À CONVERSA COM:
*
“ADVERTENCIAS AOS
MODERNOS, Que aprendem os Officios DE PEDREIRO E CARPINTEIRO” por VALERIO
MARTINS DE OLIVEIRA
1ª Edição: Off.de
Antonio da Silva / Lisboa / 1748 Presente edição fac-similada: Arquimedes
Livros / Maio de 2008
I
«Ponto, he o q não tem partes.» *
Sirene faz de conta dobra canto ao quarto, arrancando
corpo à insónia. Corpo à força, feito em nevoeiro pontual. Hora em ponto a ser
menos um quarto; às voltas a pálpebra, sensível tremor. Marca o tempo movimento
e corpo, minutos passam a se parecer uns com outros, sombra de um, passada ao
outro em mão, torcidos na haste da noite para onde foi ela. Minutos corridos,
passados, em passo louco, intermédios – quando se diz GEOMETRIA, param.
Escalímetro deformado, traços apagados na
meia-tinta da memória curta; passar a outra parte, vir de mãos abanar os largos
espaços da incompreensão.
Param. Os minutos param, parecendo os mesmos
de há pouco ainda agora, engalfinhados na ordem de chegada ao coração; o primeiro
ai de mim marcado, visível, no mostrador a hora que me tem prendido; e nisto se
perde algum tempo, avançando, arrancando prosa à raiz, quadrada forma deste
quarto, deitada ao princípio, ainda aqui vamos mais volta menos volta não há a
dar. Confirmando olhar em frente ao espelho do relógio.
Descubro quarto ao corpo; suas medidas, fora
do cobertor, se completam de pés no escuro, procurando chinelos, pois ponto de
luz não é para aqui chamado. Frio está frio menos frio, zero objectos
encontrar, apontando os pés que para isso se governam, a vista menos, a mandar
boca às mãos para que lado. Costas à cama, onde ângulos vivos em corpo ressonam
ainda, marcando medida fêmea na outra ponta; nossa cópia fiel ao meio, por
desvio, a dar ordens comuns ao sono, pela boca, música de interiores. Lépidas
almas dançam, umas contra outras se não magoam; uma a afugentar fantasma cá de
casa, a outra não se entende ainda em transparências – o que pode nela um
equívoco? Pouco ou nada, pois nela perdem a mão. Fracção de tempo; não mais há
que sobre, na direcção errada.
Dedos contam lombadas de cor igual no escuro:
ao ré da tábua cómoda, o grande livro dos segredos dos códigos, outros de
poesia, onde alguém grita pela Mãe por Deus, por qualquer ordem, dirigindo
súplicas às paredes. Nunca passarão por esta espessura de ânimo leve, e de
moda. Cada parte de um todo dividido na parte que lhe calha, se cabeça tronco ou
membros. Minha pouca mão em tudo isto encontra os óculos para vos ver melhor; baixo
lentes ao rosto, nivelo o chão à Linha de Terra, subterraneamente. Chão que é o
mesmo para todos, onde jogo mão a ver se não o perco, a alcançar casaco ali
deitado feito cão, que é Inverno. O relógio na hora combinada, me encontrando
no escuro.
Encontrar saída a isto; ir pelo corredor às
apalpadelas, saber por alto as fiadas aos azulejos presos até meio da parede a
dar-me conta do caminho sim, de aqui ali ao fundo dificilmente se nota
diferença, matizado de realidade, incomodando a escuridão. Denunciando que é
dia lá fora.
Apresenta-se porta pela esquerda, como a
quis, encostada a ontem, à noite em que fui o último a jogar-lhe a mão. Neste
ponto insistir, voltar a entrar, ser móvel como outros, atacado pela térmita
solar – ínfimas bocas, activadas pela Voz; centelha divina, acendendo sombras
na lenha seca do tecto. Copo de vidro apanhado, braço esticado, da
árvore-armário. Torneira aberta, água saindo, transferindo e acrescentando
nascente ao corpo; corpo a pensar «qual órgão me agradecerá».
Alcançar redondo o cinzeiro; encertar maço
tabaco, tirar cigarro ao acaso, levá-lo a ver o dia nascido, filho de outros
dias e mãe, afastar para o lado a janela de correr.
