domingo, 18 de junho de 2017

MEIO FÍSICO






O gato aparece por detrás ao caixote do lixo; se afasta para o lado lento, oscilando tremendamente sua cabeça, até parar. Quando para ali olho de novo, já lá não está. 

«Já não conhece ninguém», grita de outro lado um mais velho, a outro que passa. A menina, cinzenta e magra, vem. A menina foi, levando seu horizonte de metro contado, dos olhos ao chão. O electricista de Alta Tensão abandona este lugar de todos; vai ao volante do seu motor, a fazer pisca para desaparecer na próxima curva. O pássaro bate algumas vezes a asa, e deixa-se ir, por momentos, a planar. Outros pássaros, imóveis, cantam pelas árvores.

O fumo sai, pela chaminé da casa acabada de caiar.

Estalam folhas secas, anunciando pessoas chegando devagar; pessoas atirando a correia do olhar por cima do ombro que trago a descoberto; pessoas querendo já, e antes de me olharem bem os olhos, perguntar qualquer coisa. Por este caminho, nada dou. Muitos pássaros dizem, cantam. E as árvores falam do vento, por cima de todos. O sol acaba todas as frases, manchando-as de luz tardia; quase horas de fechar o dia.

«Boa tarde» e festas ao cão. Vêm mais cães, e mais pessoas por eles. Se alargam trelas à medida das suas conversas, e se colhem ervas de cheiro. Enganam-se na rua, outros, e levam os carros a dar volta completa à rotunda, por dentro, saindo de cena imediatamente pelo lugar de onde vieram. O que me está à frente é motivo suficiente para me enganar, no que lá atrás de mim ficou ainda parte. Me perco a olhar para o que não tem já forma precisa, não sendo mais que outra nuvem passageira.

«A ele lhe morde mesmo», não sei já quem foi. Quem se enganou lá atrás, vem outra vez a se repetir, cravando os olhos em mim, como se a resposta para a sua direcção, estivesse sentada a meu lado no banco corrido. Enganas-te, penso, uma e esta vez também, não fazendo disso caso.

O pai chega à porta do prédio, com o filho lhe dormindo no colo. A outra mão, livremente carregando o pesado saco de víveres. Pousa aquele na pedra sem acordar, encosta-o à parede, procura nos bolsos a chave da porta da rua. Entretanto, automaticamente, de um andar acima lhe abrem a porta. Junta tudo, vai para dentro.

A rola toca a tarde, com frase igual muitas vezes chega até nós.

O passeador de cães, nada tem que ver com os outros de quem falámos. Têm em comum um animal. Só. Vem de olhar esgazeado, animal em duplicado; entra pela direita a meu ver, se desloca para o lado onde o sol se está a ir, num repente. Faz barulho, acrescento, assobiando ária de ópera qualquer, não me soando a desconhecido. Música dos outros passando por ele, rondando as árvores, uma e mais voltas, subindo e descendo de intenso, conforme tudo ali o permita e com isso jogue a favor.

Vento     pássaros     moradores     terra.
Algumas casas, avançam.

A sinalização horizontal, branca, passada ao chão, ligando esta rua às outras. É o fio esticado até onde posso ir. E se perde assim já, um suficiente de meada. Ainda experimento chegar, ao poema que aqui me trouxe para o escrever. Coreografias de espaço     ponto     espaço     traço; a conversa sobre si, de volta aqui. Arte invisual. O objecto resgatado ao resultado incerto do seu corpo.

O passeador de cães entretanto vai, assobiando para o ar. O poema não fica pior, se aqui paro um pouco, seguindo até dar, com o olhar, esta figura assumindo o papel importante de se atravessar no caminho do que ainda virá.

Imagens convertidas à pressa, recuperadas para a escritura. E vice-versa, para outras que se perdem e bem. Motoriza-se a fala dos bichos, põe-se a nu a acção plástica. Contínua forma de desprezo, ao que se resume numa só frase. Tenho dito. Isto e nada. Ou um rosto, estragando a passagem de mão inteira, na cor escura dos dias iguais. Os sentidos, e forma de obter essa experiência de estar por aqui, não são negados ao contorno aparente: olhos, nariz, boca. E uma alma por trás, a sustentar o que sobra de dúvida. No dia que foi quente, desperta este frio que chega para ficar por dentro. No desconforto da permanência, procura o rosto outro lado para desaparecer, por entre acções transparentes. Faltando deixar isto como estava.

