terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

NA LÍNGUA DOS OUTROS, DEITO AS LETRAS AO ESCREVER










Enfermo, o corpo pede vários desejos para o mesmo fim; agarra-se a curas bêbados do iodo das memórias queimando de verdade quando a isto chegam. As primeiras imagens de si; imagens enformadas em diapositivos mascarados de uma sépia usada como sobretudo em todo o antigamente. Esconde-se a criança em manilhas de cimento, diâmetro enorme à medida de um corpo encurvado; a noite possível engarrafada ali, esconderijo dos covardes, fugidos do sol e das gargalhadas mortais das outras crianças, raiadas de mal por ser. O chão de cimento, coberto por uma lâmina de areia escura húmida de urina. Um cheiro forte a lugar deslocado. À meia-idade, o homem se desliga mais vezes para o costume de fazer bonecos dele, bonecos de teste às colisões, a se perderem em situações heróicas no eixo da rua. Cães violentos, convencidos a sentar em frente em acto reflexo, mal após seu dono ninguém ter sido morto à força de paulada ou afago quente de lâmina. Por alguém. Cães escorrendo a baba da incompreensão, pelas presas limpas, esculpindo espectros grosseiros no ar caindo ao chão. Imagens disparadas por mão trémula, impostas sempre, a partir de um lugar à janela, a ver outras coisas que desaparecem para os olhos, transformando-se isto mesmo em tela própria à projecção daquilo. Rolas materializadas em corpo seguro, no último instante antes do ramo da árvore – as intérpretes escolhidas, para dobrar a fala ao vento. A fachada dos prédios em volta, de castigo, pintadas de fresco, todos os dias, com a mesma cor de sol preso. A máquina que distribui a projecção do pigmento, liga desliga liga desliga; mesmo interrompido, este barulho de quando se mexe, é a morte do artista. Pega fogo à peça. A obra é estranha a quem atravessa, pela primeira vez, a chapa da vedação. O olhar, treinado para os cantos, ligações, entregas e às fixações de todos os tipos, depressa mede o que vai daqui nada ali, e tenta compreender o que ainda não tem conta. O traço tracejado, noite e dia, madrugadas em Claro-Escuro. O que são? Senão uma rua em arco; os últimos fregueses hesitando em sair para fora do estabelecimento da cidade, entram outros. Um sistema Gota-a-Gota, vertido por sobre a terra nua; o sangue dos veículos, circulando por dentro ao olhar. O que são? Senão pedras dispostas em meias circunferências; lioz esmilhado à força de mal olhar; ranhuras impostas a um rosto, numa das suas faces à vista, projectando a mão que assim quis, por ali encaminhar a estação das chuvas que não vemos já a cair. Outro dia será o sol a nos cair nos braços, vamos nós para ali ao fundo, tão sossegados que dá cá um medo – a dizer amor por dá cá aquela palha. Não será outra coisa senão a minha pontualidade em avançar por sobre os pássaros, lhes passando à frente, lhes marcando o lugar, se acaso algum adormece antes de me vir parar às mãos. Passo a quem me lê o volante e lugar ao mesmo, deste veículo parado numa rua a descer: farto de conduzir, descanso no lugar do morto, olhando pelo retrovisor no lado do passeio, a solidão da hora marcada nos pulsos a nu. A rua vai, iluminada pela luz de ninguém e outras ruas. Luzes intermitentes na vez dos olhos. Anjos férreos, derramados no molde dos tempos mortos, espreitando pela esquina da pedra sua prisão – asas capturadas num gesto de quase levantar, ainda se não sabendo o vento para que lugar vai a ir. O silvo das várias gruas erguidas no chão da cidade, acordando para as correntes. Ignições de bolso, várias edições da mesma e única explosão. Gente parecendo levar direcção certa, vindo se sabe lá de onde vá se lá a saber, passando por baixo da língua, se derretendo devagar para uma cor branca, fluída, vivificante; passando a ser folhas presas à maternidade da árvore de todas as árvores. Alguém passando; fazendo rodar com estrondo, as rodas da sua mala de viagem, gastando caminho à calçada. O suave Martírio, de nascer uma e outra vez para o que se conhece dos dias por inteiro. Não. Não me peçam que vá buscar este aquele sujeito ou verbo em tempo certo – da teoria da língua nada sei; coloco a armadura das palavras sobre o que piso, distribuindo-as na direcção que menos dano me parece irão causar. Não tendo mais para aqui amarrar, e antes que me despeça, me parece talvez ser isto a proximidade possível ao desenho incrível daquela criança que, por nada saber ainda acerca das regras de força de um traço ou perspectiva exacta, cria à mão um mundo levantado livre.

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