domingo, 22 de novembro de 2015

CACIMBO





Amena fumaça, sitiando o contorno à pele do teu segredo. Mãe transversal, personagem porosa que és; permeável às linguagens acidentais e às outras, as de sempre. Elemento a acontecer, infinitamente frontal a todas as lamas sem caminho prévio. Pergunto por ti todos os dias, por todas as esquinas, a fantasmas garridamente abjectos, e pelo câmbio dos hábitos. Sabem o que sei eu. Sei por outros, que entregas o gesto a quem te oferecer mais. Nada de mais. E desapareces. Parece. Voltas. Aguardas um nada a minha enxurrada, se a pressentes. Quando chego perto, nada dizes. Nos entendemos assim. Impaciente, como vício, o teu gosto por imperfeição e maldade. Répteis de todas as cores, ocupam os lugares vazios por entre a disposição das pedras (laje fria, falsa cúpula), amontoadas segundo o resíduo dos anos passados, com os nomes todos do que fomos por apagar, pela mão dos elementos. Numa qualquer noite a meio, chamas por um outro nome que mal conheces. Enfiar a cabeça dentro da noite, fora da janela; holofotes abotoados na casa dos olhos, alma negra a mirar-se ao espelho da rua. Abrir o rasgo à boca, por onde sair. Levar a coisa dita a vazadouro lunar. Louca serpente a vir de frente, em esforço rectilíneo; embriagada de centrifugação e resistência às esquinas; a pouca distância do meu medo, crava os dentes na pedra onde pousa meu rosto biselado. Desistente. Seus olhos evitam os meus – a verdade o que ela é? Terra vermelha, misturada com um azul longínquo. A meio esta boca abismal, a beijar tudo o que toca. Chão de terra batida. Muros incompletos, nus; habitação passageira, presa nos cantos por tocos de matéria perecível. Chapa nervurada no lugar da parede; parede interrompida por nesga antes de um céu igual, onde pousam olhos com toda a atenção na rua aqui fora. Telhado solto, quase pássaro não vá o vento. A mesa para tudo, ao lado da porta. Duas figuras imprevisíveis a cortar a prosa com sua farinha; intencionalmente me prendem o braço que segura o aparo, com fio misterioso. Duas mãos à cabeça. Choram, e logo crateras escavadas pela gravidade da lágrima que se desprende delas. Espelhos do céu. De chinelos vão, mais à sua roupagem, um de cada cor por cada pé. Matéria-prima amontoada pelas ruas, à espera da mão transformadora. No final lá para o fundo silhuetas de escala difícil, quase imperceptíveis, reviram os olhos na direcção que lhes convém. Outras peças de calçado desirmanado, pendurado à entrada de uma casa, mórbido espanta-espíritos a invocar membros amputados. Música de passos apressados, tamanho abaixo do que é. Gasolina potável, vendida à beira da estrada, para a adição demoníaca (caporroto) ser perfeita a trocar a polaridade à alma. Lanço de degraus, interrompido pela parede da encosta, e não se passa daqui para lado algum. Aves exóticas, atordoadas pela mão apaziguadora do vento fraco. Pneus usados, chapéu-de-sol, cadeira de plástico. Branco. O motivo, este, pincelado por um dia no taipal que cerca a capital. Estatuária de grosso modo e membros inchados pela navalha do artífice, toca-se na parte que se adivinha como a mais sensível, a sua. De olhos fechados. Peixe do fundo do rio, misturado no lodo com os outros, como ele. Toalha manchada com a cor impossível das rosas. BULL DOG escrito no vidro traseiro do candongueiro. A mamã aproxima-se da sarjeta, levanta as saias se abaixa, e mija. Toda esta mobília levada de um lado para o outro, de um bairro para o seu oposto na hora de ponta que é sempre, a todas as horas. Metade da população inconsciente, a outra indecisa. Atrasados na pressa, a atravessarem-se no caminho de quem pensa ter para onde ir. Uma sensibilidade indevida – pensou alguém. Vestidos de noiva trazidos para rua, depois da maior chuva ter caído, pendurados no muro, bainhas alguns palmos acima do nível das águas paradas como se demoram estas também a desaparecer. O bater e barulho do coração, substituído pelo compasso dos geradores, a queimar a atenção ao ar das coisas em volta. Terra do tudo possível; a única livraria de portas abertas, mistura na montra o MEIN KAMPF com o CHE (AUTO-RETRATO), o NOVÍSSIMO TESTAMENTO e os dez corações do REI PELÉ. Cheia de graça. Tropical é o clima e o edifício assim nomeado, onde se projectaram alguns filmes e danças de interior. Arranha-céu em tosco incompleto nos alçados, aberturas suficientes para que, por elas, se atire um mono ou desperdício usado, restos da refeição multiplicada por vários dias, a transformar a topografia das ruas num piso ou mais. Tubagem de grés, fracturada em vários pontos, a céu aberto espalhar o detrito do que nos resta para a terra de onde tudo vem. É GOSTOSA E FEITA POR MEDIDA, diz o cartaz publicitário no cimo de outro edifício. O homem só de uma perna, a ir mais depressa que a maioria até ao final da rua. Cidade das gruas, únicos motivos ao longe multiplicados, pela linha de terra no horizonte: pelas suas correntes a acabar em ganchos, se prendem os pescoços de uns anjos a brincar à noite; mudos, gesticulam todas as loucuras proibidas a quem fica espalhado pelas ruas, fora da hora em que há fome de tudo. E vontade pouca de amanhecer em outro dia. Inferno acessível, seus círculos amarfanhados com desdém por quem só conhece aresta viva, letal. Largo mar a impedir ir daqui àquela parte, servindo sal suficiente às lágrimas, para todo o sempre em todos os olhos, deste lugar consentido pelos deuses da soberba. O forro da almofada, empestado de pesadelos, também acomoda uma cabeça nas nuvens.

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