A construção do passado, sobrevive, empurrando o pouco espaço que ocupa, para fora da língua em que é pensada. Acontece conhecer esta aquela textura, na liga leve desse espaço que se inquieta com a cor branca. Mãos caem, segurando o chão ao absurdo da infância. Riscar o fósforo ou destapar a caneta, ambos riscadores de único tempo.

O respigador empurra o carrinho de mão; aparece no lugar do gato, faz tudo igual a ele.

Voltar à casa, atirar com a porta. Negar toda e qualquer resposta, às vozes que me vêm encontrar num dado ponto do corredor. Esvazio os bolsos, e vou aflito entrar na última divisão do espaço, direito à tela a envenenando com a tua mancha ainda quente na ideia. Voltas a voltar à casa; daí até à ideia, passas um risco por cima. Mau demais, para serem frases de verdade.

O corpo anexa à disposição dos obstáculos, sua mania linear. Traça um intervalo por haver, incorre numa linguagem em desuso, por ali fora, inconsciente do desejo que o anima. Dá lume aos cantos, no propósito único de accionar as sombras aí deitadas; onde a luz, qualquer que fosse, aí não chegava. Excursionista da negação, não dás parte de fraco. Sais ao caminho, onde sabes que te vais perder. De olhos bem abertos, oxigenas a alma com a última imagem da cordilheira do rito. Enjoas, e vomitas forte, à primeira sacudidela.

Nunca escolho a dureza ao riscador. Antes espalho algumas linhas e outros tantos lados de qualquer coisa; se depois conseguir fazer isso tudo desaparecer com esse instrumento, a sorte não saiu má.

A imagem da criatura, é sempre um arco abatido.

Marcar um som, na proximidade da boca. Interrompo este raciocínio, com as pequenas coisas da vida. Dentro de um vestido vermelho esta mulher, uma flauta nos beiços. Uma harpa metida no meio de violinos, prendendo numa melodia desconcertante a teia do lugar a que nunca se chega. Saudades de nada, tudo sempre tão presente por adição desmedida. E o espaço é sempre tão pouco para mais, ou nenhum.

A cantiga do inimigo é suave. O desinteresse pela refrega é total. Se esconde o sangue, longe de espelhos e arestas vivas. Não se toma banho, se lava à gato fora de horas, à pressa. Teu corpo hiperbolizado por furações maníacas, por aí levando o agora ao outro lado. De perfil, um seio é sempre sintoma de febre, uso e costume. Albergar tantos candeeiros, vestidos de vidro fraco e luzes tremidas, tal a soberba da noite composta. Ainda que em contramão. Com a certeza dos incertos levantar os pontos à topografia do horrível sem falhas, acertando a hora pelo pulso cortado do autómato. Faz-se contas de cabeça, joga-se a mão a perder o fio. Volta-se e é sempre princípio, acabando por nunca se ver o fim ao fundo.

Falo de memória, e nunca de um plano de emergência. Antes fosse, como te direi mais à frente. Desaparecer para nunca mais é um luxo para quem pode fazer disso, vida. Ilusionistas, ou ninguém. Virá a ser o mesmo, aqui em toda a parte. A verdade é o monumento que nos acostumamos a ignorar, andamos nós perdidos por entre o casario. Nem porta se vê ali. Um absurdo, se é coisa para tão pouco.

Em azul claro, a linha se endireita, vem ao fim, se precipita e escurece em parte, certamente ali. De baixo para cima, pode ser algo suficientemente sólido onde ancorar o olhar. O céu se deixa em branco, sabe-se lá. À transparência, se lê a bula do remédio esquecida no fundo da gaveta. A palavra deste lado fica doente com a do outro. Não serve. Então, o poema. Fora das leis da geometria, não há culpados. Num ponto a morte, é sempre a fuga à contenção das formas para a dizer melhor. Os sopros da noite tocada batem no tímpano do pano já em baixo, e voltam para trás. Sobre imagem ou reflexão infundada, é à medida que se perde misericórdia. A regra não vale o ouro que vocês aí reclamam. As horas são passadas de cabeça para baixo, abaixo do nível das águas no ventre da Mãe Saudade.

Contas os pilares à planta baixa. Falta um elemento vertical à estrutura que te sustenta. Ninguém por nada deu. Há muito que desapareceste, vivendo perto.

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