sábado, 12 de agosto de 2017

PERMILAGEM








Ressonas no quarto ao lado; tua boca expulsa, íngreme, a maré negra dos sonhos pesados. Pesponto. Pousa uma varejeira na mão contrária à escrita. Os ponteiros do relógio, além barulho, projectam a sombra do tempo de encontro à parede branca do seu mecanismo. Ponto. Ponto. Ponto. Ponto. Ponto. Mão cheia de certa distância passando a ser segundo. Em primeiro plano, o murmúrio continuado da máquina de fazer frio atando o existir por dentro desta tarde quente e sem razão. Ressonas, e levantas as bielas dos pulmões ao desencontro da voz apagada. Abres-fechas o leque dos ventos, junto do rosto amarelecido pelo enfado. Dás voltas e voltas ao chão frio onde vais deitada. Barafustas com ninguém, invertes os polos à posição do corpo, em nenhum lado dele estás confortável. Amortalhas o corpo com o lençol branco da saudade. Acentuas a estria da fala dobrada, posicionando sobre ti à mesma, em qualquer lugar do corpo, a quadrícula denunciadora das tuas formas possíveis. Me dá a vontade, levanto e vou à casa de banho. Enquanto afino o mijo ao diâmetro da lâmina líquida, noto um vento feito de outra maneira. Vem vindo, ligeira, a varejeira rente ao chão me contando dedo aos pés, se enganando várias vezes depois na conta deles, trocando o lugar certo da porta que a vai pôr fora de aqui. De si. Interrompes a respiração, abres os olhos e me levantas a mão, ligeiramente violenta. Conquanto o rosto não desviasse a face para o encontro com a parede do punho encerrado, voltas a ti. Arrastas a cadeira para junto do que és, acertas o contorno do teu vestígio com toda matéria móvel. Sossegas. Viras as folhas do jornal de qualquer dia, em solta brutidão sequencial. Pronuncias em alta voz, refeição farta de azares seguidos. Apontas olhar, ao caminho feito das arestas vivas dos vários passados que por ti passam, tu que vais sendo deixado para último, ao sabor do tempo de contar. Um dos últimos sou eu ainda a poder dizer te, malquerendo. Ressonas. Te estás marimbando para os jogos de água postos em cena pelas mãos em volta, em franca magia de desaparecerem por detrás das costas, dizendo por outro lado presente à criança que escondida está se sabe lá onde em nós brincando, os sem terra à vista. Vais descalço lá para fora, por aí fora a contar caixas cegas, enterradas por outros, por onde passam todas tuas merdas. A cortina, em sentido ao vento, promete sombras ao paramento de proximidade. Restam apenas algumas horas de luz. Pássaros atravessam ar e tempo, rasando a Via Rápida do Homem. As árvores, à vista, libertam o teatro do gesto, passando palavra aos arbustos rasteiros – apunhaladas, apertam o nó do corpo. A tampa da caixa do correio, em fino recorte metálico, solta sem estar fechada à chave pelo ocupante ausente, se sincopa de ritmos e vertigens, levada nas palavras do vento. Estar sol, num dia que não é brilhante, dá igual. Alguém por quem se espera já de antes, continuando sem aparecer. Pousa o que tens entre mãos, no chão. Paciência. Espera um pouco, ou desiste já de o fazer. Até onde os olhos se perdem de nós, valor que fica a favor da casa, se vê que nada há dessa novidade de se ter a certeza de que se falhou por milésimas. Agora nada. Começa então aí, quando eu te começar a contar. Isso mesmo. Acabou só. O que está lá atrás. Já se mataram ou ainda? Esqueceu só já.

