segunda-feira, 25 de abril de 2016

APONTADOR








À CONVERSA COM:

* “ADVERTENCIAS AOS MODERNOS, Que aprendem os Officios DE PEDREIRO E CARPINTEIRO” por VALERIO MARTINS DE OLIVEIRA
1ª Edição: Off.de Antonio da Silva / Lisboa / 1748 Presente edição fac-similada: Arquimedes Livros / Maio de 2008






I



«Ponto, he o q não tem partes.» *


Sirene faz de conta dobra canto ao quarto, arrancando corpo à insónia. Corpo à força, feito em nevoeiro pontual. Hora em ponto a ser menos um quarto; às voltas a pálpebra, sensível tremor. Marca o tempo movimento e corpo, minutos passam a se parecer uns com outros, sombra de um, passada ao outro em mão, torcidos na haste da noite para onde foi ela. Minutos corridos, passados, em passo louco, intermédios – quando se diz GEOMETRIA, param.

Escalímetro deformado, traços apagados na meia-tinta da memória curta; passar a outra parte, vir de mãos abanar os largos espaços da incompreensão.

Param. Os minutos param, parecendo os mesmos de há pouco ainda agora, engalfinhados na ordem de chegada ao coração; o primeiro ai de mim marcado, visível, no mostrador a hora que me tem prendido; e nisto se perde algum tempo, avançando, arrancando prosa à raiz, quadrada forma deste quarto, deitada ao princípio, ainda aqui vamos mais volta menos volta não há a dar. Confirmando olhar em frente ao espelho do relógio.
Descubro quarto ao corpo; suas medidas, fora do cobertor, se completam de pés no escuro, procurando chinelos, pois ponto de luz não é para aqui chamado. Frio está frio menos frio, zero objectos encontrar, apontando os pés que para isso se governam, a vista menos, a mandar boca às mãos para que lado. Costas à cama, onde ângulos vivos em corpo ressonam ainda, marcando medida fêmea na outra ponta; nossa cópia fiel ao meio, por desvio, a dar ordens comuns ao sono, pela boca, música de interiores. Lépidas almas dançam, umas contra outras se não magoam; uma a afugentar fantasma cá de casa, a outra não se entende ainda em transparências – o que pode nela um equívoco? Pouco ou nada, pois nela perdem a mão. Fracção de tempo; não mais há que sobre, na direcção errada.

Dedos contam lombadas de cor igual no escuro: ao ré da tábua cómoda, o grande livro dos segredos dos códigos, outros de poesia, onde alguém grita pela Mãe por Deus, por qualquer ordem, dirigindo súplicas às paredes. Nunca passarão por esta espessura de ânimo leve, e de moda. Cada parte de um todo dividido na parte que lhe calha, se cabeça tronco ou membros. Minha pouca mão em tudo isto encontra os óculos para vos ver melhor; baixo lentes ao rosto, nivelo o chão à Linha de Terra, subterraneamente. Chão que é o mesmo para todos, onde jogo mão a ver se não o perco, a alcançar casaco ali deitado feito cão, que é Inverno. O relógio na hora combinada, me encontrando no escuro.

Encontrar saída a isto; ir pelo corredor às apalpadelas, saber por alto as fiadas aos azulejos presos até meio da parede a dar-me conta do caminho sim, de aqui ali ao fundo dificilmente se nota diferença, matizado de realidade, incomodando a escuridão. Denunciando que é dia lá fora.
Apresenta-se porta pela esquerda, como a quis, encostada a ontem, à noite em que fui o último a jogar-lhe a mão. Neste ponto insistir, voltar a entrar, ser móvel como outros, atacado pela térmita solar – ínfimas bocas, activadas pela Voz; centelha divina, acendendo sombras na lenha seca do tecto. Copo de vidro apanhado, braço esticado, da árvore-armário. Torneira aberta, água saindo, transferindo e acrescentando nascente ao corpo; corpo a pensar «qual órgão me agradecerá».