Avizinha-se árvore a crescer para os olhos,
quem a viu um nada há pouco ainda dormindo, som de fora ausente atrasando rua
ao olhar, atrasando outros a olhar – minha verdade de vão aberto; os pássaros
que sim, emprestando movimento ao sangue que não percebem, me correndo nas
veias. Não me ficando, acompanho um ou outro desses pássaros até à esquina,
onde rasam para desaparecer. Ao perto cão, trazendo para dentro de casa a
doença da fome, a transmitindo ao chão, ladrando à hora mordendo mão ao tempo,
do qual seu dono não é senhor. O cigarro a meio vai, queimando pensamentos uns
atrás dos outros, no que foi ainda ontem. Pássaros rasteiros, a lavrar de
entusiasmo a manhã chão às voltas, pela árvore a que sobem à vez, rendendo
brincadeira, alguma distracção e dor de cotovelo no corpo resignado do
peitoril, prolongando o acordar. As peças soltas do sol a se encontrarem, encaixando-se,
devolvendo-lhe figura, e ele a se chegar à frente para a frente dos meus olhos,
vindo lateral ao seu princípio, dar ao meu braço incómodo, encandeando minha bicharada
aí tatuada. Dou por sol a empurrar, tal criança malcomportada, «raios!», os
prédios que nos separam, pondo-se ao alto. «É o meu ganha-pão!» diz, a cuspir
sombra por sobre os pássaros, que lhe fogem a evitar contornos, tomando lugar ao
verso escuro da folha à mão em jeito.
Deixar passar último cantar, negar atenção à
transformação de aquilo em qualquer coisa. Vir para dentro, atrasar os braços
no corpo para trás das costas; manter a previsão de ontem tempo nublado, no céu
semidesértico da alma. Automaticamente pôr de lado imagens que não autorizei a
serem divulgadas, ao de mim para mim mesmo. Dispor as várias peças à minha
frente, moldadas em aço, qual arma a ser montada sem paciência, rápido que não
há tempo.
Para mais não menos, lençol de água puxado
para cima até à gola de rosca sem fim: à vista se planta pó de café, que se
escapa dos dedos. Audível murmúrio material enfim, comporta estanque; pousar
objecto ao centro da grelha, acender o queimador, disparar chama, pôr dedo no
gatilho do isqueiro, desviar corpo ao fogão, por algum tempo para ele não
olhar, cuidando que o fogo é estável. Voltar à árvore-armário, abrir janela
para os fundos, apanhar prato da pilha, pôr a tocar seu disco; sem querer,
música de vidro quando bate em outro a ele igual; baixar seu tom branco até ao
silêncio. Ir ao cesto; os olhos a chegarem primeiro, revolvendo côdea
descobrindo vida além desta, pequenos fungos plantados pelo esquecimento – não
é hoje que deito pão fora.
Mãos dormentes, assimétricas no gesto, quase
a competir pela ordem em que chegam, armadas pontas sensíveis, a ver quanta pele
com sentido é arremessada à superfície a tocar em primeiro. Uma se perde pelo
caminho, em mão à mão assim, sempre lhe sobra o tempo, ocupando-se dos despojos
da outra mão largados, pondo dentro no bolso enrugado da articulação, migalhas
da matéria que utiliza para desenhar um caminho, contra o círculo ditado.
Fatias
de coisa pouca a ser dita: simples mata-bicho, mata-borrão da gordura dos dias
a começar por levar à boca; um pedaço que acabo a mastigar primeiro que o tempo
que levo a me comover, e assim o dizer.
Metro coluna d'água, imagens afogadas no
anteontem. Cozinha inundada de luz, corredor imerso na escuridão. Por agora
levar mão e lado da parede ao seu encontro, seguir rente assim até ao fundo;
imagens turvas, sobrepostas ao mesmo que sou no espelho, que pela porta
espreita pela metade, abertura incompleta, caibo ali se para tanto experimentar
entrar – instalação sanitária – parte assoalhada, gesto que se repete toda
manhã a nascer para o mesmo, noite e dia eternos.
