Os comboios não deviam andar
(para trás)
Allen
Halloween, Drunfos.
Ganhas
a taça. De um branco, tinto ou palhete. Sabes, assim sei eu, nunca é a cor o
que verdadeiramente importa. O vazio, sim. Lá no fundo, a te contar pelos dedos
certa voz, ficando, te lambuzando os ouvidos, aos poucos e caídos. Quase não
restam dentes para arrancar à gengiva da forma. Se massaja a carne com pecado
ou outro, se nisto se acredita. Sim, senhor. Nada de mais, pelo menos. O que sobejar,
a este nada, serve. Servirá a outro, que se aproveite. Cânticos de época
passada, entoados a só voz, datados por carbono admitido em passeios gastos na
sola da pedra. Esquadrias intrusas, mal dispostas em espinha. As vozes, algumas
luzes, se diminuem quanto baste, à atenção dada a outra coisa que não esta. A coice
dado, se não salva a serpente. Dá um olho por isto, enquanto volto não volto. Pássaros
escorregadios, brinquedos de lata dobrada, lavando de vermes o tronco às
árvores plantadas no espaço de uma limalha intrusa ao olhar. Espaço diluído,
percorrido e ultrapassado pela direita do silêncio. Sinetas espessas,
percutidas pelo lado de fora, as almas fecham as portas com estrondo, e se
desculpam com o mau jeito. Se dá corda ao gesto, um que seja, um que se veja. Tosses.
Sim, senhor. E agradeces tudo o que te é tirado. Te tocas, é hora. Não estás
certo. Nunca estás. És relógio habitado por falso cuco, amestrando fora de
horas os gonzos do lugar dando entrada. Dás lume a quem por perto passa e pede.
Nas mãos experimentando a têmpera, a ajustando ao hábito corrente. Mecanismo gago,
certo incerto picotado na esponja da pele, apontado a dedo ao longe nada lá. Nevoeiro
convulso. Foste enganado, sabes. Dizem que a noite foi a de ontem, e por lá
ainda não passámos sequer, não, trovador, não no meu calendário, nu de mulher e
seus dias do mês. Tanto melhor, em menos de nada. Me deu certa volta ao
estômago, vomitei os restos do jantar, ainda que me não lembre do que comi, ao
que joguei a mão. Vai-não-vai, foi. Pões a chaleira ao lume. Na bancada de
trabalho cortas o dedo e o gengibre, os reservas para daqui a pouco. Escuta. Eu
também. A locução distante de um verbo transitório. Coxeias ligeiramente, sim. Mas,
sobretudo calas. Mais à frente, na rua, dizes o que foi de ti. O horizonte é
lâmina dada à boca. Palavra gasta no fio circular da mó, lá, encostada ao corpo
do moinho inventando correntes para si. Mo apontas por conta do que gastámos à
tarde a que viemos a ser. Mansas águas mendigando olhares e actos irreflectidos
para seu meio de vazar. Um par de sapatos vermelhos, cravados de esferas
negras, abandonados sobre a caliça acomodada, no contentor de entulho
atravancando a viela onde nos apanhámos do chão. Visitámos hoje as ruínas de
casa, não nossa. Reforçámos a pedra, no rim de nosso querer traçado por vazios arquitectónicos
e caídas malhas estruturais. Inspirados, acertámos em implodir, um destes dias,
longe de paredes e outros perenes cacarecos. Focos de luz, embutidos em tecto
simples, nos rasgam caminho no vidro, até ao limite franco da perspectiva. Animal
de balão azul dobrado raso, à mão da criança perdida no túnel de rede suspenso,
a meia altura entre o chão do agora e o céu do nunca mais. O degrau do
silêncio, em passo confortável, decomposto em cobertor e focinho. Depois de
mim, sobes, lenta, a escada do acaso. Entre pisos paras, pedindo ao ar um nada
de oxigénio para ti e para os teus pulmões algo desencontrados da sua caixa
alta. O cão vai justo à corda da mão. A mosca intrusa, rouba um pouco de
atenção. A prosa se fixa, imperturbável. O velho por perto, andar abaixo, tremendo
o rosto em vários sentidos, pronunciando a beiça inferior para fora da sua
linha, dado por observado, se desconchavando, se libertando da matéria rigorosa
do corpo, acelerando o passo ao desaparecer. Roufenho bombo, mesclado no
tecido das gentes se passeando em um dia de nada fazer. Há, por aqui, fartura
e cachorro. Ócio de brincar, e de se fazer de ocupado. Olho de vidro. Paixão de
ventríloquo. Azar. Tudo deitar a perder, se afinal se deixar ver. De
onde isto vem, virá outra coisa. Melhor pior, outra coisa. Ladrar de lado, e a
esquina morder de viés à sina. Parar de rimar, imediatamente. Ir à porta, rodar
o puxador. Confirmar estar fechada, ir ao balcão pedir chave que sirva. Não,
não sou eu. Parte deste. Abres a caixa. Alinhas, no chão, as ferramentas que
nunca pões a uso, e inventas para elas o absurdo da necessidade particular. E problemas
de construção. Timorato servente no asilo da esperança, temo aquele que
surpreendo ao espelho. Coincidimos por nesga, em discordar sobre o mesmo tema
ou figura. Partilhamos a gaveta única dos riscadores diversos. Ao contorno do
corpo, damos um costume parecido. À vida, nos dá igual. A nada. Puxas água ao
autoclismo, rodas a chave, viras o rosto para debaixo da calçada a fingir, no
interior do edifício de servir. Buzinam. Desviam olhar, nós olhamos de igual. Podia
ser o carro do peixe, a biblioteca ambulante, o homem dos gelados, o amolador
de facas desusado de flautas de Pã, o padeiro. Vários são. E nenhum me serve. Procurar
por ti, revolvendo chaves no fundo da mala de viagem. Aqui estás deste lado,
hoje. Andas atrasado, pois areia é vírgula para frase andando por aí. Desces o
balde negro à fria noite circular, o atestas um nada de memórias e rostos
deformados. Acendes cigarro, antes e depois do coito. Não travas. Vais andando.
