Um
dia destes um dia, é hoje. O céu cinzeiro, a martelada a princípio
ouvida a custo. Espalham-se ao comprido no vidro, milhentos pontos
finais de água, à minha frente. Dou ouvidos às tripas. Submerso no
vidro, desfocado, o corpo metálico de uma draga encostada à doca
molhada. Dou ouvidos às tripas. A intermitência da luz vermelha,
redonda, no painel de instrumentos atrás do volante. Dou ouvidos às
tripas. As obras paradas ao almoço. Chove a cópia de uma chuva já
caída. A hélice do catamarã,
ruidosa na manobra de atracagem, entrando por todas as frinchas. Se
aceleram águas. Vegetação daninha para um lado para outro,
ensinada pelo vento. Um homem que chega à paragem ainda agora, a
tempo. Um autocarro que passa sem parar. O mesmo homem que não dá
tempo a um pensamento de se formar e reage, saindo para a chuva
andando em frente. Ao retrovisor do lado esquerdo chega, a imagem de
outro homem, preto de preto vestido, abrigando-se da chuva
dando-se-lhe a cobertura da estação fluvial. Entre duas esquinas
anda cá e lá, olhar o chão. Mais longe metido até meio da
paisagem, vai o Cristo Rei abraçando as cinzas, molhado da cabeça
aos pés, vigiando um país fechado sobre si mesmo. Caiu-lhe,
descartável, a máscara. Decora a data, é um dia de Maio. Chove
mais, mais. Fecho os olhos, viro lixo dentro de um saco de plástico
perfumado, escutando a chuva a cair à superfície. Dou ouvidos às
tripas. Abro os olhos, os vidros começam a se embaciar. Abro os
vidros. Todos os barulhos entram por aqui dentro. Marcando minhas
roupas a chuva caindo.
As
manas saindo de um barco chegado agora, vêm para aqui apanhar boleia
com os sorrisos de marfim, que tenho de cor, cobertos de pano. Um
automóvel estaciona perto, e escuto o travão de mão a ser puxado.
Demora um nada, e arranca. Os pássaros chegam-se à frente, ao
princípio de uma canção de amor. As obra já estão a laborar,
rebarbadoras cortam alto e bom som os ferros que querem. Vem lá
outro barco. A chuva acalma, me deixando mais nervoso. Olho todos os
espelhos retrovisores, e repito a operação. Cortam os ferros, sei.
Um ponto ou outro de água, ainda descem no vidro. As manas esperam
sentadas nos bancos. Assim é quê? Um pássaro me passa à frente
dos olhos. Martelam lá os números. Os equívocos, sólidos de
revolução. Tosse alto o operário em cima da última placa
ensaiando o pau-de-fileira, fazendo adeus ao da grua para que venha a
ele. Na bisga, descreve-se meia-laranja com a lança em movimento.
Estanca. Tarde começa. Gritam do interior da construção. Será o
encarregado de mandar esta estrutura pelos ares? Contam ainda fazer o
meio-fio render.
Ainda
dentro, rodo a chave na ignição. Tudo a vermelho, os quilómetros
que já andei, a hora a que estou certo, o nível da temperatura e do
combustível que me resta, a bateria a dar sinal, um ponto de
interrogação aprisionado dentro de uma circunferência, a palavra
STOP. Bato com a porta, vou à rua lamber as línguas de areia do
rio. O marulhar das águas chegando-se à margem, tocando de raspão
ainda outro homem só passeando-lhe à beira. Parou a chuva, sopra o
vento. Canta o galo às duas da tarde. Martelam. Na ponta do cais
junto à estação fluvial, fazem bicha os dedos de uma mão cheia de
pescadores vestidos de oleado verde e amarelo. Falam de assustar o
peixe. Foda-se, larga um de boca, o que é que estás aqui a fazer,
outro para outro. Uma fumarada de nuvens arranca por cima dos prédios
da cidade na outra margem, velha menina. Vai prò caralho, ainda os
ouço dizer, vai prò caralho. EMBARQUE EM TEMPO REAL, diz um
anúncio, REGRESSO A BORDO, diz outro. Acordam as águas de repente,
lançam ondas curtas para a praia, dura uns segundos esta convulsão.
Chega-se, vem passear os cães, mais um de mãos nos bolsos,
chegando-se à água que estrebuchou faz pouco e agora vaivém
baixinho. Os cães espalham-se pelo areal, continuam a martelar, o
vento sopra, os pescadores ficaram quietos, epá impacientou-se o
dono deles. Não há um avião no céu, nem um. O galo canta às duas
e pouco da tarde. Epá de novo o dono deles. Um bando de aves,
solta-se de uma língua de areia. Um barco vem andando a meio do rio
outro parte já do outro lado, vêm ao mesmo. Há barcos em terra,
também, contem-nos.
Vou
às compras, e trago a mais o vinho. Embebedo-me ferozmente, chamando
nomes a toda a gente e dura isto um bocado é quase noite. Estamos
dentro de um lugar só nosso. Nauseado, ajoelho-me ao pés da sanita;
vomito, deixando cair a prótese dos dentes da frente lá dentro, e
puxo o autoclismo automaticamente. Foda-se digo eu. Amanhã é outro
dia, estás a morder. Dou ouvidos às tripas. A fome voltou. E não
sei mesmo o que me fizeram as manas, passou, joguei para trás das
costas.
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