II
«Linha, he huma quantidade sómente
longa…» *
Venho e vou, da cozinha à sala: descubro mesa
em miniatura, cor vermelha; sobre a mesa estendo toalha que não é lisa – uns
dias são bichos, outros dizeres, peça de fruta aumentada para que lhe caiba na
sorte do quadrado. Guardanapo de papel, dobrado em triângulo, copo de plástico
até meio de água.
À espera de sinal stop audível: o leite
espera quente nas entranhas do microondas. Abre-se gaveta, o metal da colher acomoda-se
aos dedos, transporta a dobrar o que adoça, mexer bem, escolher palhinha de um cor-de-rosa
cada vez mais difícil, sendo a cor sempre pedida.
Pela geringonça de mola a torrada salta, vai
para o prato. Faca apara a côdea que levo à boca. De resto que engulo,
reforçando mata-bicho de há pouco. Equilibrando mãos e voz, ocupadas que estão
com função de levar coisas ao seu lugar, a chamar criança à Terra «senta-te à
mesa vai-vem comer», ela quase o tempo todo fingindo que me não ouve se lhe não
interessa.
Pouca coisa aborrece tamanho sorriso boneco;
vou pelo barulho dos seus passos àquele lugar onde se esconde, viro aresta lá
está, sua gargalhada salta fora seu esconderijo, denunciando posição – lhe dou
a mão.
Transfiro planta no vaso, da mesa para a
estante dos livros, libertando a diagonal traçada a partir dos seus olhos,
projectando-se no ecrã da televisão transmitindo animados bonecos, suas cores
impossíveis, seus lugares encontrados vazios em segundos - um cozinheiro com
estrondo caindo ao chão, uma fêmea de elefante dançando a valsa num fundo
branco. Sigo com o olhar o olhar dela, cada um de nós se ri de coisas
diferentes.
Está na hora, me levanto, levando-a a
levantar-se comigo, apago tudo, desço até meio o estore à janela da sala, lhe
dou a última demão de roupagem. Dou chave à porta, quantas voltas, a levantar
ferro do chão, saímos para lá na direcção nova que há por haver. Pela clarabóia
na zona comum do edifício, se aclara o cantar aos pássaros como estridência
preguiçosa. Rodo chave na ignição, e nos vamos daqui.
III
«…nas mãos, chega também aos pés; não
tirando a ponta do embigo, faz figura…» *
Quase em ponto chegamos, não sem antes
estudar pelo caminho a tabuada da horta, lavrada nos quadros fundo a branco,
arrancando fiada à terra: aqui curgete ali tomate ao lado cebola couve a acabar
– sabe-la toda pelos desenhos, dizendo o que sabe em alta voz.
Vêm outros meninos virando a esquina, dizendo
bom dia sem cerimónia; a brincadeira de crescer começa um dia a mais.
Aqui tens meu coração, põe-no junto ao teu,
mo leva (me dás o teu) logo.
IV
«…: hum de cabeça, outro de aduela.» *
A canção – se eleva pelas paredes da casa, os
tambores estremecem, se quebram arestas à sanca linear, marcando compasso ao
tecto – que vem, em (bala). Musica para trabalhos forçados, indo pela berma:
maço aos ombros de um, em outro, picareta lhe desce do semblante carregado, céu
outro continente, palmas sincopadas abrem buracos rasgos veios a braço, na
terra que nos come vivos – encardidos seres tremeluzentes. Não canto no banho,
e menos ouço, quando água escorre dos pés para o ralo; fecho torneira no final
desta canção.
Ocupo bolsos com haveres. Espreito para o
final do corredor; o saco preto do lixo, espera porta por abrir. Vou já. Desço
à rua, apanho autocarro, abro outro saco, saco livro, mudo marcador de página,
mudo de parágrafo sobre a Morte num país de outro ano. Ultima paragem, saio.
Tomo café, fumo cigarro. Lá vem comboio, procedente de Coina com destino a
Areeiro; irá comboio, quando vier, dar entrada na linha número três se não
circular com atraso, apresentando, se assim for, desculpas pelo incómodo
causado.
Na outra linha, atenção à passagem do comboio
sem paragem.