E suspiras. Usas e abusas do químico nos papéis que te dão à mão a rasurar, em se
cumprindo. Papéis espalhados à toa do gesto, pelo tampo em pedra, no interior
da divisão no piso térreo. Queres querer. E nada. A mão vai nua à corrente. Se equilibra
o corpo, em um dístico colado ao ar quente do sopro desencantado da tua boca
breve. Anda irrequieto um cavalo de madeira. Espera. Enquanto se transporta o
sentido sem fundo, da página anterior para o subsequente agora ainda, sem
movimentos estudados. Precipitação. Voltámos à noite. Pagas tu. Mandas vir. Esconjuras
o carácter circunflexo, desta falta de jeito em te fazer um agrado. Desprezas qualquer
manifestação de sinal contrário. Deu positivo, para o que deixaste entrar. Passa.
Eu ao menos tu, te dá igual. Sim, senhor. Quantas vezes fora o Mundo em
carreiros. Formigas descomprometidas com a albarda dos afazeres. Moedas batem,
umas nas outras, reproduzindo o ruído de um olhar atingido por imagens
disparadas de um só ponto. Contamos armas. Juramos servir, à justa, o propósito
firme de não dobrar a folha em mais de duas. Contamos estar por aqui um dia ou
dois, amanhã e depois. Outra vez. Voltar à vida que nos traz o dia por passar,
olhando por cima dos ombros para trás das costas. A luz se não abre, se acende.
À hora dela. Não ligues. Me podes responder, então. Se não tem isso que se
ligar ao que seja. A este àquele ponto à parte, chamas o agora. Já. Lá vai. E
estão quase todos aqui. Corremos o risco de Deus ligar e cá, por pouco, não
estarmos a nos explicar. Para, esquece. Lhe agradece outra vez, tal como o
farias com qualquer perfeito desconhecido. A combinação do entendimento, porta
abrir fechar abrir bater. Ir para dentro, perguntar. Ao de ti mesmo perguntar
se alguém viu ouviu alguma coisa de mais. Sim, senhor. Aí estás? E ainda,
legitimamente, será este perder o fio à meada do caminho desencontrado. Desconsegui,
sim. Ali está, ele ali a se descontinuar. Sangra? Veremos. Vá lá. Estou perto,
de nunca lá chegar. Estou certo. Pensava já que estava perdido, além de tudo. Indirecta,
esta luz implica no restolho das sombras precisas. Sombras reanimadas, à superfície
do transtorno. Vamos a ver, e é pouco. De esta hora de aqui, em diante, nunca
haverá tempo para nada. Sabemos. E nada se marca para nós, com a tinta de uma
data. Não. E nem há certa, a proporção
de ouro que nos caia bem e nos coloque em posição, determinada seja, no interior
da fotografia, nos beneficiando de alguma forma, e de que maneira. Fotografia olha
o boneco, atirada para debaixo do tapete, em se revelando, da herança dos
outros. Ámen. És o que se fixa de um grão em superfície qualquer. O que foi? Não
respondas, não agora. A tentação, insuspeitamente,
é toda ordem projectada à carne, com a precisão transgressora fora do risco. A
tentação, de igual para cada um, é a vianda dada à mão cheia à boca no focinho
da besta ideal, em dia incerto. Outro dia nos traz, o que ontem e antes de
ontem nos trouxe: o clarão lapidar da repetição, e a esperança retorcida sobre
o que haverá de novo na hora próxima.
Pela
rua fria, madrugando, intransigente, o velho esquizofrénico, forçando o ritual,
a se chegar à paragem onde, à mesma hora de sempre, espera o autocarro um fêmea
exemplar de idade meia. Lhe dar a mão, e a falha dos dentes num sorriso aberto,
dispersos pelo tempo de chegar seu transporte. Ela se abre de afecto, e o
velho, nessa faísca arrancada à existência a lhe fugir, vive pouco mais que a
maravilha do milagre caído a seus pés. O autocarro arranca, e de uma de suas
janelas se sacode ainda um adeus ao velho. Em desaparecendo a forma motora no
ponto final da rua, o velho se transfere de modos para as fachadas à volta, atravessando a passadeira, se equilibrando na bengala, se sentando no
degrau em pedra da mercearia, até à hora de abrir o comércio. Me atrasando, já
o vi aí entrar, demorando pouco a sair, com uma garrafa pela mão, já aberta, de
um leite achocolatado, e se voltar a sentar no mesmo degrau. E beber de um
trago só. O que ainda não sei é, se recuperará ele a tara.
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