Uma
estrada cortada pelo olhar. Este olhar limitado pelas bermas, inclinação mínima,
por onde se escoa o que sobra ao que há, de nomeável, até ao interior do sumidouro
sem fundo do mistério, suas paredes queimadas pelas costas da colher que o
alimenta mais e mais. Tudo um plano violento, a interromper as fachadas ou
encontro de materiais diferentes. Neste rectângulo que encerra o capturado, o
mulherio forma bando e empurra um automóvel com uma cor indistinta (não é possível
reconhecer, ali, um condutor, se o tem, está para lá dos vincos segredados pela
chapa retorcida), agarrando-se ao lado de fora, contrário ao volante. Ali perto,
tão perto, um sinal não permite virar à direita. O céu que aqui pertence é
loteado a certa altura, dividido em talhões incertos, desenhados a explicar o
limite onde começa e acaba tudo com arame farpado. «Aqui não entras, eu aí não
vou.». Alguém que se demora um pouco mais no meio da estrada, não sabendo por
certo que é lugar difícil para se esquecer ou pensar no que for. O olhar
atravessado, virado ao contrário. Mau-olhado. Como era costume ao olhar para ela
sem saber onde o pousar, pois era ela todo céu. Eu e ele, pássaro repetido, um
volumoso nó, claro plural, no que éramos e logo outros a seguir, desfocada
mancha ou distúrbio, a ignorar a direcção aproximada ao que parece ser aquela a
tomar. Se vê e se deseja, se usa e se abusa das perspectivas e dos pontos de
fuga. E nada, por vezes, assim por dizer. O motivo acidentado fica lá atrás,
onde começámos, a aguardar resposta a um telefonema urgente, esperar ver umas
luzes de emergência a virar a esquina, vir até nós o reboque que irá desimpedir
a estrada dos nossos ossos. Ocupamos este lugar ao palco, no anfiteatro
escavado na urbe; a nascer de aqui extensas escadas sem finalidade, porque por
ninguém utilizadas, outras ainda só ideia fixa a traço azul, na lateral tosca
da cofragem que molda este pensamento em bruto. No seu interior ainda nada; se
vertem todas as misturas, doseadas a olho sempre diferente. Inertes
desprendidos, parentes pobres dos versos. Situações quotidianas, despidas da
sua simplicidade aparente, ossos bonitos a conversarem uns com os outros e eu
ali no meio, de lado. Um recém-nado dorme (de branco total vestido) no cobertor
escolhido ao acaso do degrau, na escada infinita, alheado às preocupações deste
pássaro, que por ele passa rente. Um passo se entrega (espessura desconhecida) à
lateral dos panos da alvenaria retorcida, incomodada pelo negrume dos segredos
capilares que, por ela, sobem. A disposição do conjunto, maquinal. Avesso tudo
a ser capturado, baralhando o tempo e o que pode ser realizado em tão pouco
dele. Duas figuras, a mão no queixo a perguntar aos espelhos deste lugar o que
é delas. Um relógio de pé, marca lento o modo de ser esta tarde e outra pele,
na mesma parede exterior a porta escancarada, eu a seguir, na rua para onde dá,
costas viradas àquele pássaro de interior. Rosto que se não vê, virado para a
frente, a entrar na construção essa luz que de fora vem, esquadrilhada numa
diagonal absurda, e atravessa outra vez meu corpo em dificuldade. Minha sombra
é desviada para a ombreira do vão, se confundindo no seu recorte, se
interrompendo no final desta folha como é hábito. Símbolo universal, o homem é
pássaro desnorteado, renunciando ao céu superfície quente e frontal, descansado
que outros o esqueçam, enquanto vai por ali afectado à parte de trás do que se
movimenta por aqui, suas asas braços obtusos, à altura da cabeça, a terminar
fora de mão a fina corda que, por sua vez, mal segura o que vai dentro deste
veículo desgovernado, de resvalar para o poro infinitesimal. Barril de pólvora
mal acondicionado, uns ao alto, outros deitados, despejados por mão invisível
pela alma do sonâmbulo abaixo, que arregala o olho para o tardoz do caminho. Assim
se alastra a desgraça possível, como água impossível. Enquanto meio ser, ainda
não homem quase a ser pássaro, segura, ao desafio, um cigarro em chama. Pois imita
este aquele o que será, o abraço ao céu semelhante: olha para nós de frente, e
atravessa, em silêncio, nosso sonho brando. Entre uma coisa, e outra (senão
outra ainda, de que me esqueço), a marca limitadora da velocidade em desuso, um
número como outro. O muro já lá estava (depois dele uma árvore em esforço, a
empurrar, com seu braços de vento, o verso desta matéria separadora). Junto ao
muro, alinho a personagem que se veste impecável, traço de giz no molde de
alfaiate, atirado pelo poeta à mesa das operações, e alterado pelos instrumentos
de cirurgia afiados pela pedra da semiótica. Vemo-lo de costas, a noite em cor
projectada no seu tecido um nada de rosto, em perfil, a deixar à adivinha dos
olhos todo o espaço de que precisa. Seu olhar atravessa, sem olhar, uma estrada
intensa. Carroçaria esventrada de toda a emoção, é levada às costas pelo
tomador do seguro: o que lhe calhou em sorte, carregada por entre a poeira das partículas
que se libertam pela repetição da estrada, a recta indecisa em se acabar, se multiplica
pelos dedos a ignorância conduzida com uma só mão.
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