Alcançar redondo o cinzeiro; encertar maço tabaco, tirar cigarro ao acaso, levá-lo a ver o dia nascido, filho de outros dias e mãe, afastar para o lado a janela de correr.
Avizinha-se árvore a crescer para os olhos, quem a viu um nada há pouco ainda dormindo, som de fora ausente atrasando rua ao olhar, atrasando outros a olhar – minha verdade de vão aberto; os pássaros que sim, emprestando movimento ao sangue que não percebem, me correndo nas veias. Não me ficando, acompanho um ou outro desses pássaros até à esquina, onde rasam para desaparecer. Ao perto cão, trazendo para dentro de casa a doença da fome, a transmitindo ao chão, ladrando à hora mordendo mão ao tempo, do qual seu dono não é senhor. O cigarro a meio vai, queimando pensamentos uns atrás dos outros, no que foi ainda ontem. Pássaros rasteiros, a lavrar de entusiasmo a manhã chão às voltas, pela árvore a que sobem à vez, rendendo brincadeira, alguma distracção e dor de cotovelo no corpo resignado do peitoril, prolongando o acordar. As peças soltas do sol a se encontrarem, encaixando-se, devolvendo-lhe figura, e ele a se chegar à frente para a frente dos meus olhos, vindo lateral ao seu princípio, dar ao meu braço incómodo, encandeando minha bicharada aí tatuada. Dou por sol a empurrar, tal criança malcomportada, «raios!», os prédios que nos separam, pondo-se ao alto. «É o meu ganha-pão!» diz, a cuspir sombra por sobre os pássaros, que lhe fogem a evitar contornos, tomando lugar ao verso escuro da folha à mão em jeito.

Deixar passar último cantar, negar atenção à transformação de aquilo em qualquer coisa. Vir para dentro, atrasar os braços no corpo para trás das costas; manter a previsão de ontem tempo nublado, no céu semidesértico da alma. Automaticamente pôr de lado imagens que não autorizei a serem divulgadas, ao de mim para mim mesmo. Dispor as várias peças à minha frente, moldadas em aço, qual arma a ser montada sem paciência, rápido que não há tempo.
Para mais não menos, lençol de água puxado para cima até à gola de rosca sem fim: à vista se planta pó de café, que se escapa dos dedos. Audível murmúrio material enfim, comporta estanque; pousar objecto ao centro da grelha, acender o queimador, disparar chama, pôr dedo no gatilho do isqueiro, desviar corpo ao fogão, por algum tempo para ele não olhar, cuidando que o fogo é estável. Voltar à árvore-armário, abrir janela para os fundos, apanhar prato da pilha, pôr a tocar seu disco; sem querer, música de vidro quando bate em outro a ele igual; baixar seu tom branco até ao silêncio. Ir ao cesto; os olhos a chegarem primeiro, revolvendo côdea descobrindo vida além desta, pequenos fungos plantados pelo esquecimento – não é hoje que deito pão fora.
Mãos dormentes, assimétricas no gesto, quase a competir pela ordem em que chegam, armadas pontas sensíveis, a ver quanta pele com sentido é arremessada à superfície a tocar em primeiro. Uma se perde pelo caminho, em mão à mão assim, sempre lhe sobra o tempo, ocupando-se dos despojos da outra mão largados, pondo dentro no bolso enrugado da articulação, migalhas da matéria que utiliza para desenhar um caminho, contra o círculo ditado.
 Fatias de coisa pouca a ser dita: simples mata-bicho, mata-borrão da gordura dos dias a começar por levar à boca; um pedaço que acabo a mastigar primeiro que o tempo que levo a me comover, e assim o dizer.

Metro coluna d'água, imagens afogadas no anteontem. Cozinha inundada de luz, corredor imerso na escuridão. Por agora levar mão e lado da parede ao seu encontro, seguir rente assim até ao fundo; imagens turvas, sobrepostas ao mesmo que sou no espelho, que pela porta espreita pela metade, abertura incompleta, caibo ali se para tanto experimentar entrar – instalação sanitária – parte assoalhada, gesto que se repete toda manhã a nascer para o mesmo, noite e dia eternos.