V
«…e o pescoço, e a boca comprehenderão
duas partes, e duas ao meyo…» *
Fico para último, na plataforma da estação.
Escrita a branco, está a palavra POESIA no
muro de suporte em betão armado, que segura a vala da linha, justo ao lado das
anotações a vermelho, cotas altimétricas, pelo pulso encarregado da construção
que é passado. Pássaros parados de voar andam a ocupar este céu artificial, de
um lado ao outro, caminhando de sobre perfil. Surda-muda a fingir vem pedir
moeda, se esquecendo que ontem também foi dia de nada lhe dar, além de um
sorriso.
Vou do comboio ao ar, do metro à terra,
medindo a manhã em passos.
VI
«…em hum ponto, os nomearey muitas
vezes com uma só letra para evitar prolixidade…» *
Aproximam-se em blocos, e trazem não só a voz
como corpo: planos cortados de onde a tiram – ó voz por berma de estrada, ó voz
pisca a avisar que vai encostar, ó voz que viaja no banco de trás, ó voz a
descer ao metro por cima de outra voz, ó voz pelo telefone vida distante, ó voz
arrancada pétala, ó voz pátria diferente, ó voz se me faço entender, ó voz na
mesma língua em que não se diz trégua.
De tanto teimar, vejo vultos – vaidades. Há
horas de sorte. Colada às solas, esta vontade suja de ser de outros lugares
como todos, ser outros e nada. Ser eu, entornado para a bacia funda do Mundo.
Nada se sente, por nada.
Do que me obrigam, não ouvirão mais. É conta
simples, ao final de alguns dias que iguais.
VII
«…e escreverão, para que de mão em mão
corressem todas as naçoens…» *
Minto. Minto com quantos dentes, rilhando um
lamento. E não ganho nada com isso. Ultrapasso a objecção, voz à tona, com a
negação. O que passa, se passa, é deixá-lo…ir do avesso. O hábito é inquilino
incómodo da habitação universal, de outros materiais feito tábua rasa.
Tenho sede, me acaba a água – vou à fonte
molhar a palavra.
De volta venho, me sento, começando de onde
tenho.
Uma hora se passou sobre a última, pouco
passou, muito se transformou. O trabalho dá trabalho a uns poucos que nada dão
por ele. Aceito a esmola; a cegueira provocada pelos mecanismos de corda vitais
é ocupada, à socapa, por imagens fraternas, vida antiga, cenas de prisão,
conversas de engate, viagens tão descabidas quanto inesperadas ou
desnecessárias, um ou outro temporal que se abate passado de repente, transformando
ossos para sempre; ou alguém carne de mim, ligada pelo destino em sangue.
Qualquer outra coisa havia p´ra aqui escrever, o papel se perdeu, isto se
arranjou, do pé para a mão menos mal.
VIII
«…em movimento estando parado o seu
principio: e dado que este se mova, como dizem alguns, não he menor paradoxo…» *
Mentia ao dizer que não minto? Pois minto por
nada, obrigado de nada, e ainda agora comecei.
IX
«…he descrever hum angulo, e pondo o
lado para fora…» *
Chamada de fora, a chuva a cair desse lado.
Ionizado céu, elemento de outro elemento, manchado por raios coriscos que se
lhe despegam, vindo à Terra – o tremor dos caixilhos, o ranger dos dentes, são
prova natural o suficiente.
Distracção; em frente olhar, nada ver, olhos
por eles, que mal se dá a novidade, habituados que estão à claridade.
Sape-gato!
X
«…se quebrão os ossos, se fatigão as
carnes, e se corta a vida?» *
O TEMPO DE ANTENA QUE SE SEGUE É DA EXCLUSIVA
RESPONSABILIDADE DOS SEUS INTERVENIENTES…
XI
«O angulo nomea-se com tres letras,
das quaes a medida he a que determina o angulo, como A B C…» *
Levo à frente tudo, e quem à minha frente se
atravessa sem querer, no último minuto. Não sou pago para adiar o quer que
seja.
