo mulher que abraça a argila, homem que abraça outra mulher. O deserto se encurta numa cor, se endireita pincelada firme da esquerda para a direita até ao fim da noite em outra cor. Mutações de género, superfície e forma – esferas da memória em degelo, mulher e homem aproximados a barcos. Repetidos, aquele e aquela, prolongam o mar por acontecer, adornados com contas de vidraço nos pescoços, se firmam laterais à última sombra do dia e assim permanecem parte solta, nada urgente, do esboço de um beijo devagar. À mão, para lá das rochas, se esquecem em um ponto final.

sábado, 20 de dezembro de 2014

ÓLEO






Se fendilha todo o estuque
Pelo rosto quase capturado
Em película queimada o céu é
Todas as crateras ao alto chaminés apenas
Em chamas imaginadas (incompletas)
Curvadas as entradas se as há
Enegrecidas à superfície
Das águas animadas que atravessam
Chamas se as houver
Entradas entre dois pontos
De fixação um corpo, um
Velho passeia a morte
Desenhada nas costas.

Árvores longas mais altas e assim
Passam o pau-de-fileira
Da torre da igreja sinos gémeos
Separados pelo pano, este, tecido
De alvenaria também as outras paredes
De cor branca. Não as árvores, não os sinos. Pois
São aquelas e estes das penas de um
Corvo. Acetinado apontamento
Imóvel o abraço, o cumprimento
Entre estas personagens à revelia
Da paisagem. Um gato com cabeça
Escondida para lá do corpo
Uma sombra igual à sombra
De outro corpo.

Chão de sombras e animais parados
Pelas pernas os reflexos continuam
Antes de a margem ser
Outra. Ali vem, além, uma
Pelo caminho que desaparece pela dobra
Do céu. Excessivo pormenor, tão singular
Exemplo. Duas mulheres que se prolongam
Com o molde do barro não
Olham para trás à sua esquerda
Um edifício sovado pela luz directa
À imagem de uma água. Pelo seu vidro
Tremem as coisas no seu lugar
De existir. Lá no fundo
Uma, duas, quase três
Portas de abrir. A natureza-
-morta, exposta com a mortalha
Do avesso um pão serrado
Uma, duas, quase três
Fatias de sombra entrelaçadas pelo arame
Da noite farpada alfinetes de dama
Cravados no dorso os nomes apagados
Da lápide no seu vítreo que encerra
A sugestão. Posições tumultuosas
Do vento. A ele exposto, escancarado
O vão. Inserido no espaço
Esconso onde acontece
A poesia de um motivo
Desenhado noutro. É sempre
Negro depois da última aresta, uma
Coisa que se entende como coisa
De ser.

Vértice aumentado, desbotado o tecto
Se curva para o fim
Do seu plano escorre a mancha
Da noite em criança
E mulher. É rocha pedra-pomes e
Absorve as cordas que são
Sílabas de dobrar
Pela língua suas vírgulas e
Sombras. Descrevo-as assim
Como a um dedo anelar um orifício
Olhos nos olhos, um continente
De mãos. No rosto um sorriso
Fossilizado. Em perspectiva
A escadaria para o lago
Do esquecimento. Invisível permanência
A vontade entre o corpo
De joelhos e o chão verbos e
Virilhas candelabros de pele. Insectos
Invertidos pelas horas aí se dão
Para a cova pés de risco
Mais carregado. O beijo se dá e
Se projecta na sombra separado
Do singular que existe não
Muito longe dali.

Louça partida barcos pelo areal
Se escuda o céu. Um piano fechado em um
Quarto escuro o espaço
Da porta sem porta uma boca
Quase a ser palavra
Que ainda o não é outra coisa
Para dizer. A caveira se atira
Da sombra para o penhasco
Da ilusão. Cortada com ferramentas
De luz a incisão gravíssima.

Prostrado diante da lápide, a sua
E o seu nome aí
Gravado. O primeiro mistério
Desses pássaros rasteiros a localização
Pelo mesmo olhar de maneira
Vazia. Como a cova ali escancarada
À espera de se fechar sobre si. Um piano
De cauda e horizonte, uma criança
Dissimula um instrumento
De tortura.

Pelo vão tosco se abre o olhar
Sobre a paisagem. Um colosso
Animado de rocha nas vertentes
Se extinguem algumas sombras, umas
Alegorias circulares vão e
Chegam. Num só gesto
Tectónico o rosto se anula
De encontro a um outro, como ele,
Maciço desalento à cabeceira
Um móvel só e uma só garrafa
Sustentam todo aquele canto ali
Representado. A seguir por ali
Umas águas paradas por cima. Acima disto
Nuvens inclinadas mãos de pedra
Agarram um seio ingreme em desnorte
A boca em desencontro. Em um corpo
A meio até aí
E depois terra enegrecida
Pelas faces mal limadas
Das pedras nos seus sítios, uns
Músculos de querer se vincam
Os esqueletos ao vento apontam
Os dedos mínimos às gentes
Espalhadas pela areia na encenação da vida
O seu vidro espalhado pelo palco dos pés
Os seus e outros braços
Gesticulam na direcção oposta
Àquele monólito perdido
De um lado reflectido aqui
O céu por extenso, não
Me distraio da medida limpa, final
Dos teus braços a uma distância
Pouco depois de mim te ofereces, viciosa
Noção de imagem em primeiro
Plano. Um beco em perspectiva
Os sinos de antes substituídos
Por dois enforcados por eles
Se verte uma claridade combinada em tons
Axadrezados motivos de chão e
Curvas apertadas. A tua madeira romba
Servida à refeição e eu sem talheres
De polir o teu ventre. Sintagma
De gavetas abertas e cordas esticadas
Pelo sonho habitual. Linhas
Surdas pelos pavimentos se encontram
Para lá das tábuas que vejo
Atravessadas por figuras
Mais do que mortas. Desfiadas, desossadas
Noivas de circunstância macias
De crânio e outras maneiras
De irem assim, a um
Desencontro nosso, nossas bocas
Estagnadas. A sua sombra única
Repetida à esquerda e à direita
De outras coisas. Fogem imateriais por mim
Abaixo. A serpentina
Da ilusão os pontos tocados
Pela pele que se despe se entrelaça
O vento pelas assoalhadas
Da miséria um olhar
Suspenso, dinâmico em voltas
Por se darem. Os olhos, centrais,
Na revolução que não tem, aqui, lugar
À mesa da mesma forma
Como tu e eu sem nada mais além
De nós. Uma varanda
Algumas nuvens à direita no céu
De tempestade na mesmíssima cor
Interior do nosso quarto. Estás nua
Desenho rápido teus contornos está frio
Meu olhar quente sobe de súbito
Sois todas as vigotas à vista
Neste céu mais próximo e limpo, todo ele
Branco. Comoção pálida, esta
A que me abandono. Encurvado
Na mesma mancha que ocupa o centro
Do mosaico a partir deste
A viagem por losangos toda paragens e
Afectos. A oração às telhas
Monumento sem entradas
Cabeças de outros por ali
Espalhadas, decalcadas de outros
Corpos presos no fogo-
-preso. O animal com freio
Tomado de assalto por um braço
Incompleto. Nele a espada
Em vez do sol pó rápido
Se levanta um chão acima do chão
Se deforma e se esquece.

