António
José de Oliveira, gabinete de electrocardiograma. David Alexandre, gabinete
dois. Tosses, e calas o que te vai para aí. Circulam espessas as vozes,
algumas coagulando nos encontros de chão e parede. Maria Emílio Loureiro,
triagem 1. Conversação entre Governo e PSD, ou lá o que é, passa, na televisão
sem som. A jovem, exagerando a cor do sangue no rosto, tendo se sabe lá o quê, à
espera que a chamem lá dentro. Luís Castanheira, gabinete de
electrocardiograma. Podia guardar os nomes para mim, mas não os quero. Certos e
enganados, de viva voz, atirados para dentro da sala de espera. Onde os sentar,
cadeiras azuis. Devia ser quarta-feira, alguém disse. Paulo Alexandre Mocha,
gabinete 11. Familiar do senhor Jorge Amorim, à sala de médicos. Valentina do
Ó, gabinete 7. Paulo Jorge Santos, triagem 1. O casal de meia-idade,
meias-tintas apertando no tornozelo dificultando a progressão em tão pouco
espaço, se chega aos outros, nós, os que já cá estamos, se sentam na fiada de
cadeiras junto à parede onde estão pregados a Planta de Emergência e sinalética
avulsa. Não se liga a nada, nem a coisa nenhuma. Sim, vai à volta. O baraço escarlate
é desenrolado, se imagina, sobre os quadrados de chão branco sujo, se desfiando
aos poucos nas arestas vivas da construção. Toca o telefone. Investimento no
interior, em análise no noticiário. Mais tosses. A pondo no colo, desapertas a
mala de mão, a custo, e de lá dentro tiras uma maçã. Mordes. Vais levando a
respiração, sentindo a pata de um bicho de grande porte sobre o peito. Maria Mendes
Cardoso, gabinete de electrocardiograma. Quem te julgas? Pela parede, fora a
fora envidraçada, passa a vista para as ambulâncias estacionadas lá fora. Gritam
aí, na rua, à porta das Urgências. Descentralização de competências. Cordão de
ouro ao pescoço de um, casaco sobre o braço. Lá fora fresco, abafado cá dentro.
O sócio, contando pelos dedos a família de um número, e ele próprio, da Sorte
Grande em sair de aqui vivo. O sócio, de boné com a pala para trás e passado, o
número aí gravado, preto no branco. A velha, de pulseira amarela no pulso, mais
perto de cortar a meta, com a mão fechada sobre os olhos. Valentim de Sousa
Capeta, gabinete 12. Teresa Garrido, triagem 1. Disse. De lado, como estás e
eu, à mão da janela a toda altura, por onde nos entra a rua desabando sua intempérie.
É noite, sabemos já. Acompanhante de Joaquim Magro, gabinete 7. Te faço festa,
fixando olhar a ferragem cravada na tua orelha. Francisca Dias Ribeiro,
gabinete 4. Putos pobres, correndo desalmados por viela de lugar
subdesenvolvido, sintonizados no ecrã do tecto. Pode estar perto. Até aqui
acordo, outra manhã se não sabe, se acompanhada de frases soltas, se varrida pelas
mãos se afastando uma da outra, negando dizer adeus, outra coisa. Mário Rui
Raimundo, triagem 1. A borracha do calçado, chiando apagamento ao andar. Flores
vermelhas, apanhando da chuva e das luzes lançadas pelas viaturas de
emergência. Intermitentes pela divisão dentro, se estancando na parede ao alto.
