domingo, 20 de abril de 2014

TÍMPANO




Distingo o teu contorno numa luz específica, contemporâneo do modo barulhento do pássaro engrenado na primeira mudança do dia. O rosto de um de nós – construção ilegal, para onde desapareço no final da tarde. Ressoamos desencontro pelo tambor da rua, instrumentos de pé velozes. O desenho ondulado do vento que se aproxima de um canto silencioso na nossa sombra. Digo desaparecer e tu não o sabes até amanhã. Entendes num sinal de igual e eu finjo a tua direcção, alterando-me a tempo de não ser o outro lado da rua. Confirmo se não há mais ninguém a vir para dentro. Não, ninguém. O esqueleto da noite ainda sem carne, a última luz inclinada que escorre dos telhados. Volto inverso pela escada do mesmo prédio, desmultiplicado pelo reflexo nos espelhos dos degraus por ali acima. Paro. No último piso somos dois para a refeição que houver do outro lado da porta, eu e a luz de fora que sobra da clarabóia. O patim deserto de mais sombras que não a minha. Se continuo, não há mais portas do lado direito. Agarro a parede e o corrimão, crucifixo barato errado nas horas e só levo a roupa no corpo. Não chovia antes de subir e não chovia quando desapareceste, não me lembro se foi antes de teres ido ou se passei por outros lugares antes de ter subido, o momento preciso em que ocupei todos os espaços vagos nestas roupas com papéis amarrotados de branco. Onde as minhas mãos evitam tocar, na sugestão de um curso de água violento pelo abrupto rochoso dos nossos olhos que se esquecem do contorno da última coisa que existe com vida. Coisa que se não escreve, com medo do corpo gigantesco da palavra que fica para sempre espalhada pelas esquinas da memória, nascida dessa tinta que se dissolve com a água dos olhos e se escreve noutra língua que se não conhece. Um mistério que me não interessa não há tempo, tenho de despir estas roupas que me ensopam até aos ossos deste dia que já não quero com o teu cheiro. Arrebataste-me a manhã onde viviam os contornos da coisa de nós e o dia de hoje também. E já não volto a descer as escadas. Continuo parado em frente à porta, vejo-me sombra indistinta à volta de um olho de vidro que nada vê para dentro, se existir aí alguém. Dispo-me num cerimonial ordeiro, dobro as roupas pelas costuras e deposito-as em cima do tapete velho da entrada, enquanto procuro a chave. Entro numa casa escura, um quarto único com luz por descuido, os estores que ficaram esquecidos na posição recolhida, com vista para a imensidão da paisagem do prédio em frente. Baptizo no momento esta divisão de estendal, trago comigo as roupas. São cordas o que imagino mal esticadas, presas às paredes, uma teia funcional onde esqueço as roupas, desdobradas como insectos tecidos ali à mão de serem pele. Enlouqueço antes do corredor, nunca sei de que lado, se da despensa vazia ou da instalação sanitária onde estendo a mão aos meus bichos aprisionados. A mão que estendo para dentro do corpo a contar artérias ao acaso, o poço onde perco o grito e sempre pensei que o corpo fosse estanque a uma voz que se engole, da minha voz sabia da tua voz não, esquecida numa canção que me inquieta. Afasto o corpo nu de mim, moldando-me na geometria da divisão, nesta casa a mais fria onde a pele se incomoda. Demoro-me por ferramentas já escolhidas de outro dia, insuflando de vida a madeira do centro, levantando-a do chão no lugar de um coração será família o outro nome, com essa acende-se uma fogueira e já ardeu uma vez era frio. Temo-nos, temendo-nos, a nós e às temperaturas. Sujo-me do difícil – confortável nó górdio que se não consegue explicar mais apertado – da sombra líquida que transborda de um corpo nu a um palmo do chão, espalhando uma nascente por onde insistem peixes na corrente inversa, com sangue seco nas guelras que me tocam já as pernas. Outro sul o coração – outra construção inacabada por inteiro -, substituído por um molusco experimentado na tempestade, que se agarra à nossa comum parede solta. Maravilhosa máquina imperfeita, que funciona mal com amor. Abandono um de mim a arder, e tomo a direcção da escada, paro, agarro o corrimão. Lentamente se substitui o ar nos pulmões, por uma viscosa criação de mim até à boca. Fecho a porta por trás de mim, esqueço o caminho e indico-o por gestos. Falta-me sempre qualquer coisa quando saio para fora e nunca sei o que é, me não consigo lembrar do corpo prolongado invisível pelas cordas do estendal à minha volta. Lembro-me de outra coisa, de ti às vezes, lembro-me de tudo, enquanto há uma cascata de peixes tristes que me saem dos olhos surreais mesmo com chuva. Trovões, outra percussão, o coração da terra ao alto o céu. Notas missionárias musicais, decompostas pelas rótulas no campo aberto onde se dança sozinho. Paro as vezes que forem, volto a dançar tu ao longe. Grito-te: não esperes um dia de viagem e sou o teu lugar do lado vazio. Daí onde nada juntos, mãos fechadas a bater nas portas que já não sei a minha, tenho pressa deixei insectos vestidos de corda bem costurados pelos pulsos.

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