Mãos nas ancas tempestade nos ombros e
Um rosto em que se intui um olhar
Sobre tudo um manto na cor negra à frente
Do sol na mesma cor.

Par flor-mão mais unhas
Encravadas na penumbra dos anos
Molares. Boca fechada
Se já disseste tudo ou assim
Se te parece uma paisagem assim
Como o que vem de nós, de um
Para o outro. Edifícios de um risco
Só. Locomotivas de tijolo aberturas desafinadas
Da luz as águas sossegam
No lado contrário ao lugar
Onde pertences agora, daqui a pouco
Tudo azul muito parvo
O teu vestido à transparência, os cortinados
A madeira do peitoril mergulhada
Na ilusão do mar mesmo ali
Enquanto tu, assim parece,
Te despedes em segredo
Do último barco parido deste ventre
Seguro. E são já as rochas
A primeira notícia da viagem
Que se inicia e se perde
O fio às imagens que irão
Ser ou não tanto faz
Às luas todas quando aqui
Já não estiveres assim e
Pela última vez ainda antes
Me disseste «martelo o corpo
Na rocha para que se imobilize
À fúria das tuas vagas e assim
A tua espuma violenta, doida
Por gumes afiados na língua
Naufragada». Logo após seres
Silêncio. Nego-te também
As cores enquanto minhas
Desidratadas em mim.

domingo, 30 de novembro de 2014

IMPRESSIONISTA






Mãos de carvão encerram o segredo que é teu início. Sublinham o olhar encaracolado, revolto, a última fronteira da noite apagada no teu rosto. Pensamento ateado, de perto, à pedra do corpo. A boca como o único apontamento de água potável, na tua medida de serapilheira. Dorso húmido, musgo que cresce no lugar sombrio da memória, onde ainda estão visíveis as linhas auxiliares do que abandonaste dos primeiros contornos, a pele do que foste. Suspendo o cinzel por instantes, e nem te dás conta. Tens a atenção toda da rua deserta numa hora alta, ditada na superfície das poças de água tua tempestade assim lembrada. Mãe morta, folheada por dedos confusos, decantada por rostos que acontecem dispersos, todos interrompidos por uma lua de rodapé. Enclausurados passivos, desenhados a fogo por cima da massa escura de um sonho rasgado dos livros. Setas paradas pelo lado afiado, exterior, da superfície a elas subtraído, imediatamente antes de serem outra coisa. Peito amputado ao chão de servir, o meu, enquanto uma das tuas mãos recostada nas brasas do teu suspiro corpóreo, a outra, uma maré sem berma, que se espraia pelo osso vivo das mesmas unhas – estacas topográficas – que se enganam nos vértices do meu corpo, inclinadamente baldio. Uma cabeça cortada, de pé, despojada do corpo e unida à terra em tons de pele, à pele, uma sombra branca, untada à última emoção de um todo. Em um canto esquecido, fora do lugar dos ventos, um espelho em que se reflecte uma lua deformada e o meu rosto abotoado ao seu tecido. Lábio inferior, pintado com o mesmo sangue que usaste para me distinguires as mãos nesta escuridão exemplar. A lâmina do colarinho, ajustada ao meu pescoço branco. A fuligem do meu olhar, espalhada pelos espaços vazios das tuas perguntas. Mãos agarram mãos, obrigam rostos a uma escala impensável, ordenam ainda a uma cor que desapareça. As cavidades de outros corpos, preenchidas com o percalço da manhã que os aproveita aos pedaços. Um rosto paralelo antes do chão que copia, um braço que termina na mão que acaba o que ali existe. Supuradas, as linhas contagiam o olhar com as costuras das cores sobreviventes. Numa terra longínqua, o funeral das tuas mãos passa em grãos pelas minhas. Apenso o boneco obrigado de duas crianças, encurtadas no papel da sua infância. Um anão cego, servil, lamenta-se do gesto perdido entre nós vontade assim, enquanto espalha a lenha mal queimada nas tuas costas, do cerne das palavras saliva e adeus, ditas por mim à tua frente. No final da estrada, ainda é o sol poente do teu rubor a última coisa que vejo de perfil. Inelutável o visitar-te os traços, na aguarela comum deste sonho.