Dez para as dez, não mais, riscadas no relógio. António Candeias, gabinete 8. Mukhtar
Ahmed, gabinete 3. Jéssica Perfeito, triagem 1. Pedimos a vossa atenção, por
favor, pedimos a todos os familiares de doentes quantos aqui estejam, que se
retirem para a sala de espera até à meia-noite. Mudança de turno. Turismo no
Algarve. Elisa Martins, gabinete 2. Dezoito dá seis, conta alguém por alto. Pai
e filho chegam. Pai, desviado por piratas do ar dele só, o olhar esgazeado
marcando todos os lugares ocupados ou não. Joaquim Pinto, triagem 1. Hélder
Correia, gabinete 7. Te manténs calada, eu ao lado. Beijo para quem chega, café
e cigarros para quem fica. Turismo em Portugal. Mário Raimundo, balcão 8,
cirurgia. Zuleica Gonçalves, gabinete 12. Margarida Borges, gabinete 8. António
Oliveira, gabinete 11. Se revolvem, as várias posições do desconforto, no
assento; fazem ranger a estrutura que os prende a todos nós. Colóquio dos
Simples. Cajueiro, romanzeira, gengibre, pimenta, figueira-do-inferno e o diabo
a sete, lavrados no vinil colado à parede. “O que hoje não sabemos, amanhã
saberemos”. Será tarde? Céus. Por dias. Drogas e coisas da Índia. Fácil nos
perder, no que nos acrescenta de rua. Primeiro debate entre Fernando Negrão e
António Costa. Luís Castanheira, gabinete de electrocardiograma. Te sobressaltas,
pondo rápida a mão sobre o peito. Não, descansa, estás ainda aqui inteira. Eu conto
de aqui. Sim…claro! Criança se distrai, suas pernas em balouço indo vindo
debaixo da cadeira, olhando o televisor onde não passa o noticiário. O velho de
muletas demora mais que esta frase a ser construída, a se sentar a meu lado. O velho de muletas, segurando o relógio de
pulso, deixando mão aí sobre o vidro do mostrador. O velho de muletas, depois
de entrar, em sono profundo, se irá convulsionar se engasgando de pesadelos, e
cair ao chão a tremer. Eu e outro homem por perto, descemos mão nele, e o
subimos para a cadeira. Agradece, sincero, por detrás da cortina de água frente
aos olhos. O velho de muletas, não espera por ser chamado; vem queimar as
horas, até ser dia outra vez; não tem ninguém com ele, nada na manga, nada nos
bolsos. Não pede nada, não pergunta nada. Só. Fica. O casal de meia-idade se
levanta; pousam os casacos sobre os ombros, sobem as calças na cintura. Fechos
abrem fecham. Carlos Constantino, triagem 1. Marcelino Santos, gabinete 13. Dez
e vinte, ainda noite. Debate quinzenal no Parlamento. Sou deste país, prometem.
A jovem, de cabelos pintados à cor verde, à cor cinza. Hilda Fartagh, gabinete
13. Arruma as coisas. Acompanhante de Domingos Ferreira, à sala de médicos.
Paulo dos Santos, gabinete 8. Vanda Condessa, gabinete 8. Se repetem. Leonor
Vergueiro, triagem 1. Manuel Encarnação, gabinete 3. Paulo Jorge dos Santos,
gabinete 8. Sandra Magro, gabinete 1. Esmeralda Caetano, gabinete 14. Parou a
chuva. Falam baixo. Passam pelas brasas. Uma calma que não é de aqui. Voltas à
mala, levantas de aí garrafa de água. Dividimos. Foi a filha que, antes de
sairmos à pressa de casa, se lembrou de a encher com água nova. Não está connosco,
dorme em casa de outros. A meio da tarde começou a chover. Nevão começou ontem
à tarde. Voltaste para me buscar. Marco Mateus, triagem 1. A criança tosse. É a
única criança desta hora, e ouve espirituais negros pela telefonia da mãe
enquanto espera por ser chamada. Dez e trinta. Tossem. Chega mais gente, famílias
de número inteiro. Jorge Coelho diz que são precisas medidas radicais. E chá. Recebo
mensagem no telefone, mãe perguntando por nós. Estamos bem, respondo. À espera.
Privados vão limpar florestas, até 15 de Março? Vão? Aldina Paula, gabinete 15.
Antónia Ferreira, gabinete 7. Onze e dez. Ilda Romão, gabinete 11. A sala se
encheu, de ruídos vindos do altifalante. Atravessando chuva como outra
qualquer. Riem, de cagaço. Estou? Dez segundos. A olhar para cima, a olhar para
nada. Família de António Ribeiro, gabinete 10. Com sotaque, se ouvem. Boa noite.
