domingo, 6 de novembro de 2016

AVENIDA PRINCIPAL






Arrasto a cadeira. Levanto o pano à mesa. Apanho migalhas, paciente, uma a uma abraçando o calor dos dedos – as despejo no cinzeiro, lhes dando um banho de cinzas, lhes levando o sol na ponta do borrão de um cigarro mal fumado. Volto à mesa, a mão no inverso da fórmica, procurando ferragem, a libertar seu corpo para o dobro do tamanho. O mistério não é destas coisas, desta linguagem simples em que se perde tempo para outro tempo. Pôr um céu na mesa, rodá-lo na mão esquerda, vendo o que acontece às nuvens. Plantar olhar, sobre a distorção de um castanheiro apanhado a parar por um instante de vento. Entender a inclinação daquele poste amarrado ao mesmo céu com fio de telégrafo. Caminho-de-ferro acabando em curva ali depois da última casa à direita, quase um rosto penteado com duas águas. Pessoas paradas, vestidas de negro integral, experimentando ficar cada um na sua quadrícula. Sopro um nevoeiro cálido, afeiçoando minha meteorologia às suas sombras e espaços de tempo. Recorto o meio-físico, viro a paisagem ao contrário. Levo céu ao peito. Vibro a folha, procurando a derrocada de um monte de tábuas por aqui empilhadas, com a mestria de um dono de obra; umas para lá espalhadas ao comprido, outras perpendiculares a estas, travando o conjunto. Mais castanheiros a outra escala. Viro folhas brancas, à procura do melhor vazio para aí discutir a alma em branco. Construção apenas pensada, a partir de uma data parte deste lugar de integração. Jogo ao chão o que podia ser uma frase completa de um país só meu; passeios de calcário a ondular, líquido, entre tons brancos e pretos. Bancos de cidade por ter alguém, implantados numa sólida linha de solidão. O pensamento se eleva a estátua, nidificando credos no topo interrompido pelo sem nome de um corpo que não o nosso. Ornamentos de ocasião, libertando o casario da distracção evocativa. Levar gente às casas com janelas por abrir, ajustar suas palmas de mão ao peitoril das suas divisões. Um andar por disposição. Dar corpo a um só, o obrigando a ir vestido de negro; fazê-lo atravessar uma rua sem carros a olhar para um lado para o outro, de chapéu-de-chuva aberto, indeciso se lhe dou também um céu. Viro a folha, jogo ao chão outra rua sem sentido; às paisagens contrárias um pouco de espaço entre e por elas, uma às direitas, outra se vertendo, se esgotando ao olhar de cabeça para baixo. Retiro o pouco do que disse para um espaço fechado, construindo aí paredes para as sombras do que o habita; homens moços libertando o mosto das suas figuras, de costas viradas às paredes minhas. Lhes dou roupas que não servem, penduro objectos nas suas mãos de sobra, pertences de ainda outros, e eles ali ficam virados para mim, a segurar coisas não suas mas agora deles a sua suspensão ao meu olhar. Uma porta a cada parede, caminho dos fundos para onde pensar ir se nada aqui ficar quieto. De natural, apenas o que corta a pele de uma luz que entra, vinda de fora pelo espaço de uma telha partida à espera de arranjo. Vendo melhor é um rio o que me atravessa, uma figura desfigurada de nitidez, umas correntes batendo nos degraus das margens deste espaço cortado por linhas de quebra. Grão daninho, o papel de uma textura metida numa folha lisa, a não conseguir reunir o que foi de uma coisa de tocar. Águas paradas, céu por abrir; a canastra dos sentidos levada até cima de perguntas dobradas no seu tecido. Levar olhar a quem mais precisa; se alguém do outro lado a que se não chega, se ali mesmo ao lado de quem o não percebe. Viro as correntes com mão esquerda, as varro para debaixo do tapete encardido, infectado por pés regados pela água que escorre da louça lavada à pressa. O funeral de alguém distante, sentido como a fatalidade da atenção dada a estes pormenores de rua ocupada. Mais gente a parar, outros a chegar, andando devagar. Um carro que se atravessa na estrada ao fundo, não deixando passar mais ninguém. Parou. A posição de ficar, é movimento dentro do que estancou aos olhos. Os órgãos mantêm quente a personalidade deitada à rua. O choro das carpideiras é o vento que faltava às folhas das árvores plantadas faz muito, de cada lado ao que sonho: uma cidade de óleo de pedra, visitada no coração pela água escura gelada de um chão sem princípio, onde paro no que julgo ser o meio da avenida principal.

Sem comentários:

Enviar um comentário