sábado, 22 de abril de 2017

A POUCO E PONTO, IGNORANDO LUGAR QUE É DELE.








Homem junta as pedras num monte, carrega a pá, vai e desaparece no interior do andaime ali construído. A quem de direito: com a janela fechada, isto se tornou compartimento estanque. Só coração bate, e se ouve pouco. Mais adentro ainda, que tão só este interior.

Alguém leva chaves à porta, no mesmo andar deste edifício. Se ouve. O sol não vem directo, estará já para trás das costas, por trás destas paredes, lá para os lados da rua.

Homem voltou, e há outro numa tábua de andaime andar acima. Varreu o que tinha a varrer de chão vermelho, e foi à vida. Desapareceu, não dizendo água vai. Ou foi assim. Não. Apareceu como novo, trouxe a pá uma vassoura, varreu mesmo lugar só por varrer, que nada havia já para limpar. E foi. É deixá-lo, fixamente. Agora é hora deste vai, vem.

O sol. Sim. Continua a não estar à vista, mas entre, entre. Faça favor. Com licença. Já que vem, desenho duas tiras de si, largas, ao alto na tábua recolhida da portada. E travessa. No chão, se iniciam duas linhas, seguem-se outras, as que estão ao alto. No vidro, lentamente, apareço eu como eu só, como sugestão já de um corpo, troço fictício, à altura da folha branca, visível; a mão que a segura, e à caneta, indo vindo sobre aquela.

Me viro. Em frente, uma parede de alto a baixo revestida de pedra branca, apontada por veios negros assim-assim. Sou mais corpo aí, mancha escura a fazer do corpo um só, entrando um nada em pormenores. Na primeira pedra, cabeça e ombros, os braços começando a descer; se entendendo a figura tremendo, começar ali. Na segunda pedra, a linha do tronco não continua as linhas vindas de cima, antes encurtando o corpo um palmo de cada lado. A terceira pedra, chega abaixo e vem tudo como deve devir, pé no chão, pernas à volta da cintura.

Plástico negro, encardido de pó branco das tintas de tudo quanto é suporte, excepto o chão. Tecto e paredes, rodapés. Aquilo, mais isto. Tomadas escancaradas, fios condutores à vista descarnando atenção. Uma porta de armário, aberta. Branca. Uma porta de correr, recolhida no seu buraco. Odor forte a esgoto desferrado, falta água a ir por aqui abaixo.

Meus passos são toda a orquestra que renego; dispenso toda a gente, ainda que trajem negro integral, os convido a tomarem aos poucos a forma ausente dos corpos no seu lugar, indo tocando a outro lado seus instrumentos de ritmos soprados. Aqueles, e quem acaba por sair pela mesma porta por onde entrou a chave de momento anterior. Outra família de músicos a me dar corda. Vão pela escada, como podem não ir, fazendo tanto barulho, misturando refeição acabada de tomar e palavras deles a se entender. Não. Não estou para isto. Não se faz. Pois deixaram alguém para trás, parecendo perdido por entre as assoalhadas do outro lado desta parede em que jogo mão. Parou de andar, ainda agora. Escutará o mesmo nada?

Faço mais barulho, e só dei um passo. Vou à janela que dá para outra rua. Terceiro andar. Lá em baixo, zero. Calçada, betuminoso, carris do eléctrico.

Homem de etnia diferente, para trás para frente na largura de uma porta de abrir em duas folhas. Conversa e fala, para alguém. Está nisto um pouco, pára a seguir à frente de outra porta. Olha a rua uns segundos, pega no balde e esfregona atrás dele, desaparece no interior do edifício outro lado de si. Uma velha aí, andar acima do meu, vem de mecânicas estudadas, passando a vista por cima dos vasos ao longo da varanda onde só ela cabe de lado; se baixa ponto traço, traço ponto, um sim outro não, arrancando o daninho que entende haver aí plantado.

