Vinte e um dias já passado, de um ano a começar em Lisboa. Ir à zona do Saldanha, vindo de Entrecampos. Ver a praça transformada por máquinas que se foram já, com olhos que não caem faz tempo aqui. Me ponho à frente da paragem do autocarro setecentos e vinte e sete. Leio o aviso.
Lembro
já não haver aqui quem faça adeus da berma, aos que passam. Vou daqui, sem a
mão daquele que a levantou vezes tantas as que não sabia, admirando os rostos,
os fazendo virar para fora da estrada.
Leio
o aviso. Mudam-se as vontades. A estaca cravada no zero do caminho, teve de ser
levantada à pressa do plano alterado à última – é o que dá começar textos sobre
lugares pensados conhecidos, enfermos da mudança súbita pelas vinte e quatro
horas exactas desde ontem: suprimiram esta paragem, devido às obras na
metrópole. E foi só o tempo de ir por aqui abaixo à do Marquês de Pombal, e virar
na rua Braamcamp. E apanhar este autocarro. Coloco este ponto, levanto os olhos
e vamos devagar mas já depois do Largo do Rato. Uma pintura de setas a mudar
marés, fazendo as vezes de uma cabeça levantada pelas mãos do seu par. De olhos
encerrados atrás de um tom. Em azuis pretos e brancos, na empena de um edifício
à vista. Vai a Assembleia da República à minha direita, o sol de frente. O restaurante
“Pátio das Cantigas”, ficou para trás à esquerda. Paro no semáforo vermelho.
Paramos todos.
Andaimes
montam a atenção dada às alturas da cidade. Passamos à porta cento e quarenta e
quatro, e vamos para Santos. Um casal chegado um ao outro, a não dar espaço
para o frio da rua se aconchegar. E foda-se lá ao raio da rua toda ela, em paralelepípedos
aos estremeções, me negando chão ao aparo. O sol, bate ainda nas janelas cegas
dos últimos andares.
Interrompem-me
o pensar e as distracções, telefonando-me. Estão à minha espera, já lá vou.
Começo
a me sentir desconfortável com o muito calor no interior deste autocarro, não
me caindo bem nas roupas de muito Inverno que trago comigo. Só um momento, que
vou tirar o casaco. Volto, e venho a suar de impaciência, esta via projectada à
rua dos Movimentos Forçados. Que até o cabrão do besouro dizendo porta vai, me
abre o caralho dos nervos. «Ufa» diz alguém, com a razão dela, que leva, a
custo, um carrinho de bebé em carrego de braços para o meio da rua. Acelera,
trava. Um sinal fosforescente, aponta o acesso a peões por entre os buracos
deixados para o fim da semana, aqui em Alcântara.
Falam
pessoas que não ouço, pelas paragens. TIC TUC TIC TUC TIC TUC, o sinal sonoro
das mudanças de direcção. Corta-se a Avenida de Ceuta. O sol só tem já olhos
para a ponte para a Outra Margem; lá ao fundo diz-se horizonte. Um olho maior
que o meu desenha-se desconfiado a atravessar a rua, cheio de perguntas até
chegar a mim. Linhas do eléctrico. Debaixo da ponte. Estremeções. Espaço cliente.
Um homem de casaco vermelho e mãos nos bolsos, na berma do passeio. Pára. Abre a
porta. O motorista, deixa algum espaço e tempo para a senhora de muletas que
acaba de entrar e mais precisa. Vai o sol nos lugares da frente. A moça trajada
de negro, levando uma refeição pronta nas mãos, toca para sair. Sai, em frente
ao Hospital de Egas Moniz. Cabine. Cristo, suspenso da verga de um vão a
comunicar com uma vila operária. Semáforo intermitente, a seta manda seguir. Fachadas
reflectidas nos vidros do outro lado a si projectadas, passando a ser também de
aí. Outra senhora, com mais anos, vem de muletas. Filas intermináveis, ocupam
toda a frente da entrada pelos estrangeiros nos Pastéis de Belém. «Já comi
melhor, é mais a fama», oblitera algum deste papel o motorista. Chego perto do
lugar onde me esperam. Interrompo, até ver. Senão é ponto mesmo, e pára aqui.
Vou
de volta, quando a noite é já outro habitante qualquer da cidade. Na paragem
junto ao cemitério da Ajuda, primeiro só eu e os mortos nas minhas costas,
atrás do muro. Faltam cinco minutos, para aparecer o autocarro. Visto um par de
calças em bombazine grená, justas à perna, uma camisola de gola alta em lã
preta, um casaco impermeável, comprido, preto, com o capuz a cobrir a cabeça; calço
os quarenta e dois de uns ténis azuis. As mãos, as levo tapadas com luvas em
pele preta. Assoma alguém na esquina além. Senhor de meia-idade, vestido de
clássico impecável, chapéu de feltro verde na cabeça, chega-se a onde estou. Nada
diz. A rua vai indo vazia, a esta hora. Só carros passam. Retira os óculos do
bolso interior do casaco, metendo a mão ao meio do peito para dentro. Poupo-lhe
a ida ao mapa do horário, e digo «há um, daqui a cinco minutos»; e ele,
retirando os óculos do rosto, devolve educadamente «era isso que eu estava a
ver».
No
Mosteiro dos Jerónimos, o autocarro se enche de países diferentes. Por inteiro,
há um contraste gritante entre o quase silêncio que vestem e a quantidade de
bocas que se alimentam de imobilidade, mesmo entre grupos de conhecidos. STOP
STOP STOP. Passa uma ambulância, com apenas luzes brancas azuis ligadas, sua
sirene calada. Algum tempo vou só de olhar pelo vidro, e nada, nada, nada. O aparo
fica sem ter chão outra vez para andar, porque nada há a dizer. Ruas disso. E ruas.
E então, uma luz verde dizendo onde ao lugar da farmácia. Uma loja chamada de “Capricho”.
Alcântara na volta, e a Sociedade Filarmónica Alunos Esperança. Parados no meio
do cruzamento, buzinas se encarniçam: não é nada em menos de nada. Besouro. Portas
abrem, fecham. A frente do caminho dizendo presente. Olhos duros, ensonados,
lacrimosos, afastados, sem direcção. O autocarro pára onde nunca se espera; o
motorista olha pelo retrovisor, nada dizendo. Um nada é suficiente, e já vamos.
Infante Santo. Quase Santos, outra vez. Luz amarela, batendo nas fachadas
mortas pelo tempo. Tocam à campainha. STOP STOP STOP. A moça abre mais os
olhos, quando fala com o que vai à sua frente; quando cala, a rua só vista é
sua única distracção e fuga. Calçada Ribeiro Santos, militante antifascista. Nas
Escadinhas da Praia, o Kremlin. Avenida 24 de Julho. Mais à frente, um cartaz
anunciando um filme onde vinga a palavra SILÊNCIO. Arranjos de costura. E luzes
de um Natal que já foi, esquecidas a apagar acender, na montra de uma loja. Cachos
de bananas, suspensos à porta de um Lugar. Largo do Rato. Esperanças &
Silva, Lda. Apanham táxis. Vão de mãos dadas. Quase chego perto, ao fim da
linha. É ponto à vez.
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