Não
sei já que fazer do tempo quando sobeja, macerado que estou das horas me
batendo de seguida, por outros dias sem pausa. Aqui chegado, a um dia de
distância, sossego pouco. Meu amor, que faço disto? Mesa para dois, vemo-nos
por aí. Não contando com o que passa, devagar. Atrasas o olhar, chego a tempo
para te ver. O mundo mudou, e tu não mudas. Estou seguro disso. Não sei já que
fazer do tempo, se o tenho meu. A ti, te dou eu que fazer. Levo pouco na
cadeira, levanto e vou à porta, assistindo ao fim da borrasca, por entre as
muralhas de mais um dia. Cinzento. Sei. Pedem-se cores. Faz-me o obséquio. Uma que
seja outra. O sol que ninguém esperava no cais do horizonte, furando pela
multidão de nuvens, conta? Inseguro do tom certo a vos dar, vou à rua. Piso calçada
molhada. Levo o olhar aos canteiros, e encontro flores fechadas. Não sei dar
nome às flores, nunca soube. Ganham cor, sim. Cor-de-rosa, amarelos, uma só
vermelha. Os nomes dessas, que afloram num texto, o fazendo crescer, não os
aprendi. Pássaros indiferentes, simultâneos, insistem na canção distraída, me
convencendo que, depois deles, nada é assim tão importante. Sabendo um desses
nomes, quando voltarmos a falar, planto-o aqui. Das árvores, uma. Aquele cipreste
ali atrás, lembras, foi ainda agora, o apontaste a dedo, nos embebedando e às
nossas almas depositadas junto das suas raízes. Aqui tão perto, que a distância
se é nossa, não dói. O silêncio leva a melhor, pedra cortada à medida de um
corpo passageiro já passado. Da porta que dá para a rua, é o que se vê? Ainda penso
em dar uma curva, ver o mar que está ali, mas não estou para isso e para quase
tudo. Venho para dentro, cansado de estar de pé. Aplaudo a quem ouvir, os
motivos dados em mão. Para o que fica por dizer, dispenso os restos deste dia. Sento
à mesa. Meu amor lê “O Livro Negro da Condição das Mulheres”. Sei, porque a
interrompo, lhe virando as páginas já lidas até à capa onde isso está escrito. Repito
em voz alta o título; ela me olha, me confirma a viva voz “O Livro Negro…”.
O
tecto vai forrado a madeira cortada em tábuas. O céu, se imagina, vai por cima
até ver. Junto ao minúsculo vão, por onde entra um quadradinho de paisagem, se
implanta um pedestal de outra madeira; na base, não um busto mas um objecto de
barro a fazer de vaso, circundando suas paredes uma flor morta. Paredes arranhadas
por mão de criança; sua vista do que é o Natal de qualquer um dos anos, já
passou, pronto: três círculos e um chapéu fazem um Boneco de Neve; um triângulo
e um quadrado, uma árvore enfeitada por outras linhas. Aos seus pés, deixaram o
presente.
Sobe-se
às paredes. Espera. Ainda antes, como que segurado pela roupa nas costas, me distraio
com uma língua distante detonando perto dos ouvidos. E um pássaro ao mesmo
tempo. Pelo meio, se diz obrigado. E há tudo isto. Barulhos de pessoas ocupando
o espaço, arrastando a mobília dos corpos procurando lugar onde cair, ainda que
a noite venha longe. Falam pelas costuras, ocupam o centro da sala. Meu amor
lê, continua lá, quase chega ao fim de outra página. Que se despachem as
visitas, tenho mais que fazer. Atirado às paredes, sim. Azulejo pensado para
ser janela; horizontes pintados com demasiadas cores, uma só vermelha. E céu
azul, como sempre. Tanto dá que sejam castelos esquecidos no cimo do monte ou um
corredor de arcos perfeitos a dar para um ponto de fuga. Ou um ponto de cruz. E
fortalezas, construídas com blocos de pedra maiores que os barcos de pesca
pousados a seu lado, no areal. À parte, uma tela de barro em alto-relevo,
ocupada pelo todo, de um bando de homens amanhando suas redes. As visitas vão,
indo. Me deixam uma boa gorjeta de silêncio.
Vamos
ao chão. Tijoleira disposta em espinha, um pouco mais de vermelho.
Sair
para fora, levar a direcção do caminho. Bater a terra molhada. A folha branca a
ser alcançada pela água que sobra às nuvens, pequenas gotas; a caneta
contornando os poços formados, borrando a linha quando não dá para fugir a
isto. Meu amor se afasta, e lá do fundo me chama à atenção. Que venha para
junto dela, e largue o que faço. Lhe faço a vontade, viro costas ao texto. Lá
em baixo, junto ao mar, o que me fica da povoação, é o esqueleto de uma construção
abandonada cimentando o adeus.
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