quarta-feira, 22 de março de 2017

ARQUITECTURA DE INTERIORES







Não sei já que fazer do tempo quando sobeja, macerado que estou das horas me batendo de seguida, por outros dias sem pausa. Aqui chegado, a um dia de distância, sossego pouco. Meu amor, que faço disto? Mesa para dois, vemo-nos por aí. Não contando com o que passa, devagar. Atrasas o olhar, chego a tempo para te ver. O mundo mudou, e tu não mudas. Estou seguro disso. Não sei já que fazer do tempo, se o tenho meu. A ti, te dou eu que fazer. Levo pouco na cadeira, levanto e vou à porta, assistindo ao fim da borrasca, por entre as muralhas de mais um dia. Cinzento. Sei. Pedem-se cores. Faz-me o obséquio. Uma que seja outra. O sol que ninguém esperava no cais do horizonte, furando pela multidão de nuvens, conta? Inseguro do tom certo a vos dar, vou à rua. Piso calçada molhada. Levo o olhar aos canteiros, e encontro flores fechadas. Não sei dar nome às flores, nunca soube. Ganham cor, sim. Cor-de-rosa, amarelos, uma só vermelha. Os nomes dessas, que afloram num texto, o fazendo crescer, não os aprendi. Pássaros indiferentes, simultâneos, insistem na canção distraída, me convencendo que, depois deles, nada é assim tão importante. Sabendo um desses nomes, quando voltarmos a falar, planto-o aqui. Das árvores, uma. Aquele cipreste ali atrás, lembras, foi ainda agora, o apontaste a dedo, nos embebedando e às nossas almas depositadas junto das suas raízes. Aqui tão perto, que a distância se é nossa, não dói. O silêncio leva a melhor, pedra cortada à medida de um corpo passageiro já passado. Da porta que dá para a rua, é o que se vê? Ainda penso em dar uma curva, ver o mar que está ali, mas não estou para isso e para quase tudo. Venho para dentro, cansado de estar de pé. Aplaudo a quem ouvir, os motivos dados em mão. Para o que fica por dizer, dispenso os restos deste dia. Sento à mesa. Meu amor lê “O Livro Negro da Condição das Mulheres”. Sei, porque a interrompo, lhe virando as páginas já lidas até à capa onde isso está escrito. Repito em voz alta o título; ela me olha, me confirma a viva voz “O Livro Negro…”.

O tecto vai forrado a madeira cortada em tábuas. O céu, se imagina, vai por cima até ver. Junto ao minúsculo vão, por onde entra um quadradinho de paisagem, se implanta um pedestal de outra madeira; na base, não um busto mas um objecto de barro a fazer de vaso, circundando suas paredes uma flor morta. Paredes arranhadas por mão de criança; sua vista do que é o Natal de qualquer um dos anos, já passou, pronto: três círculos e um chapéu fazem um Boneco de Neve; um triângulo e um quadrado, uma árvore enfeitada por outras linhas. Aos seus pés, deixaram o presente.

Sobe-se às paredes. Espera. Ainda antes, como que segurado pela roupa nas costas, me distraio com uma língua distante detonando perto dos ouvidos. E um pássaro ao mesmo tempo. Pelo meio, se diz obrigado. E há tudo isto. Barulhos de pessoas ocupando o espaço, arrastando a mobília dos corpos procurando lugar onde cair, ainda que a noite venha longe. Falam pelas costuras, ocupam o centro da sala. Meu amor lê, continua lá, quase chega ao fim de outra página. Que se despachem as visitas, tenho mais que fazer. Atirado às paredes, sim. Azulejo pensado para ser janela; horizontes pintados com demasiadas cores, uma só vermelha. E céu azul, como sempre. Tanto dá que sejam castelos esquecidos no cimo do monte ou um corredor de arcos perfeitos a dar para um ponto de fuga. Ou um ponto de cruz. E fortalezas, construídas com blocos de pedra maiores que os barcos de pesca pousados a seu lado, no areal. À parte, uma tela de barro em alto-relevo, ocupada pelo todo, de um bando de homens amanhando suas redes. As visitas vão, indo. Me deixam uma boa gorjeta de silêncio.

Vamos ao chão. Tijoleira disposta em espinha, um pouco mais de vermelho.


Sair para fora, levar a direcção do caminho. Bater a terra molhada. A folha branca a ser alcançada pela água que sobra às nuvens, pequenas gotas; a caneta contornando os poços formados, borrando a linha quando não dá para fugir a isto. Meu amor se afasta, e lá do fundo me chama à atenção. Que venha para junto dela, e largue o que faço. Lhe faço a vontade, viro costas ao texto. Lá em baixo, junto ao mar, o que me fica da povoação, é o esqueleto de uma construção abandonada cimentando o adeus.

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