A preta, medida nas laterais ao centímetro e erro mais que suficiente, pelos homens a seu lado na paragem. Se deixa ficar, passando todos à sua frente, quando vem o autocarro. Entram lá para dentro, levando o passe ao encosto da máquina. Lá do outro lado, lhe dizendo o que de ontem aqui esteve e tal, mesmo fotocópia desse aí que já foi dela. Homem só agora. Outro tanto de esquisito, se achando de normal só por ir, assim, com mão atrás, nada à frente, às cuecas borradas pela fome, e de aí, gesticular nervosamente em todas as direcções, besuntando o passado tresandando, nas grades do presente. Me cresceu ali, no meio da rua, um sentimento sem espaço. Uma grande merda. Completamente outro, ele não está bem. Ela agora ainda. Se fica sem ideia, se era aquele o número que esperava sair de lá da outra esquina, vindo da terra da Outra Senhora. Lhe faz diferença tão oportuno adeus, junto ao vidro da alma, se entendendo mal com ela tudo e todos. Sabes. Uma vez, era ela pequenina, engordando o nome de Mindinha, a se desenhar nos lábios de quem lá vai, desconhecido de si, no lugar à janela. Juntando o louco ao mais louco, estamos aqui em casa. Podes vir, passa aí.

No princípio da tarde demolir o tardoz da Grande Viagem emitida por um fio, entre tantos, desde o Bairro de Além ocupado por cópias consanguíneas de mim mesmo todo o Ninguém. Dar livre arbítrio aos animais de casa – que fique ponto assente: nunca há, para dentro destas portas, horas certas para refeição ligeira ou cançoneta. Viva! A lagarta na couve. E não sei quê, que não sei mesmo, estou lhe dizer, houve aí uma confusão. Nesse dia dezasseis. A água, elementar. Foi lá no quê. Imagina. Nem já água para beber, as torneiras estavam secas. Passa o dia, não liga. De algum modo alguém, de lado à manhã, rogando não ser reconhecido como pessoa, desconseguindo se envolver dessa fita isoladora tecida com as próprias mãos. Me batendo nos olhos, mão cheia de artifícios, vêm a perguntar se sei eu a que horas abrem as portas da Conservatória. Não sei, minha senhora. Pausa. Quebra. Descontinuidade. Algum silêncio. Volto já. Moita-carrasco. Só lembro que, em outro dia, vi por aqui indo, por aquelas portas, passar gente. Passar bem. Não vou dizer do que me arrependa, pensando bem. Embebedo-me em casa, logo mais noite feita, sem ter onde cair por entre os caixotes até cima de livros aos quais não conheço o dono. Sai daqui. Sai daqui. Sai daqui. Desligo de propósito o disjuntor geral, me aterrorizando com a falta de vistas depois das mãos abanar, toda a hora pedindo a Deus menos maldade. Nem mais se vê a criança brincando de esconde-esconde, por detrás do vaivém do coração. Marulhando materialmente, artificialmente. Esta foi uma cena cá de casa.


Está agora a pagar caro ter, de boca, metido animais em casa, falando cobras e lagartos. Solta os cachorros sobre quem vier. Vão de vez em quando, dar de comer aos miúdos. Ela devia sair de ali. Sabes amor, fico contente por estar à margem de tudo isto, diz-me, de não saber mais do que sei hoje, de deixar cair um sol do meio da folha branca para lá. E deixar não virar a folha com o vento e deixar pousar a varejeira no braço, ficar com a mosca, chegar à última casa da rua e continuar para lá. Está cheia de cabelos brancos. Eu, de aqui, não vejo. Não pintes outro quadro. Está a voltar, que é a casa dela. Não sei. Arranja outra coisa. Ela é mãe do filho dele. Eu não te quero lá. Eu até entendo, mas faz favor. As pessoas podem não sei. Ela emagreceu até ao tempo em que não tinha filhos. Agora fuma. Agora fora. Exacto. Mesmo a sério. Tem de sair de lá de casa. Ela está a fazer uma escolha inconsciente, sempre. Nem que vá para um quarto, que falar é fácil, é a mesma coisa. Pois. Nas franjas da cidade, onde sítios mais baratos, onde não se passe nada aí. Longe de tanto faz. Viver para sempre lá, nós sabemos. Eu sempre pensei de ti o melhor, encafuada nos teus melhores panos, embrulhando a ideia que não se faz de nada ao mundo à volta da casa, de dentro para fora. Nunca ouvimos nós outra coisa da tua boca, pois davas conta da casa. Davas um olho por ela. Mais a mais cegamos, demasiado complacentes com o que nos sobra nada de mais.

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