sábado, 26 de maio de 2018

TERRAPLANO






Cada um no seu lugar então sou, este princípio de sombra infundada. E é o que é, distinto de nada ser; não que não seja um bom disfarce a manter. Água descarregada, sim. O pio dos pássaros, costurando a última parcela de linho neste recorte a meio pelo dia. Os pássaros, e nossas penas. Ardis de bronze, assegurando a efígie aos próximos. As crianças espalham cartas ao acaso pelo chão de inertes. Naipes de sol e lua, se acertando e caindo em desordem que se entende. Andamos pois, descalços pela casa. Andávamos, vamos, antes daquela voz se retirar, e nos obrigar à acção até à absoluta extinção dos cristais resistentes. Nos cortamos com a parte que nos excede, enrodilhados no cotão difícil do rectângulo jogado no chão acima. Vamos ao lugar, em gestos atalhados. Maus ossos dizem, não fazem a figura de um ás. Montículos de tecido, cozidos à distância repetida na largura do artigo; suaves dunas de corda se dissolvendo em significados. E alguém no céu mexeu, mais de uma vez. Cadeias de ferro penduradas no prego, desenhando bicho de luas rodopiando, cercando sol azul de fingimento, por aí fora, desaguando a última ilharga na praceta de um sino quadrado. Me dás resposta seca, à pergunta que me não lembro de ter feito, e te retiras para os fundos indo dar água às plantas de que falas quando com elas não falas. Encontros de parede, se dando à esquadria das sombras. O vento vem encostar a mortalha dos cortinados à planta nua de meus pés, me entrevando a fala nesta divisão branca. Caixa de ritmos substituindo a maquinal esperança, pela experiência atonal do coração que se me desprega do peito oferecido à bala de teu olhar. Polindo a pedra, se ganha um espelho de águas paradas, sôfregas por matéria a se diluir. O susto pregado ao ser assim mesmo, encontrando palavra que é só por hoje amanhã. Cânticos texturados, se alternando a instrumento flautado, em valeta caídos juntos num fraseado de copos meios cheios. Vamos, nos continuando. Corres na minha direcção sem morada, te atiras para cima do catre, estendes o peso todo do corpo a meu lado esquecido. Húmus, psoríase: depositados à beira da ferida escancarada, rasgada durante a fuga ao incêndio acabado de lavrar, prometendo noite longa e um belo jogo de luzes e azar ao jogo. Reviro olhar à existência aparecida do que lá fui, registado à queima-roupa por fotógrafo acidental. Perco andar, num pezinho de dança com o ímpar. E assim, se conquista, artificialmente, a palmo, pouco mais de metro quadrado ao terreno da morte. Fonte de águas santas, fumeiros desatados, canícula – pão de mistura. Frutos secando sobre serapilheira sobreposta à cortinha orientada para o sul do sol. Tenho um cão de febre e a visita deste enfermeiro pontual, não se esquecendo de mim bem quero em dias seguidos, precisos, uma série deles, me picando ao de leve nos braços, me corrompendo a morte me trazendo à vida, se valendo da carta alta dos venenos. De cima do lioz aparelhado à berma do cais, putos se oferecem às águas sujas do rio, experimentando à vez iludir o tempo de ir. Intrusos rígidos, descompondo tudo todos, em ânsias – atiram terra aos olhos que os olham; atiram suas merdas reagindo a quente, defecando decassílabos difíceis de arrumar na prateleira dos que se ficam. Tiro ao boneco. O gosto dos alteradores de consciência, resistente ao desalojamento debaixo da língua. Jogos de arcada, psicadélicos. Elefantes sagrados, revestidos a napa cravada de afiadas tachas, cuspindo cor diversa e putas de estilo, exagerando oferenda aos mortais. Todo o equipamento alinhado ao longo desta câmara escura obturada por paredes de fungos de estimação e ódios de cultura. O espaço nos engole, pois, nos desviando de viver outra vida. Fechas a porta da instalação sanitária, te ouço deste lado a descer o pano das roupas que te sustentam, e o crescendo quase nítido da sofreguidão a que te abandonas no agrado à própria. Não havendo nada em contrário, bates à porta antes de saíres por aí. Cá te espero. Isto promete. Indumentárias a preto e branco, aos quadrados de outra cor, lisas, usadas acima do joelho, arregaçadas no braço, listadas, com dizeres. E não é tudo, não. Não te esqueças do que ias a dizer. Voltamos já. Homem breve, desmemoriado convenientemente pelo pesadelo adoptado. «Filho atravessado» é o que me ditas ao ouvido, entredentes, esperançado em resultados visíveis gravados no branco da folha. Brinquedo vaivém, balouçando a sombra que te estende deste nada para o lado, do lado a fixar como coisa sem importância. A mania da prosa se repetindo, ecoando fundo a despropósito, na louça da alma sem tampo para baixar. E de ti, nicles, nada se sabe. O resguardo da esperança é fino empecilho ao banho de sangue que se entorna em cada noite bem dormida. Insalubre sonho ou doce insónia? Venha o Diabo e escolha por mim assim como assim, como todas as vezes antes. És outra. Fechas a porta, te encontro a diferença: dás duas voltas à chave, nitidamente. Acusas o tema de terra e ar (não contes comigo e outros de nós), suavizas a instabilidade dos entornos vívidos, ao marulhar das ondas de vidraço se levantando no terreno da tua projecção. Vai dar um beijinho ao avô, vai lá. Preciso do número do teu segredo, sei que o sabes de cor e salteado. Anteontem o sabias. Basta mo dares e ficaremos como dantes, indiferentes. A casa nos espera no fim da rua, vazia, vibrante da mixórdia sonora que a entope no interior dos tabiques. Hipotecámos todo vasilhame, por um fio de água corrente. Sujeitos a litígio com as perguntas de nós, levamos ao extremo a imobilidade do personagem. Espera sentado. Também eu já quis mais sair de aqui, respirar outra coisa. Não sou capaz. Te acompanharei porém, caso mudes de ideias, até ao fundo do corredor, saindo pouco antes do quarto de serviço. Blocos de pavimento à cor envergonhada, dispostos em espinha, formando dancefloor de aluados. Apanhando à mesma do vento, tal e qual. Árvores de folha caduca, metidas pelo elenco dentro das espécies. Fixações àquilo. Barras metálicas. Varões de aço. Rosas-de-pedra. Punhado de terra. Piso artificial. Areia solta. O mesmo vento de há pouco, e sombras no entra e sai pelas portas abertas, na arquitectura notável que se desenha para os espaços vazios. Queres o quê? E tu? Como dantes se davam as mãos, se empurravam carrinhos de rolamentos. Cavalo de pau não é já, mas se lança fluente em frente de igual. Se arrastam pela tarde, as embarcações idas ao futuro, alguém as levando a estacionar no hangar do dia presente. Um mais um, pois. Dois mais um, sais. Ser saliente, a recusa em me esquecer de trocados. O assombro das mãos apetecidas que se jogam numa só mão. FAITES VOS JEUX. Pois dizem más-línguas que nunca nada de diferente sai à morte viciada, condenada que está a recolher o mesmo cadáver esquisito de todo igual.



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