II



«Linha, he huma quantidade sómente longa…» *


Venho e vou, da cozinha à sala: descubro mesa em miniatura, cor vermelha; sobre a mesa estendo toalha que não é lisa – uns dias são bichos, outros dizeres, peça de fruta aumentada para que lhe caiba na sorte do quadrado. Guardanapo de papel, dobrado em triângulo, copo de plástico até meio de água.
À espera de sinal stop audível: o leite espera quente nas entranhas do microondas. Abre-se gaveta, o metal da colher acomoda-se aos dedos, transporta a dobrar o que adoça, mexer bem, escolher palhinha de um cor-de-rosa cada vez mais difícil, sendo a cor sempre pedida.
Pela geringonça de mola a torrada salta, vai para o prato. Faca apara a côdea que levo à boca. De resto que engulo, reforçando mata-bicho de há pouco. Equilibrando mãos e voz, ocupadas que estão com função de levar coisas ao seu lugar, a chamar criança à Terra «senta-te à mesa vai-vem comer», ela quase o tempo todo fingindo que me não ouve se lhe não interessa.
Pouca coisa aborrece tamanho sorriso boneco; vou pelo barulho dos seus passos àquele lugar onde se esconde, viro aresta lá está, sua gargalhada salta fora seu esconderijo, denunciando posição – lhe dou a mão.
Transfiro planta no vaso, da mesa para a estante dos livros, libertando a diagonal traçada a partir dos seus olhos, projectando-se no ecrã da televisão transmitindo animados bonecos, suas cores impossíveis, seus lugares encontrados vazios em segundos - um cozinheiro com estrondo caindo ao chão, uma fêmea de elefante dançando a valsa num fundo branco. Sigo com o olhar o olhar dela, cada um de nós se ri de coisas diferentes.
Está na hora, me levanto, levando-a a levantar-se comigo, apago tudo, desço até meio o estore à janela da sala, lhe dou a última demão de roupagem. Dou chave à porta, quantas voltas, a levantar ferro do chão, saímos para lá na direcção nova que há por haver. Pela clarabóia na zona comum do edifício, se aclara o cantar aos pássaros como estridência preguiçosa. Rodo chave na ignição, e nos vamos daqui.





III



«…nas mãos, chega também aos pés; não tirando a ponta do embigo, faz figura…» *


Quase em ponto chegamos, não sem antes estudar pelo caminho a tabuada da horta, lavrada nos quadros fundo a branco, arrancando fiada à terra: aqui curgete ali tomate ao lado cebola couve a acabar – sabe-la toda pelos desenhos, dizendo o que sabe em alta voz.
Vêm outros meninos virando a esquina, dizendo bom dia sem cerimónia; a brincadeira de crescer começa um dia a mais.
Aqui tens meu coração, põe-no junto ao teu, mo leva (me dás o teu) logo.





IV



«…: hum de cabeça, outro de aduela.» *


A canção – se eleva pelas paredes da casa, os tambores estremecem, se quebram arestas à sanca linear, marcando compasso ao tecto – que vem, em (bala). Musica para trabalhos forçados, indo pela berma: maço aos ombros de um, em outro, picareta lhe desce do semblante carregado, céu outro continente, palmas sincopadas abrem buracos rasgos veios a braço, na terra que nos come vivos – encardidos seres tremeluzentes. Não canto no banho, e menos ouço, quando água escorre dos pés para o ralo; fecho torneira no final desta canção.
Ocupo bolsos com haveres. Espreito para o final do corredor; o saco preto do lixo, espera porta por abrir. Vou já. Desço à rua, apanho autocarro, abro outro saco, saco livro, mudo marcador de página, mudo de parágrafo sobre a Morte num país de outro ano. Ultima paragem, saio. Tomo café, fumo cigarro. Lá vem comboio, procedente de Coina com destino a Areeiro; irá comboio, quando vier, dar entrada na linha número três se não circular com atraso, apresentando, se assim for, desculpas pelo incómodo causado.
Na outra linha, atenção à passagem do comboio sem paragem.