Arrumo cadeira, aperto botão, subo escadas,
viro à direita em frente pelo corredor do piso intermédio, traço esquadria à
esquerda entro na terceira porta à esquerda, encho de água o cantil, mijo
contra a parede, me olho no espelho, mudo posição às melenas para na mesma
ficarem, abro porta, volto atrás um pouco, vou pela porta de emergência, desço
escadas quase ninguém, se alguém vem nada digo os dias todos, até um dia que
boa tarde a medo, compreendo, pois não tem nem eu tenho por hábito, certo é que
respondo, porque não.
Chegado à praça do edifício, não passo cartão
a muitos outros, passo cartão pela porta de tocar, a rua em frente borbulha de
luz natural, faltando passar a porta principal. Evito, dúctil, a mancha de
gente que se forma nas paredes próximas – menos o vento, fazer mais como.
Atravesso galeria e portal, finto movimento
em movimento meu; depressa para as traseiras de edifício, outro, no lado
contrário. Visto de fora, uma torre em cada lado à mesma altura em cada cunhal,
ao centro, um centro onde se perdem pessoas.
Aí chegado do outro lado, tiro do saco a
refeição e o garfo embrulhado em papel – me alimento de pé e ao ar. Não como
por aí além, como para não morrer à fome, que tempo não há, a hora é medida
certa e mais há para ver que olhos a ver imagens paradas, para nada olhar têm
tempo mais à frente.
O telefonema à Família saber-lhes o dia a
acabar; sossego, bebo café.
Vou ver os livros, que livraria existe por
perto – escolho por nome não pela capa, viro página ao acaso: se é romance,
leio primeira frase – todos lêem –, como tudo aí começa. Um minuto ou outro a
dobrar parágrafo na alma em pano, tempo que levo a entrar num beco sem saída.
Lhes levo o nome emprestado, alguma vida, o que puder ser, do que escrevem.
Se tempo ainda há para um outro…não há! Tive
este e guardo.
XII
«…em sua conta por ser mayor, que a
figura, que está no olho…» *
Cruzo-me com quem me não interessa, mole de
pouca coisa ou nenhuma. Desvio-me de seus largos ombros, faço o mesmo caminho.
Passo a zona dos elevadores a evitá-los, dobro esquina lá no fundo, viro para
as escadas, subo, mijo contra a parede, desenho mão ao espelho – que eu sou eu?
Até daqui a nada.
XIII
«…que passa pelo centro, e e termina
de huma, e outra parte na circunferência, dividindo…» *
Na rua. Quase nenhum dia ou toda noite. Fixas
luzes amarelas, outras brancas de passagem; azul de alumiar estrada é tom
recente. Fumo aos dois cigarros de cada vez, engulo o fumo das nuvens que se
deixam de ver. Tudo bem com os meus. Vou acabar com isto de vez, por hoje.
XIV
«…um Corpo Esferico, á maneira de
globo, ou laranja…» *
Falta aqui uma hora, se acerto na conta.
Árvores de fora, a solo (pássaros retornados à
força de dizer manhã), esbracejam, impacientes, conscientes de que lhes darei
toda atenção daqui nada, plantadas que estão no meu caminho. Vou, não vou, pé
ante pé, sacudindo a poeira dos pensamentos, e já alguém vem morto de ângulo, e
se cala tudo; caio a espaços sem fundo, não acreditando o quanto assustadiço
sou.
Falta aqui uma hora, se acerto na conta.
XV
«…e o pó misturado quanto baste com
sebo…» *
Venho do Mundo, nasço de lado; repito
espreitar, por debaixo das saias ao dia seguindo outro, por todos os dias de
viés o Mundo que se não explica.
PALAVRA freio nos dentes, um fogo a menos na
paisagem de imagens pele e osso, anulação ou vida dobrada nos cantos, aparelho
de magoar gengivas, de quem a morde. Pela boca entra PALAVRA, isco que se
prende ao que tiver.
De propósito me desvio do seu fio esticado;
vou abaixo, venho meio até casa, metade do caminho é visto em túnel. Planto
árvore que fica para depois do fim dado a esta frase, ou outra coisa qualquer e
única, que me toca ao de leve nas vidraças.
