domingo, 23 de março de 2014

À ESCALA





A memória. Outra coisa, o Norte – onde me encontro um lugar, num chão de manhãs solarengas partilhado com um bando de perus sossegados no seu sangue. Os membros todos curtos de voo, uma extensão abreviada do Sul abaixo deles. Sombras volumetricamente instáveis depois do sol, no portão de ferro – espaçam a paisagem atrás de nós. Vertebrado desleixo. O lado tardoz encerrado à vista, por onde se ouve a voz de quem manda para lá, num sotaque das rochas – de onde venho, até à cintura. Caminho daí para cima distraído, num corredor desigual, e quase não reparo no chapéu. O sentido do fedor e do engano os olhos, simetricamente percutidos distantes. E uma cor desconhecida. Atraso-me até um dia, onde me reconheço perfeito miúdo, a usar um sorriso a condizer com joelhos esfolados, centrados na carne viva. Atraso-me até um dia, onde me reconheço perfeito miúdo, encravado numa gargalhada de nervos, desenquadrados da fotografia de árvores desbotadas mais altas do que são, à escala dos anos novos. Antes da lâmina esquecida da faca, num bolso. Antes de um pulso, mal costurado pelo enfermeiro de serviço, acima do nervo branco à mostra. Depois do roubo da atenção tentado a um cão raivoso na sua refeição única. Depois o cheiro da lenha, desse lume recente acabado de atear – o ensaio geral na casa do fogo – interior ao corpo, uma floresta onde se iluminam formas enquanto se arde bastante de pássaros rudes. Pássaros alguns de pouco bico ou nenhum moldado pelas mãos das velhas nos seus finais de tarde na laje térrea, diante da loja das bestas domésticas alimentadas a farelo. Das velhas nos seus finais de braço, negros ponteiros pelas horas familiares dos mortos. É uma noite, e tudo passa. A partir desta janela, o autocarro desloca pontuais pontos de luz, à distância de uma rua intermitente. O pé-direito não é um número menos de três, mal medidos metros confortáveis em altura. A partir desta janela, uma grua calma, cravado elemento na paisagem, lança parada no ponteiro do relógio que falta às velhas, virado para a lateral no fim do aqueduto das águas soltas. A partir desta janela, um pássaro razoável poeta em pleno acto libertário, em que se solta dos versos mais pesados, e descreve a mais elevada narrativa acima dos telhados. Onde uma antena chega mais rápido ao céu. Onde chaminés exaustas de gordura, dobram a direcção no último momento da fachada vertical, e encontram caixas-negras, clarabóias soltas permeáveis à cor da noite. Cordas de aço vazias em largura, ao longo dos edifícios de construção. A excepção, essa interrupção da certeza ao terceiro piso, onde uma toalha branca encardida a meio. E umas calças mal estendidas sem tamanho. A partir desta janela, a cércea que termina na rua vazia. No encontro com o piso mais vago da ocupação, do espaço poluído de fantasmas e máquinas em desordem de estridências interiores à pele. Com nada. A mesma cor o céu todo. Cotejada a cor, tudo o resto é escorrência para cima dos outros contornos da rua, sapatos abandonados e caixilhos. A partir desta janela, um pássaro razoável poeta que deixa atrás de si um rasto de ausência, e engole longe as palavras, mestiçagem de migalhas de pão e parafusos, o perfeito par incorrecto na dança dos elementos polvorentos. Onde a cabeça é a finita porção de geometria que sobra do infinito da memória. O que me tornei depois da hora, do primeiro choro violento.

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