Ao lado disto, um hotel em obras vestido de rede. Dá para ver que as paredes irão de azul céu.

Não alterar a posição. Setas viradas para cima. Frágil cristal, onde nada se adivinha, tapado por cartão, atado de movimento. Visto de lado. LOVE escrito assim, em língua diferente; círculo vicioso a cercar um coração na cor que é dele vivo. O mobiliário da alma está todo por montar. O chão é soalho e solho. Belo, belo. Não o piso; passo à frente, por passadeiras desenroladas por minha mão e costume em cartão canelado. Cruzam todas as divisões.

Uma sanita, fora do lugar para alguém ver. Com a tampa fechada, não liga a lado algum, nem sequer aqui. Isto. Palavra. Fica assim, assente sobre quadrado que diz em cima AVISO. Assim vou, cuidando do perigo de ninguém mais aqui estar. Torneiras arrancadas do lugar, atiradas ao chão fazendo mossa à madeira. A parede no corredor, sentido dentro fora, em frente à porta principal, à direita, é branca como as outras. Mas não é simples, não. Não é direita. É feita de cruzes, sua gaiola. Prumos ao alto, travessanhos a direito, escoram outros na diagonal sem pressa de ir a outro lugar, fasquiados ocultos. E falta sempre qualquer coisa.

Por aqui adentro, abro janela para o saguão dos homens de chão e paredes. Fumei até ao fim o cigarro, o resto já se vê. Da rua, vem toda a vida feita em sons de ver em olhos fechados, nesta paragem forçada ao dia de hoje. Pás e vassouras, raspam, raspam, raspam o chão, para me fazer o ninho atrás da orelha. Martelam perto. Martelam. Furam. Furam. O autocarro, deve ser, em outra rua. Máquinas de ar condicionado, o bastante, conquistando espaço ao ar e atenção.

Escrevo recuado, à linha de vista para o exterior. Não aguento. Seguro a folha como posso, e vou na direcção do barulho. Homem está no chão, varre. É o mesmo – se eu dissesse outro, o que seria de nós? Noutro lugar do chão de ainda há pouco, junta outro monte de pedras, se afasta um nada, admirando a parede mais próxima, para trás para frente. Pára, e descalça suas luvas em pele forte. Entra uma mulher no espaço, dizendo até que enfim para o homem. Começa tudo a trabalhar bem, aparecem outros homens que ainda agora ninguém deles sabia. O que faz uma mulher nos falando. Desaparecem. Deixam o gerador ligado. Cortam ferro, lá atrás. As antenas nos telhados, captam algo que não sinto.

Sinal sonoro denuncia o movimento das máquinas espalhadas pelas ruas. Fecho a janela. Se apaga o som de lá. Andam por dentro os que ficam, andam e param quando paro eu. Não estou lá para saber se é outro, se ainda estamos a falar do mesmo. Pela porta principal que dá para a escada do edifício, entra a sombra de um vulto pela frincha de alguns milímetros. Pára. Pára para mim, enquanto o escrevo.

Vou ao quarto. Passa uma ambulância por rua afastada. Juro. O quarto não tem mobília; apenas muitos rolos de cartão canelado, colocados ao alto, enrolados para o que der vier. É chão, quando dele se precisa.

Vou à janela. Sangue meu também, que não preciso, a fluir. Nada está quieto. Salvo seja quem não quer. A distracção motora, de sentido cobre a distância que vai da solidão ao porto seguro de saber que, alguém, tal como combinado, ainda vai tocar à campainha da porta, entre o meio-dia e a uma da tarde.

Na parede vai a sombra, na alma o diabo. Frase separada, acima abaixo, dos parágrafos à volta. Pensada para ser título, encaixa aqui melhor. Fica a intenção.


O amolador de facas, anuncia sua pedra jogada não muito longe; tenho a minha a cortar bem, no bolso de trás das calças, esperando fazer figuras às tirinhas no papel, animar elas, lhes não baixar os braços. Como precisado estou de sombras.

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