V



«…e o pescoço, e a boca comprehenderão duas partes, e duas ao meyo…» *


Fico para último, na plataforma da estação.
Escrita a branco, está a palavra POESIA no muro de suporte em betão armado, que segura a vala da linha, justo ao lado das anotações a vermelho, cotas altimétricas, pelo pulso encarregado da construção que é passado. Pássaros parados de voar andam a ocupar este céu artificial, de um lado ao outro, caminhando de sobre perfil. Surda-muda a fingir vem pedir moeda, se esquecendo que ontem também foi dia de nada lhe dar, além de um sorriso.
Vou do comboio ao ar, do metro à terra, medindo a manhã em passos.







VI



«…em hum ponto, os nomearey muitas vezes com uma só letra para evitar prolixidade…» *


Aproximam-se em blocos, e trazem não só a voz como corpo: planos cortados de onde a tiram – ó voz por berma de estrada, ó voz pisca a avisar que vai encostar, ó voz que viaja no banco de trás, ó voz a descer ao metro por cima de outra voz, ó voz pelo telefone vida distante, ó voz arrancada pétala, ó voz pátria diferente, ó voz se me faço entender, ó voz na mesma língua em que não se diz trégua.
De tanto teimar, vejo vultos – vaidades. Há horas de sorte. Colada às solas, esta vontade suja de ser de outros lugares como todos, ser outros e nada. Ser eu, entornado para a bacia funda do Mundo. Nada se sente, por nada.

Do que me obrigam, não ouvirão mais. É conta simples, ao final de alguns dias que iguais.





VII



«…e escreverão, para que de mão em mão corressem todas as naçoens…» *


Minto. Minto com quantos dentes, rilhando um lamento. E não ganho nada com isso. Ultrapasso a objecção, voz à tona, com a negação. O que passa, se passa, é deixá-lo…ir do avesso. O hábito é inquilino incómodo da habitação universal, de outros materiais feito tábua rasa.
Tenho sede, me acaba a água – vou à fonte molhar a palavra.
De volta venho, me sento, começando de onde tenho.

Uma hora se passou sobre a última, pouco passou, muito se transformou. O trabalho dá trabalho a uns poucos que nada dão por ele. Aceito a esmola; a cegueira provocada pelos mecanismos de corda vitais é ocupada, à socapa, por imagens fraternas, vida antiga, cenas de prisão, conversas de engate, viagens tão descabidas quanto inesperadas ou desnecessárias, um ou outro temporal que se abate passado de repente, transformando ossos para sempre; ou alguém carne de mim, ligada pelo destino em sangue. Qualquer outra coisa havia p´ra aqui escrever, o papel se perdeu, isto se arranjou, do pé para a mão menos mal.





VIII



«…em movimento estando parado o seu principio: e dado que este se mova, como dizem alguns, não he menor paradoxo…» *


Mentia ao dizer que não minto? Pois minto por nada, obrigado de nada, e ainda agora comecei.





IX



«…he descrever hum angulo, e pondo o lado para fora…» *


Chamada de fora, a chuva a cair desse lado. Ionizado céu, elemento de outro elemento, manchado por raios coriscos que se lhe despegam, vindo à Terra – o tremor dos caixilhos, o ranger dos dentes, são prova natural o suficiente.
Distracção; em frente olhar, nada ver, olhos por eles, que mal se dá a novidade, habituados que estão à claridade.
Sape-gato!





