Ressonas
no quarto ao lado; tua boca expulsa, íngreme, a maré negra dos sonhos pesados.
Pesponto. Pousa uma varejeira na mão contrária à escrita. Os ponteiros do
relógio, além barulho, projectam a sombra do tempo de encontro à parede branca
do seu mecanismo. Ponto. Ponto. Ponto. Ponto. Ponto. Mão cheia de certa
distância passando a ser segundo. Em primeiro plano, o murmúrio continuado da
máquina de fazer frio atando o existir por dentro desta tarde quente e sem
razão. Ressonas, e levantas as bielas dos pulmões ao desencontro da voz
apagada. Abres-fechas o leque dos ventos, junto do rosto amarelecido pelo
enfado. Dás voltas e voltas ao chão frio onde vais deitada. Barafustas com
ninguém, invertes os polos à posição do corpo, em nenhum lado dele estás
confortável. Amortalhas o corpo com o lençol branco da saudade. Acentuas a
estria da fala dobrada, posicionando sobre ti à mesma, em qualquer lugar do
corpo, a quadrícula denunciadora das tuas formas possíveis. Me dá a vontade,
levanto e vou à casa de banho. Enquanto afino o mijo ao diâmetro da lâmina
líquida, noto um vento feito de outra maneira. Vem vindo, ligeira, a varejeira
rente ao chão me contando dedo aos pés, se enganando várias vezes depois na
conta deles, trocando o lugar certo da porta que a vai pôr fora de aqui. De si.
Interrompes a respiração, abres os olhos e me levantas a mão, ligeiramente
violenta. Conquanto o rosto não desviasse a face para o encontro com a parede
do punho encerrado, voltas a ti. Arrastas a cadeira para junto do que és,
acertas o contorno do teu vestígio com toda matéria móvel. Sossegas. Viras as
folhas do jornal de qualquer dia, em solta brutidão sequencial. Pronuncias em
alta voz, refeição farta de azares seguidos. Apontas olhar, ao caminho feito
das arestas vivas dos vários passados que por ti passam, tu que vais sendo
deixado para último, ao sabor do tempo de contar. Um dos últimos sou eu ainda a
poder dizer te, malquerendo. Ressonas. Te estás marimbando para os jogos de
água postos em cena pelas mãos em volta, em franca magia de desaparecerem por
detrás das costas, dizendo por outro lado presente à criança que escondida está
se sabe lá onde em nós brincando, os sem terra à vista. Vais descalço lá para
fora, por aí fora a contar caixas cegas, enterradas por outros, por onde passam
todas tuas merdas. A cortina, em sentido ao vento, promete sombras ao paramento
de proximidade. Restam apenas algumas horas de luz. Pássaros atravessam ar e
tempo, rasando a Via Rápida do Homem. As árvores, à vista, libertam o teatro do
gesto, passando palavra aos arbustos rasteiros – apunhaladas, apertam o nó do
corpo. A tampa da caixa do correio, em fino recorte metálico, solta sem estar
fechada à chave pelo ocupante ausente, se sincopa de ritmos e vertigens, levada
nas palavras do vento. Estar sol, num dia que não é brilhante, dá igual. Alguém
por quem se espera já de antes, continuando sem aparecer. Pousa o que tens
entre mãos, no chão. Paciência. Espera um pouco, ou desiste já de o fazer. Até
onde os olhos se perdem de nós, valor que fica a favor da casa, se vê que nada
há dessa novidade de se ter a certeza de que se falhou por milésimas. Agora
nada. Começa então aí, quando eu te começar a contar. Isso mesmo. Acabou só. O que
está lá atrás. Já se mataram ou ainda? Esqueceu só já.