XVI
«Não tem medida com certeza, porque
sempre he mais…» *
E só então, noite feita, quando já tudo o que
havia de vir à luz do dia se apagou, levando céu risco azul, riscando o que vai
ser interrompido, enxertando direcções nas costas do chão, corrigindo o erro
nos cantos do papel…; e só então, quando toda a água é aspirada da laje que
encerra a armadura torcida do pensamento…; só aí, como bicho apanhado à pressa
a fugir dos olhos que podem ver, atirado para o fundo do saco um nada aberto,
para que vida a nossa continue, sendo coração de um caminho.
Dia todo durante, jogando mão ali, percebendo
vida onde há pouca, ainda assim se ouve que mastiga, que tritura incisivamente
as palavras em que se embrulha, papel jornal – sendo ele bicho, quem me leva a
comida à mão. Pela altura da cintura, pequeno murete de fria pedra arrumada à
mão, sua cama, mesa minha, onde pousam e se destapam, letra a letra, respirando
mal, à vez atacadas pela pneumonia do poema – lânguido verme, mar ao perto,
ascendendo por capilaridade na parede do pensamento, transformando folha virgem
que de branco vai, se não em negro rendilhado, a ser usado numa discreta saída
à noite.
Rodando na rua chave de casa, presa em anel
no dedo do meio, saindo para fora de mão, esperando sombra ao vento que dali
não é, ponta romba a perguntar por agressão a alguém demasiado próximo; o gato
de sempre preto, parando em continência ao asmático nocturno.
Primo as teclas, abertura automática; à porta
do prédio abro caixa de correio, dobro papéis no bolso de trás, subo escadas
com a pressa do aqui chegado.
Rodo chave no ar da fechadura, intentando ser
acontecimento menor se não dão por mim que nunca sei se alguém já dorme, que
horas para isso são. Me engano quase sempre no quarto do meio, vem daí
movimento, sem expressão equivalente num coração como meu, que não há cama com
forças para segurar tal bichinho; mãos em tecido, que a agarravam, ou pensavam,
se desatando se afastando, chão sem saber ser outro que não deixar-se estar
quieto para ser pisado, oferecendo, sem que o notasse alguém, o par de pantufas
aos pés que lhe descem, descalços como hábito, a passos rápidos; a porta que se
abre, o corredor sem comprimento depressa ultrapassado por ponto à origem – da
metamorfose quem me acode?
Naquilo em que me torno, tamanho abaixo.
O abraço de todas as estações por acontecer,
meteorologia modificada ao sabor do vento, ao lado, pequena boca no ouvido a
largar a meus pés
«Tive
saudades tuas!»
Pequeno todo amor, polifonia desastrada,
absoluto sentido da vida enquanto tempo. Pouso bagagem onde calha: cachecol
luvas barrete, se lhe pego ao colo e ouço suas palavras desencontradas,
apressadas em bater na parede do meu corpo, a explicar seu dia diferente, seu
ponto minúsculo espaço, não se recusando em ferir de morte as estrelas, com sua
voz que tudo apaga.
Deslocar ar – mudando lugar àquele corpo,
sentando-o na tábua da bancada, à altura de os meus olhos seus olhos que,
confortáveis, pedem, sem escrúpulos, coisas que para ela mesma já quer: como
capricho, uma palhinha cor-de-rosa num mar de plástico sobretudo verde. De
camisola arregaçada, submergindo mão a encontrar fundo para aquilo que ainda
não acabou. Uma há que sobra, quase longe da vista vive, e salva-se assim a
espécie ao dia.
XVII
«…e disto, que se levanta, começa a
volta, porque assim fica…» *
Afago seu rosto, sempre fazendo coincidir mão
mar chão com a palavra «amar» colada a ti – dito isto, alteras rotação ao
mundo, inclinando-o para um Norte perfeito, onde assentas tua cabeça de
criança. Laminamos parte ao coração de cada um, luminosa plasticina de forma
feita globo; luz que se deixa acesa até haver outra. Saímos de costas, não
olhamos por cima dos ombros; o erro é parede, ombreira, brinquedo desviado do
lugar exacto; a porta que um de nós fechou atrás de si, e disso se esqueceu no
caminho inverso.