X



«…se quebrão os ossos, se fatigão as carnes, e se corta a vida?» *


O TEMPO DE ANTENA QUE SE SEGUE É DA EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DOS SEUS INTERVENIENTES…





XI



«O angulo nomea-se com tres letras, das quaes a medida he a que determina o angulo, como A B C…» *


Levo à frente tudo, e quem à minha frente se atravessa sem querer, no último minuto. Não sou pago para adiar o quer que seja.
Arrumo cadeira, aperto botão, subo escadas, viro à direita em frente pelo corredor do piso intermédio, traço esquadria à esquerda entro na terceira porta à esquerda, encho de água o cantil, mijo contra a parede, me olho no espelho, mudo posição às melenas para na mesma ficarem, abro porta, volto atrás um pouco, vou pela porta de emergência, desço escadas quase ninguém, se alguém vem nada digo os dias todos, até um dia que boa tarde a medo, compreendo, pois não tem nem eu tenho por hábito, certo é que respondo, porque não.
Chegado à praça do edifício, não passo cartão a muitos outros, passo cartão pela porta de tocar, a rua em frente borbulha de luz natural, faltando passar a porta principal. Evito, dúctil, a mancha de gente que se forma nas paredes próximas – menos o vento, fazer mais como.
Atravesso galeria e portal, finto movimento em movimento meu; depressa para as traseiras de edifício, outro, no lado contrário. Visto de fora, uma torre em cada lado à mesma altura em cada cunhal, ao centro, um centro onde se perdem pessoas.
Aí chegado do outro lado, tiro do saco a refeição e o garfo embrulhado em papel – me alimento de pé e ao ar. Não como por aí além, como para não morrer à fome, que tempo não há, a hora é medida certa e mais há para ver que olhos a ver imagens paradas, para nada olhar têm tempo mais à frente.

O telefonema à Família saber-lhes o dia a acabar; sossego, bebo café.

Vou ver os livros, que livraria existe por perto – escolho por nome não pela capa, viro página ao acaso: se é romance, leio primeira frase – todos lêem –, como tudo aí começa. Um minuto ou outro a dobrar parágrafo na alma em pano, tempo que levo a entrar num beco sem saída. Lhes levo o nome emprestado, alguma vida, o que puder ser, do que escrevem.
Se tempo ainda há para um outro…não há! Tive este e guardo.





XII



«…em sua conta por ser mayor, que a figura, que está no olho…» *


Cruzo-me com quem me não interessa, mole de pouca coisa ou nenhuma. Desvio-me de seus largos ombros, faço o mesmo caminho. Passo a zona dos elevadores a evitá-los, dobro esquina lá no fundo, viro para as escadas, subo, mijo contra a parede, desenho mão ao espelho – que eu sou eu?
Até daqui a nada.





XIII



«…que passa pelo centro, e e termina de huma, e outra parte na circunferência, dividindo…» *


Na rua. Quase nenhum dia ou toda noite. Fixas luzes amarelas, outras brancas de passagem; azul de alumiar estrada é tom recente. Fumo aos dois cigarros de cada vez, engulo o fumo das nuvens que se deixam de ver. Tudo bem com os meus. Vou acabar com isto de vez, por hoje.





XIV



«…um Corpo Esferico, á maneira de globo, ou laranja…» *


Falta aqui uma hora, se acerto na conta.
Árvores de fora, a solo (pássaros retornados à força de dizer manhã), esbracejam, impacientes, conscientes de que lhes darei toda atenção daqui nada, plantadas que estão no meu caminho. Vou, não vou, pé ante pé, sacudindo a poeira dos pensamentos, e já alguém vem morto de ângulo, e se cala tudo; caio a espaços sem fundo, não acreditando o quanto assustadiço sou.
Falta aqui uma hora, se acerto na conta.





XV



«…e o pó misturado quanto baste com sebo…» *


Venho do Mundo, nasço de lado; repito espreitar, por debaixo das saias ao dia seguindo outro, por todos os dias de viés o Mundo que se não explica.
PALAVRA freio nos dentes, um fogo a menos na paisagem de imagens pele e osso, anulação ou vida dobrada nos cantos, aparelho de magoar gengivas, de quem a morde. Pela boca entra PALAVRA, isco que se prende ao que tiver.
De propósito me desvio do seu fio esticado; vou abaixo, venho meio até casa, metade do caminho é visto em túnel. Planto árvore que fica para depois do fim dado a esta frase, ou outra coisa qualquer e única, que me toca ao de leve nas vidraças.





