domingo, 4 de março de 2018

TRIAGEM







António José de Oliveira, gabinete de electrocardiograma. David Alexandre, gabinete dois. Tosses, e calas o que te vai para aí. Circulam espessas as vozes, algumas coagulando nos encontros de chão e parede. Maria Emílio Loureiro, triagem 1. Conversação entre Governo e PSD, ou lá o que é, passa, na televisão sem som. A jovem, exagerando a cor do sangue no rosto, tendo se sabe lá o quê, à espera que a chamem lá dentro. Luís Castanheira, gabinete de electrocardiograma. Podia guardar os nomes para mim, mas não os quero. Certos e enganados, de viva voz, atirados para dentro da sala de espera. Onde os sentar, cadeiras azuis. Devia ser quarta-feira, alguém disse. Paulo Alexandre Mocha, gabinete 11. Familiar do senhor Jorge Amorim, à sala de médicos. Valentina do Ó, gabinete 7. Paulo Jorge Santos, triagem 1. O casal de meia-idade, meias-tintas apertando no tornozelo dificultando a progressão em tão pouco espaço, se chega aos outros, nós, os que já cá estamos, se sentam na fiada de cadeiras junto à parede onde estão pregados a Planta de Emergência e sinalética avulsa. Não se liga a nada, nem a coisa nenhuma. Sim, vai à volta. O baraço escarlate é desenrolado, se imagina, sobre os quadrados de chão branco sujo, se desfiando aos poucos nas arestas vivas da construção. Toca o telefone. Investimento no interior, em análise no noticiário. Mais tosses. A pondo no colo, desapertas a mala de mão, a custo, e de lá dentro tiras uma maçã. Mordes. Vais levando a respiração, sentindo a pata de um bicho de grande porte sobre o peito. Maria Mendes Cardoso, gabinete de electrocardiograma. Quem te julgas? Pela parede, fora a fora envidraçada, passa a vista para as ambulâncias estacionadas lá fora. Gritam aí, na rua, à porta das Urgências. Descentralização de competências. Cordão de ouro ao pescoço de um, casaco sobre o braço. Lá fora fresco, abafado cá dentro. O sócio, contando pelos dedos a família de um número, e ele próprio, da Sorte Grande em sair de aqui vivo. O sócio, de boné com a pala para trás e passado, o número aí gravado, preto no branco. A velha, de pulseira amarela no pulso, mais perto de cortar a meta, com a mão fechada sobre os olhos. Valentim de Sousa Capeta, gabinete 12. Teresa Garrido, triagem 1. Disse. De lado, como estás e eu, à mão da janela a toda altura, por onde nos entra a rua desabando sua intempérie. É noite, sabemos já. Acompanhante de Joaquim Magro, gabinete 7. Te faço festa, fixando olhar a ferragem cravada na tua orelha. Francisca Dias Ribeiro, gabinete 4. Putos pobres, correndo desalmados por viela de lugar subdesenvolvido, sintonizados no ecrã do tecto. Pode estar perto. Até aqui acordo, outra manhã se não sabe, se acompanhada de frases soltas, se varrida pelas mãos se afastando uma da outra, negando dizer adeus, outra coisa. Mário Rui Raimundo, triagem 1. A borracha do calçado, chiando apagamento ao andar. Flores vermelhas, apanhando da chuva e das luzes lançadas pelas viaturas de emergência. Intermitentes pela divisão dentro, se estancando na parede ao alto. Dez para as dez, não mais, riscadas no relógio. António Candeias, gabinete 8. Mukhtar Ahmed, gabinete 3. Jéssica Perfeito, triagem 1. Pedimos a vossa atenção, por favor, pedimos a todos os familiares de doentes quantos aqui estejam, que se retirem para a sala de espera até à meia-noite. Mudança de turno. Turismo no Algarve. Elisa Martins, gabinete 2. Dezoito dá seis, conta alguém por alto. Pai e