Vou chamar pelo nome do doente. Eu chamo. Maria Fernanda. Maria de Fátima. Maria
Elvira. Leopoldina da Conceição. Desculpe? Felicidade Maria. Joaquim António. Alfredo
João. Rosa Almeida, gabinete 14. Ricardo Cabral. Luís Felipe Candeias. Acompanhante
de Luís Silva, gabinete 4. Joaquim Manuel. Ricardina Maria. Domingos Ferro. José
Augusto Cardoso. Maria Isabel. Joana da Piedade. Quem chamei, pode-me
acompanhar. Proprietários são culpados da propagação dos incêndios? Portas automáticas,
de duas folhas. Onze e vinte cinco. Deverá haver endurecimento das penas para
incendiários? Perguntam por ti, e não sei já que responder. Falar. Dizer de
outra coisa, de nós mais à frente. Estamos doentes de viver. Madeira queimada
pode ser usada? Devia saber, e não. Sandra Marlu, gabinete 1. Esfregas o
calcanhar com uma mão, com a outra, falas ao telefone. Sim. Sim. Não. É. Amanhã
se verá, o que no dia de hoje não cabe mais. Onze e meia. Não podemos confiar
no que ela diz. Acompanhante de Joaquim Ribeiro, ao átrio de emergência. Água cortada
pela lâmina do rosto. Fora. Lá. Agressão. Sandra Maria Magno, gabinete 8. Laura
Pedroso, gabinete 2. Acham que estes panos cheiram a clorofórmio? Népia. Alguns.
Meia-noite vinte cinco. Maria Isabel Rosa, gabinete 12. Vê se ela consegue vir
cá fora. Um segundo. Porta que se fecha. Tossem. Bates no joelho com a mão,
duas três vezes. Abandonam o átrio exterior, de muletas, ao vento. Urgente. Reagindo,
se contam candeeiros pelo interior do estômago forrado a papel de noite. Fechas
os olhos. Dormes, ou finges. Suspiram. Bocejam. Gabinete 8. Gabinete 8. Dormem,
por certo, alguns dos que estão espalhados por duas três cadeiras, olho
fechado, olho aberto. Cães, farejando o que se não espera. Duas e vinte. Estamos
no bom caminho para errar. Aqui se falam, se não todas, exagerando, um punhado
de línguas diferentes. O velho de há pouco, agora em frente, pousadas que estão
a seus pés as muletas, para o caminho, encosta o corpo ao contorno curvo do
pilar de betão aparente, estremecendo de quando em quando. Não descansa. A maria-rapaz,
de olhos injectados de abandono e substâncias de distrair, deu quantas voltas à
imaginação, ocupando as posições possíveis, sentado, deitada, por lugares que
vão ficando aos poucos à disposição. Arranca em mudança repentina, acelerando
até à instalação sanitária, fazendo estrondo a fechar a porta, fazendo barulho
lá dentro, vindo voltando a gingar, capuz enfiado na cabeça. Duas e meia. Tossem.
O ar condicionado, nivelando a temperatura por baixo, fazendo respirar melhor. Outro.
O filho bastardo do profeta, se aliterando em certo afastamento, vai à rua, dança
por dentro da chuva, vem para dentro, experimenta os lugares vagos, e outras
coisas, se levanta, vai à instalação sanitária, vem devagar para junto de nós,
ao mesmo tempo que enfaixa os braços, direito esquerdo, com papel higiénico que
irá desenrolar, devagar, para o usar, misturado com desinfectante, na lavagem
dos pés. Se descalça. Exala o fedor difícil da refrega corpo-a-corpo com ele
mesmo. Se anima. Executa a dança guerreira, pacificadora do seu modo de estar. O
olhar que dele se perde, é tão só a linha fraca que o vai ligando à linha de
terra. Salta à corda que não tem. Desenha para nós a adivinha que é só dele. Três
pequenos pássaros pousam em si, livres de errar o espaço.
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