O encontro se procura, num ponto o mais
afastado dos ouvidos ainda despertos para os pés que se mexem ou podem fazê-lo,
para um copo que se move da origem seu lugar, para uma torneira aberta por
engano.
Entorna-se o brilho (plena impureza, retida à
luz do dia, se prendendo à saudade adentro) nos olhos um do outro,
guerrilheiros em causa própria, inseguros dualistas baptizados à pressa, sexo
indefinido, Homem-Lua Mulher-Espaço Aberto – sistematicamente, suas mãos
pronunciam primeira sílaba muda.
Rimos de tudo quanto somos, quase nunca
rimamos; em distância aos outros, apontamos falha tectónica ou hipertensão
descabida. Conquistamos lugar aos bichos, enxertando em nossas almas seus
hábitos. Sobra, afinal, conversa séria: números e provisões – apostas em como
sobreviveremos próximo mês, postas de pescada vozes ao alto, quando se sabe
que, ao menos, nada faltará na despensa, assim como não faltarão folhas brancas
e canetas «Médium» da Bic, para que se esgote o esforço à realidade a que
tresandam nossas roupas de usar por casa, penduradas pelo corpo de andar.
Digo te amo não digo, guardo para mim até
dizer-to; nunca o dizemos ao mesmo tempo, enganando o tempo simultâneo –
acrescentando volume ao traço do coração.
Falamos rápido, mas não à pressa, passando
assunto por nós suficiente, até à dobra do cansaço. Um se alevanta, o outro
fica onde está; o que se alevanta é, sou eu, silenciando deslocação ao corpo
indo, a transformar o que em ponto A começou, travestido nos acuda, leve e nu, chegando
ao ponto B.
Desdobrada nos braços a pele dos Segredos, se
agradece aos Anjos aos Deuses ao Mistério Infinito. A ninguém que é Tudo.
Socas de borracha, lã grossa pigmentada;
conjunto calça-camisola em tom escuro. Se frio estiver, o roupão está pendurado
atrás da porta – como tudo se veste? De cima para baixo como boa prática,
caindo o que houver por cair, por excesso, para o chão acabando em último.
Tronco ao léu; algum tempo para pensar em
outra coisa até ao mal-estar, que me traz de volta. Roupa apanhada do chão,
dobrada perna sobre perna dobrá-las juntas, apertando o botão, tal facilita a
geometria da mania.
Meias húmidas por fora, saem dos pés. A
camisola acaba no pescoço, o rosto vai destapado.
XVIII
«Seja feita huma cruz de duas linhas…»
*
Por mera teimosia ou resguardo, não acendo
lume ao Mundo que é fogo-fátuo no ecrã cá de casa. Vou à janela; risco o
fósforo, aproximando-o do cigarro.
Alguém que passa com o cão por um fio, um
automóvel com faróis apagados e motor ao ralenti, corpos ao par despedindo-se
até logo nunca mais, a porta batida com força demais (fazendo encolher a noite
nos sons próprios). Mulher no prédio em frente, de relógio e hábito igual ao
meu, um andar a baixo rés ao chão. O dono do estabelecimento na esquina,
fechado faz pouco, ordenou despejo amigável aos de sempre e sempre a mesma conversa,
parecem aqueles saber muito bem quem punham a jogar de início, para que se
resolvesse de uma vez aquilo – pode pois um jogo ser do que falam?
A desenhar o quarteirão, pela estrada lá vem
o carro do lixo: um dos que vem atrás salta em movimento, agarra caixote
levando-o com ele. Outro vem depois e se repete. O lixo, ao desaparecer, tem
som que é só dele. Passam a ir, na última rua ainda se ouvem; o ar se limpa
deles, ficando o que nunca desaparece, sons de siderurgia laborando perto pela
noite até próximo do dia.
Em contínuo, vomitando perfis que se
arrefecem em letra de forma:
Tês, I´s, L´s – deformam til sinal.
Importa tanto este mundo como o outro –
pouco.
XIX
«Os termos da superficie são as linhas
extremas, com que se termina.» *
XX
Durmo.
XXI
Dormes.
XXII
Dorme.
XXIII
Dormimos.
XXIV
Cinco
horas de sono.
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