filho chegam. Pai, desviado por piratas do ar dele só, o olhar esgazeado marcando todos os lugares ocupados ou não. Joaquim Pinto, triagem 1. Hélder Correia, gabinete 7. Te manténs calada, eu ao lado. Beijo para quem chega, café e cigarros para quem fica. Turismo em Portugal. Mário Raimundo, balcão 8, cirurgia. Zuleica Gonçalves, gabinete 12. Margarida Borges, gabinete 8. António Oliveira, gabinete 11. Se revolvem, as várias posições do desconforto, no assento; fazem ranger a estrutura que os prende a todos nós. Colóquio dos Simples. Cajueiro, romanzeira, gengibre, pimenta, figueira-do-inferno e o diabo a sete, lavrados no vinil colado à parede. “O que hoje não sabemos, amanhã saberemos”. Será tarde? Céus. Por dias. Drogas e coisas da Índia. Fácil nos perder, no que nos acrescenta de rua. Primeiro debate entre Fernando Negrão e António Costa. Luís Castanheira, gabinete de electrocardiograma. Te sobressaltas, pondo rápida a mão sobre o peito. Não, descansa, estás ainda aqui inteira. Eu conto de aqui. Sim…claro! Criança se distrai, suas pernas em balouço indo vindo debaixo da cadeira, olhando o televisor onde não passa o noticiário. O velho de muletas demora mais que esta frase a ser construída, a se sentar a meu lado.  O velho de muletas, segurando o relógio de pulso, deixando mão aí sobre o vidro do mostrador. O velho de muletas, depois de entrar, em sono profundo, se irá convulsionar se engasgando de pesadelos, e cair ao chão a tremer. Eu e outro homem por perto, descemos mão nele, e o subimos para a cadeira. Agradece, sincero, por detrás da cortina de água frente aos olhos. O velho de muletas, não espera por ser chamado; vem queimar as horas, até ser dia outra vez; não tem ninguém com ele, nada na manga, nada nos bolsos. Não pede nada, não pergunta nada. Só. Fica. O casal de meia-idade se levanta; pousam os casacos sobre os ombros, sobem as calças na cintura. Fechos abrem fecham. Carlos Constantino, triagem 1. Marcelino Santos, gabinete 13. Dez e vinte, ainda noite. Debate quinzenal no Parlamento. Sou deste país, prometem. A jovem, de cabelos pintados à cor verde, à cor cinza. Hilda Fartagh, gabinete 13. Arruma as coisas. Acompanhante de Domingos Ferreira, à sala de médicos. Paulo dos Santos, gabinete 8. Vanda Condessa, gabinete 8. Se repetem. Leonor Vergueiro, triagem 1. Manuel Encarnação, gabinete 3. Paulo Jorge dos Santos, gabinete 8. Sandra Magro, gabinete 1. Esmeralda Caetano, gabinete 14. Parou a chuva. Falam baixo. Passam pelas brasas. Uma calma que não é de aqui. Voltas à mala, levantas de aí garrafa de água. Dividimos. Foi a filha que, antes de sairmos à pressa de casa, se lembrou de a encher com água nova. Não está connosco, dorme em casa de outros. A meio da tarde começou a chover. Nevão começou ontem à tarde. Voltaste para me buscar. Marco Mateus, triagem 1. A criança tosse. É a única criança desta hora, e ouve espirituais negros pela telefonia da mãe enquanto espera por ser chamada. Dez e trinta. Tossem. Chega mais gente, famílias de número inteiro. Jorge Coelho diz que são precisas medidas radicais. E chá. Recebo mensagem no telefone, mãe perguntando por nós. Estamos bem, respondo. À espera. Privados vão limpar florestas, até 15 de Março? Vão? Aldina Paula, gabinete 15. Antónia Ferreira, gabinete 7. Onze e dez. Ilda Romão, gabinete 11. A sala se encheu, de ruídos vindos do altifalante. Atravessando chuva como outra qualquer. Riem, de cagaço. Estou? Dez segundos. A olhar para cima, a olhar para