XVI



«Não tem medida com certeza, porque sempre he mais…» *


E só então, noite feita, quando já tudo o que havia de vir à luz do dia se apagou, levando céu risco azul, riscando o que vai ser interrompido, enxertando direcções nas costas do chão, corrigindo o erro nos cantos do papel…; e só então, quando toda a água é aspirada da laje que encerra a armadura torcida do pensamento…; só aí, como bicho apanhado à pressa a fugir dos olhos que podem ver, atirado para o fundo do saco um nada aberto, para que vida a nossa continue, sendo coração de um caminho.
Dia todo durante, jogando mão ali, percebendo vida onde há pouca, ainda assim se ouve que mastiga, que tritura incisivamente as palavras em que se embrulha, papel jornal – sendo ele bicho, quem me leva a comida à mão. Pela altura da cintura, pequeno murete de fria pedra arrumada à mão, sua cama, mesa minha, onde pousam e se destapam, letra a letra, respirando mal, à vez atacadas pela pneumonia do poema – lânguido verme, mar ao perto, ascendendo por capilaridade na parede do pensamento, transformando folha virgem que de branco vai, se não em negro rendilhado, a ser usado numa discreta saída à noite.

Rodando na rua chave de casa, presa em anel no dedo do meio, saindo para fora de mão, esperando sombra ao vento que dali não é, ponta romba a perguntar por agressão a alguém demasiado próximo; o gato de sempre preto, parando em continência ao asmático nocturno.
Primo as teclas, abertura automática; à porta do prédio abro caixa de correio, dobro papéis no bolso de trás, subo escadas com a pressa do aqui chegado.
Rodo chave no ar da fechadura, intentando ser acontecimento menor se não dão por mim que nunca sei se alguém já dorme, que horas para isso são. Me engano quase sempre no quarto do meio, vem daí movimento, sem expressão equivalente num coração como meu, que não há cama com forças para segurar tal bichinho; mãos em tecido, que a agarravam, ou pensavam, se desatando se afastando, chão sem saber ser outro que não deixar-se estar quieto para ser pisado, oferecendo, sem que o notasse alguém, o par de pantufas aos pés que lhe descem, descalços como hábito, a passos rápidos; a porta que se abre, o corredor sem comprimento depressa ultrapassado por ponto à origem – da metamorfose quem me acode?
Naquilo em que me torno, tamanho abaixo.

O abraço de todas as estações por acontecer, meteorologia modificada ao sabor do vento, ao lado, pequena boca no ouvido a largar a meus pés
 «Tive saudades tuas!»

Pequeno todo amor, polifonia desastrada, absoluto sentido da vida enquanto tempo. Pouso bagagem onde calha: cachecol luvas barrete, se lhe pego ao colo e ouço suas palavras desencontradas, apressadas em bater na parede do meu corpo, a explicar seu dia diferente, seu ponto minúsculo espaço, não se recusando em ferir de morte as estrelas, com sua voz que tudo apaga.
Deslocar ar – mudando lugar àquele corpo, sentando-o na tábua da bancada, à altura de os meus olhos seus olhos que, confortáveis, pedem, sem escrúpulos, coisas que para ela mesma já quer: como capricho, uma palhinha cor-de-rosa num mar de plástico sobretudo verde. De camisola arregaçada, submergindo mão a encontrar fundo para aquilo que ainda não acabou. Uma há que sobra, quase longe da vista vive, e salva-se assim a espécie ao dia.





XVII



«…e disto, que se levanta, começa a volta, porque assim fica…» *


Afago seu rosto, sempre fazendo coincidir mão mar chão com a palavra «amar» colada a ti – dito isto, alteras rotação ao mundo, inclinando-o para um Norte perfeito, onde assentas tua cabeça de criança. Laminamos parte ao coração de cada um, luminosa plasticina de forma feita globo; luz que se deixa acesa até haver outra. Saímos de costas, não olhamos por cima dos ombros; o erro é parede, ombreira, brinquedo desviado do lugar exacto; a porta que um de nós fechou atrás de si, e disso se esqueceu no caminho inverso.

