Enfermo,
o corpo pede vários desejos para o mesmo fim; agarra-se a curas bêbados do iodo
das memórias queimando de verdade quando a isto chegam. As primeiras imagens de
si; imagens enformadas em diapositivos mascarados de uma sépia usada como
sobretudo em todo o antigamente. Esconde-se a criança em manilhas de cimento,
diâmetro enorme à medida de um corpo encurvado; a noite possível engarrafada
ali, esconderijo dos covardes, fugidos do sol e das gargalhadas mortais das
outras crianças, raiadas de mal por ser. O chão de cimento, coberto por uma
lâmina de areia escura húmida de urina. Um cheiro forte a lugar deslocado. À meia-idade,
o homem se desliga mais vezes para o costume de fazer bonecos dele, bonecos de
teste às colisões, a se perderem em situações heróicas no eixo da rua. Cães
violentos, convencidos a sentar em frente em acto reflexo, mal após seu dono
ninguém ter sido morto à força de paulada ou afago quente de lâmina. Por
alguém. Cães escorrendo a baba da incompreensão, pelas presas limpas,
esculpindo espectros grosseiros no ar caindo ao chão. Imagens disparadas por
mão trémula, impostas sempre, a partir de um lugar à janela, a ver outras
coisas que desaparecem para os olhos, transformando-se isto mesmo em tela
própria à projecção daquilo. Rolas materializadas em corpo seguro, no último instante
antes do ramo da árvore – as intérpretes escolhidas, para dobrar a fala ao
vento. A fachada dos prédios em volta, de castigo, pintadas de fresco, todos os
dias, com a mesma cor de sol preso. A máquina que distribui a projecção do pigmento,
liga desliga liga desliga; mesmo interrompido, este barulho de quando se mexe,
é a morte do artista. Pega fogo à peça. A obra é estranha a quem atravessa,
pela primeira vez, a chapa da vedação. O olhar, treinado para os cantos,
ligações, entregas e às fixações de todos os tipos, depressa mede o que vai
daqui nada ali, e tenta compreender o que ainda não tem conta. O traço tracejado,
noite e dia, madrugadas em Claro-Escuro. O que são? Senão uma rua em arco; os
últimos fregueses hesitando em sair para fora do estabelecimento da cidade,
entram outros. Um sistema Gota-a-Gota, vertido por sobre a terra nua; o sangue
dos veículos, circulando por dentro ao olhar. O que são? Senão pedras dispostas
em meias circunferências; lioz esmilhado à força de mal olhar; ranhuras
impostas a um rosto, numa das suas faces à vista, projectando a mão que assim quis,
por ali encaminhar a estação das chuvas que não vemos já a cair. Outro dia será
o sol a nos cair nos braços, vamos nós para ali ao fundo, tão sossegados que dá
cá um medo – a dizer amor por dá cá aquela palha. Não será outra coisa senão a
minha pontualidade em avançar por sobre os pássaros, lhes passando à frente,
lhes marcando o lugar, se acaso algum adormece antes de me vir parar às mãos. Passo
a quem me lê o volante e lugar ao mesmo, deste veículo parado numa rua a
descer: farto de conduzir, descanso no lugar do morto, olhando pelo retrovisor
no lado do passeio, a solidão da hora marcada nos pulsos a nu. A rua vai,
iluminada pela luz de ninguém e outras ruas. Luzes intermitentes na vez dos
olhos. Anjos férreos, derramados no molde dos tempos mortos, espreitando pela
esquina da pedra sua prisão – asas capturadas num gesto de quase levantar,
ainda se não sabendo o vento para que lugar vai a ir. O silvo das várias gruas
erguidas no chão da cidade, acordando para as correntes. Ignições de bolso,
várias edições da mesma e única explosão. Gente parecendo levar direcção certa,
vindo se sabe lá de onde vá se lá a saber, passando por baixo da língua, se
derretendo devagar para uma cor branca, fluída, vivificante; passando a ser
folhas presas à maternidade da árvore de todas as árvores. Alguém passando;
fazendo rodar com estrondo, as rodas da sua mala de viagem, gastando caminho à
calçada. O suave Martírio, de nascer uma e outra vez para o que se conhece dos dias
por inteiro. Não. Não me peçam que vá buscar este aquele sujeito ou verbo em
tempo certo – da teoria da língua nada sei; coloco a armadura das palavras
sobre o que piso, distribuindo-as na direcção que menos dano me parece irão
causar. Não tendo mais para aqui amarrar, e antes que me despeça, me parece talvez
ser isto a proximidade possível ao desenho incrível daquela criança que, por
nada saber ainda acerca das regras de força de um traço ou perspectiva exacta,
cria à mão um mundo levantado livre.
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