nada. Família de António Ribeiro, gabinete 10. Com sotaque, se ouvem. Boa noite. Vou chamar pelo nome do doente. Eu chamo. Maria Fernanda. Maria de Fátima. Maria Elvira. Leopoldina da Conceição. Desculpe? Felicidade Maria. Joaquim António. Alfredo João. Rosa Almeida, gabinete 14. Ricardo Cabral. Luís Felipe Candeias. Acompanhante de Luís Silva, gabinete 4. Joaquim Manuel. Ricardina Maria. Domingos Ferro. José Augusto Cardoso. Maria Isabel. Joana da Piedade. Quem chamei, pode-me acompanhar. Proprietários são culpados da propagação dos incêndios? Portas automáticas, de duas folhas. Onze e vinte cinco. Deverá haver endurecimento das penas para incendiários? Perguntam por ti, e não sei já que responder. Falar. Dizer de outra coisa, de nós mais à frente. Estamos doentes de viver. Madeira queimada pode ser usada? Devia saber, e não. Sandra Marlu, gabinete 1. Esfregas o calcanhar com uma mão, com a outra, falas ao telefone. Sim. Sim. Não. É. Amanhã se verá, o que no dia de hoje não cabe mais. Onze e meia. Não podemos confiar no que ela diz. Acompanhante de Joaquim Ribeiro, ao átrio de emergência. Água cortada pela lâmina do rosto. Fora. Lá. Agressão. Sandra Maria Magno, gabinete 8. Laura Pedroso, gabinete 2. Acham que estes panos cheiram a clorofórmio? Népia. Alguns. Meia-noite vinte cinco. Maria Isabel Rosa, gabinete 12. Vê se ela consegue vir cá fora. Um segundo. Porta que se fecha. Tossem. Bates no joelho com a mão, duas três vezes. Abandonam o átrio exterior, de muletas, ao vento. Urgente. Reagindo, se contam candeeiros pelo interior do estômago forrado a papel de noite. Fechas os olhos. Dormes, ou finges. Suspiram. Bocejam. Gabinete 8. Gabinete 8. Dormem, por certo, alguns dos que estão espalhados por duas três cadeiras, olho fechado, olho aberto. Cães, farejando o que se não espera. Duas e vinte. Estamos no bom caminho para errar. Aqui se falam, se não todas, exagerando, um punhado de línguas diferentes. O velho de há pouco, agora em frente, pousadas que estão a seus pés as muletas, para o caminho, encosta o corpo ao contorno curvo do pilar de betão aparente, estremecendo de quando em quando. Não descansa. A maria-rapaz, de olhos injectados de abandono e substâncias de distrair, deu quantas voltas à imaginação, ocupando as posições possíveis, sentado, deitada, por lugares que vão ficando aos poucos à disposição. Arranca em mudança repentina, acelerando até à instalação sanitária, fazendo estrondo a fechar a porta, fazendo barulho lá dentro, vindo voltando a gingar, capuz enfiado na cabeça. Duas e meia. Tossem. O ar condicionado, nivelando a temperatura por baixo, fazendo respirar melhor. Outro. O filho bastardo do profeta, se aliterando em certo afastamento, vai à rua, dança por dentro da chuva, vem para dentro, experimenta os lugares vagos, e outras coisas, se levanta, vai à instalação sanitária, vem devagar para junto de nós, ao mesmo tempo que enfaixa os braços, direito esquerdo, com papel higiénico que irá desenrolar, devagar, para o usar, misturado com desinfectante, na lavagem dos pés. Se descalça. Exala o fedor difícil da refrega corpo-a-corpo com ele mesmo. Se anima. Executa a dança guerreira, pacificadora do seu modo de estar. O olhar que dele se perde, é tão só a linha fraca que o vai ligando à linha de terra. Salta à corda que não tem. Desenha para nós a adivinha que é só dele. Três pequenos pássaros pousam em si, livres de errar o espaço. 

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