O encontro se procura, num ponto o mais afastado dos ouvidos ainda despertos para os pés que se mexem ou podem fazê-lo, para um copo que se move da origem seu lugar, para uma torneira aberta por engano.
Entorna-se o brilho (plena impureza, retida à luz do dia, se prendendo à saudade adentro) nos olhos um do outro, guerrilheiros em causa própria, inseguros dualistas baptizados à pressa, sexo indefinido, Homem-Lua Mulher-Espaço Aberto – sistematicamente, suas mãos pronunciam primeira sílaba muda.

Rimos de tudo quanto somos, quase nunca rimamos; em distância aos outros, apontamos falha tectónica ou hipertensão descabida. Conquistamos lugar aos bichos, enxertando em nossas almas seus hábitos. Sobra, afinal, conversa séria: números e provisões – apostas em como sobreviveremos próximo mês, postas de pescada vozes ao alto, quando se sabe que, ao menos, nada faltará na despensa, assim como não faltarão folhas brancas e canetas «Médium» da Bic, para que se esgote o esforço à realidade a que tresandam nossas roupas de usar por casa, penduradas pelo corpo de andar.
Digo te amo não digo, guardo para mim até dizer-to; nunca o dizemos ao mesmo tempo, enganando o tempo simultâneo – acrescentando volume ao traço do coração.
Falamos rápido, mas não à pressa, passando assunto por nós suficiente, até à dobra do cansaço. Um se alevanta, o outro fica onde está; o que se alevanta é, sou eu, silenciando deslocação ao corpo indo, a transformar o que em ponto A começou, travestido nos acuda, leve e nu, chegando ao ponto B.
Desdobrada nos braços a pele dos Segredos, se agradece aos Anjos aos Deuses ao Mistério Infinito. A ninguém que é Tudo.

Socas de borracha, lã grossa pigmentada; conjunto calça-camisola em tom escuro. Se frio estiver, o roupão está pendurado atrás da porta – como tudo se veste? De cima para baixo como boa prática, caindo o que houver por cair, por excesso, para o chão acabando em último.
Tronco ao léu; algum tempo para pensar em outra coisa até ao mal-estar, que me traz de volta. Roupa apanhada do chão, dobrada perna sobre perna dobrá-las juntas, apertando o botão, tal facilita a geometria da mania.
Meias húmidas por fora, saem dos pés. A camisola acaba no pescoço, o rosto vai destapado.





XVIII



«Seja feita huma cruz de duas linhas…» *


Por mera teimosia ou resguardo, não acendo lume ao Mundo que é fogo-fátuo no ecrã cá de casa. Vou à janela; risco o fósforo, aproximando-o do cigarro.
Alguém que passa com o cão por um fio, um automóvel com faróis apagados e motor ao ralenti, corpos ao par despedindo-se até logo nunca mais, a porta batida com força demais (fazendo encolher a noite nos sons próprios). Mulher no prédio em frente, de relógio e hábito igual ao meu, um andar a baixo rés ao chão. O dono do estabelecimento na esquina, fechado faz pouco, ordenou despejo amigável aos de sempre e sempre a mesma conversa, parecem aqueles saber muito bem quem punham a jogar de início, para que se resolvesse de uma vez aquilo – pode pois um jogo ser do que falam?
A desenhar o quarteirão, pela estrada lá vem o carro do lixo: um dos que vem atrás salta em movimento, agarra caixote levando-o com ele. Outro vem depois e se repete. O lixo, ao desaparecer, tem som que é só dele. Passam a ir, na última rua ainda se ouvem; o ar se limpa deles, ficando o que nunca desaparece, sons de siderurgia laborando perto pela noite até próximo do dia.
Em contínuo, vomitando perfis que se arrefecem em letra de forma:
Tês, I´s, L´s – deformam til sinal.
Importa tanto este mundo como o outro – pouco.






XIX



«Os termos da superficie são as linhas extremas, com que se termina.» *






XX



Durmo.





XXI



Dormes.





XXII



Dorme.





XXIII



Dormimos.





XXIV



Cinco horas de sono.

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