A
preta, medida nas laterais ao centímetro e erro mais que suficiente, pelos
homens a seu lado na paragem. Se deixa ficar, passando todos à sua frente,
quando vem o autocarro. Entram lá para dentro, levando o passe ao encosto da
máquina. Lá do outro lado, lhe dizendo o que de ontem aqui esteve e tal, mesmo
fotocópia desse aí que já foi dela. Homem só agora. Outro tanto de esquisito, se
achando de normal só por ir, assim, com mão atrás, nada à frente, às cuecas
borradas pela fome, e de aí, gesticular nervosamente em todas as direcções,
besuntando o passado tresandando, nas grades do presente. Me cresceu ali, no
meio da rua, um sentimento sem espaço. Uma grande merda. Completamente outro,
ele não está bem. Ela agora ainda. Se fica sem ideia, se era aquele o número
que esperava sair de lá da outra esquina, vindo da terra da Outra Senhora. Lhe
faz diferença tão oportuno adeus, junto ao vidro da alma, se entendendo mal com
ela tudo e todos. Sabes. Uma vez, era ela pequenina, engordando o nome de
Mindinha, a se desenhar nos lábios de quem lá vai, desconhecido de si, no lugar
à janela. Juntando o louco ao mais louco, estamos aqui em casa. Podes vir,
passa aí.
No
princípio da tarde demolir o tardoz da Grande Viagem emitida por um fio, entre
tantos, desde o Bairro de Além ocupado por cópias consanguíneas de mim mesmo
todo o Ninguém. Dar livre arbítrio aos animais de casa – que fique ponto
assente: nunca há, para dentro destas portas, horas certas para refeição
ligeira ou cançoneta. Viva! A lagarta na couve. E não sei quê, que não sei
mesmo, estou lhe dizer, houve aí uma confusão. Nesse dia dezasseis. A água,
elementar. Foi lá no quê. Imagina. Nem já água para beber, as torneiras estavam
secas. Passa o dia, não liga. De algum modo alguém, de lado à manhã, rogando
não ser reconhecido como pessoa, desconseguindo se envolver dessa fita isoladora
tecida com as próprias mãos. Me batendo nos olhos, mão cheia de artifícios, vêm
a perguntar se sei eu a que horas abrem as portas da Conservatória. Não sei,
minha senhora. Pausa. Quebra. Descontinuidade. Algum silêncio. Volto já. Moita-carrasco.
Só lembro que, em outro dia, vi por aqui indo, por aquelas portas, passar
gente. Passar bem. Não vou dizer do que me arrependa, pensando bem. Embebedo-me
em casa, logo mais noite feita, sem ter onde cair por entre os caixotes até
cima de livros aos quais não conheço o dono. Sai daqui. Sai daqui. Sai daqui. Desligo
de propósito o disjuntor geral, me aterrorizando com a falta de vistas depois
das mãos abanar, toda a hora pedindo a Deus menos maldade. Nem mais se vê a
criança brincando de esconde-esconde, por detrás do vaivém do coração. Marulhando
materialmente, artificialmente. Esta foi uma cena cá de casa.
Está
agora a pagar caro ter, de boca, metido animais em casa, falando cobras e
lagartos. Solta os cachorros sobre quem vier. Vão de vez em quando, dar de
comer aos miúdos. Ela devia sair de ali. Sabes amor, fico contente por estar à
margem de tudo isto, diz-me, de não saber mais do que sei hoje, de deixar cair
um sol do meio da folha branca para lá. E deixar não virar a folha com o vento
e deixar pousar a varejeira no braço, ficar com a mosca, chegar à última casa
da rua e continuar para lá. Está cheia de cabelos brancos. Eu, de aqui, não
vejo. Não pintes outro quadro. Está a voltar, que é a casa dela. Não sei. Arranja
outra coisa. Ela é mãe do filho dele. Eu não te quero lá. Eu até entendo, mas
faz favor. As pessoas podem não sei. Ela emagreceu até ao tempo em que não
tinha filhos. Agora fuma. Agora fora. Exacto. Mesmo a sério. Tem de sair de lá
de casa. Ela está a fazer uma escolha inconsciente, sempre. Nem que vá para um
quarto, que falar é fácil, é a mesma coisa. Pois. Nas franjas da cidade, onde sítios
mais baratos, onde não se passe nada aí. Longe de tanto faz. Viver para sempre
lá, nós sabemos. Eu sempre pensei de ti o melhor, encafuada nos teus melhores
panos, embrulhando a ideia que não se faz de nada ao mundo à volta da casa, de
dentro para fora. Nunca ouvimos nós outra coisa da tua boca, pois davas conta
da casa. Davas um olho por ela. Mais a mais cegamos, demasiado complacentes com
o que nos sobra nada de mais.
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