O
gato aparece por detrás ao caixote do lixo; se afasta para o lado lento,
oscilando tremendamente sua cabeça, até parar. Quando para ali olho de novo, já
lá não está.
«Já não conhece ninguém», grita de outro lado um mais velho, a outro que passa. A menina, cinzenta e magra, vem. A menina foi, levando seu horizonte de metro contado, dos olhos ao chão. O electricista de Alta Tensão abandona este lugar de todos; vai ao volante do seu motor, a fazer pisca para desaparecer na próxima curva. O pássaro bate algumas vezes a asa, e deixa-se ir, por momentos, a planar. Outros pássaros, imóveis, cantam pelas árvores.
«Já não conhece ninguém», grita de outro lado um mais velho, a outro que passa. A menina, cinzenta e magra, vem. A menina foi, levando seu horizonte de metro contado, dos olhos ao chão. O electricista de Alta Tensão abandona este lugar de todos; vai ao volante do seu motor, a fazer pisca para desaparecer na próxima curva. O pássaro bate algumas vezes a asa, e deixa-se ir, por momentos, a planar. Outros pássaros, imóveis, cantam pelas árvores.
O
fumo sai, pela chaminé da casa acabada de caiar.
Estalam
folhas secas, anunciando pessoas chegando devagar; pessoas atirando a correia
do olhar por cima do ombro que trago a descoberto; pessoas querendo já, e antes
de me olharem bem os olhos, perguntar qualquer coisa. Por este caminho, nada
dou. Muitos pássaros dizem, cantam. E as árvores falam do vento, por cima de
todos. O sol acaba todas as frases, manchando-as de luz tardia; quase horas de
fechar o dia.
«Boa
tarde» e festas ao cão. Vêm mais cães, e mais pessoas por eles. Se alargam
trelas à medida das suas conversas, e se colhem ervas de cheiro. Enganam-se
na rua, outros, e levam os carros a dar volta completa à rotunda, por dentro,
saindo de cena imediatamente pelo lugar de onde vieram. O
que me está à frente é motivo suficiente para me enganar, no que lá atrás de
mim ficou ainda parte. Me perco a olhar para o que não tem já forma precisa,
não sendo mais que outra nuvem passageira.
«A
ele lhe morde mesmo», não sei já quem foi. Quem se enganou lá atrás, vem outra
vez a se repetir, cravando os olhos em mim, como se a resposta para a sua
direcção, estivesse sentada a meu lado no banco corrido. Enganas-te, penso, uma
e esta vez também, não fazendo disso caso.
O
pai chega à porta do prédio, com o filho lhe dormindo no colo. A outra mão,
livremente carregando o pesado saco de víveres. Pousa aquele na pedra sem
acordar, encosta-o à parede, procura nos bolsos a chave da porta da rua. Entretanto,
automaticamente, de um andar acima lhe abrem a porta. Junta tudo, vai para
dentro.
A
rola toca a tarde, com frase igual muitas vezes chega até nós.
O
passeador de cães, nada tem que ver com os outros de quem falámos. Têm em comum
um animal. Só. Vem de olhar esgazeado, animal em duplicado; entra pela direita
a meu ver, se desloca para o lado onde o sol se está a ir, num repente. Faz barulho,
acrescento, assobiando ária de ópera qualquer, não me soando a desconhecido. Música
dos outros passando por ele, rondando as árvores, uma e mais voltas, subindo e
descendo de intenso, conforme tudo ali o permita e com isso jogue a favor.
Vento
pássaros moradores terra.
Algumas
casas, avançam.
A
sinalização horizontal, branca, passada ao chão, ligando esta rua às outras. É o
fio esticado até onde posso ir. E se perde assim já, um suficiente de meada. Ainda
experimento chegar, ao poema que aqui me trouxe para o escrever. Coreografias
de espaço ponto espaço
traço; a conversa sobre si, de volta aqui. Arte invisual. O objecto
resgatado ao resultado incerto do seu corpo.
O
passeador de cães entretanto vai, assobiando para o ar. O poema não fica pior,
se aqui paro um pouco, seguindo até dar, com o olhar, esta figura assumindo o
papel importante de se atravessar no caminho do que ainda virá.
Imagens
convertidas à pressa, recuperadas para a escritura. E vice-versa, para outras
que se perdem e bem. Motoriza-se a fala dos bichos, põe-se a nu a acção
plástica. Contínua forma de desprezo, ao que se resume numa só frase. Tenho dito.
Isto e nada. Ou um rosto, estragando a passagem de mão inteira, na cor escura
dos dias iguais. Os sentidos, e forma de obter essa experiência de estar por
aqui, não são negados ao contorno aparente: olhos, nariz, boca. E uma alma por
trás, a sustentar o que sobra de dúvida. No dia que foi quente, desperta este
frio que chega para ficar por dentro. No desconforto da permanência, procura o
rosto outro lado para desaparecer, por entre acções transparentes. Faltando deixar
isto como estava.
A
construção do passado, sobrevive, empurrando o pouco espaço que ocupa, para
fora da língua em que é pensada. Acontece conhecer esta aquela textura, na liga
leve desse espaço que se inquieta com a cor branca. Mãos caem, segurando o chão
ao absurdo da infância. Riscar o fósforo ou destapar a caneta, ambos riscadores
de único tempo.
O
respigador empurra o carrinho de mão; aparece no lugar do gato, faz tudo igual
a ele.
Voltar
à casa, atirar com a porta. Negar toda e qualquer resposta, às vozes que me vêm
encontrar num dado ponto do corredor. Esvazio os bolsos, e vou aflito entrar na
última divisão do espaço, direito à tela a envenenando com a tua mancha ainda
quente na ideia. Voltas a voltar à casa; daí até à ideia, passas um risco por
cima. Mau demais, para serem frases de verdade.
O
corpo anexa à disposição dos obstáculos, sua mania linear. Traça um intervalo
por haver, incorre numa linguagem em desuso, por ali fora, inconsciente do
desejo que o anima. Dá lume aos cantos, no propósito único de accionar as
sombras aí deitadas; onde a luz, qualquer que fosse, aí não chegava. Excursionista
da negação, não dás parte de fraco. Sais ao caminho, onde sabes que te vais
perder. De olhos bem abertos, oxigenas a alma com a última imagem da
cordilheira do rito. Enjoas, e vomitas forte, à primeira sacudidela.
Nunca
escolho a dureza ao riscador. Antes espalho algumas linhas e outros tantos
lados de qualquer coisa; se depois conseguir fazer isso tudo desaparecer com
esse instrumento, a sorte não saiu má.
A
imagem da criatura, é sempre um arco abatido.
Marcar
um som, na proximidade da boca. Interrompo este raciocínio, com as pequenas
coisas da vida. Dentro
de um vestido vermelho esta mulher, uma flauta nos beiços. Uma harpa metida no
meio de violinos, prendendo numa melodia desconcertante a teia do lugar a que
nunca se chega. Saudades de nada, tudo sempre tão presente por adição
desmedida. E o espaço é sempre tão pouco para mais, ou nenhum.
A
cantiga do inimigo é suave. O desinteresse pela refrega é total. Se esconde o
sangue, longe de espelhos e arestas vivas. Não se toma banho, se lava à gato
fora de horas, à pressa. Teu
corpo hiperbolizado por furações maníacas, por aí levando o agora ao outro
lado. De perfil, um seio é sempre sintoma de febre, uso e costume. Albergar
tantos candeeiros, vestidos de vidro fraco e luzes tremidas, tal a soberba da
noite composta. Ainda que em contramão. Com
a certeza dos incertos levantar os pontos à topografia do horrível sem falhas,
acertando a hora pelo pulso cortado do autómato. Faz-se contas de cabeça,
joga-se a mão a perder o fio. Volta-se e é sempre princípio, acabando por nunca
se ver o fim ao fundo.
Falo
de memória, e nunca de um plano de emergência. Antes fosse, como te direi mais
à frente. Desaparecer
para nunca mais é um luxo para quem pode fazer disso, vida. Ilusionistas, ou
ninguém. Virá
a ser o mesmo, aqui em toda a parte. A verdade é o monumento que nos
acostumamos a ignorar, andamos nós perdidos por entre o casario. Nem porta se
vê ali. Um absurdo, se é coisa para tão pouco.
Em
azul claro, a linha se endireita, vem ao fim, se precipita e escurece em parte,
certamente ali. De baixo para cima, pode ser algo suficientemente sólido onde
ancorar o olhar. O céu se deixa em branco, sabe-se lá. À
transparência, se lê a bula do remédio esquecida no fundo da gaveta. A palavra
deste lado fica doente com a do outro. Não serve. Então, o poema. Fora
das leis da geometria, não há culpados. Num ponto a morte, é sempre a fuga à
contenção das formas para a dizer melhor. Os
sopros da noite tocada batem no tímpano do pano já em baixo, e voltam para
trás. Sobre
imagem ou reflexão infundada, é à medida que se perde misericórdia. A
regra não vale o ouro que vocês aí reclamam. As
horas são passadas de cabeça para baixo, abaixo do nível das águas no ventre da
Mãe Saudade.
Contas
os pilares à planta baixa. Falta um elemento vertical à estrutura que te
sustenta. Ninguém por nada deu. Há muito que desapareceste, vivendo perto.
Sem comentários:
Enviar um comentário