Esta porta não tem número – é escultura quase plana, algum relevo roubado à espessura bruta de uma pessoa lembrada parada à sua frente. Material esmurrado silêncio pela sua mão em falta, som artificialmente concebido para percorrer o pé-direito do edifício esquecido de chapéus mais altos.
A rua
insinua-se gargalhada pelas costas, como um rio histérico indeciso de margens.
De estridências de borracha e pele falsa nos calcanhares. Barulhos fazem todos,
na corrente de pedras soltas onde se apagam letras na face ao ar, disponíveis para
versos incompletos pontuados amnésia onde deviam rimar. Um tronco
imperfeitamente belo, o melhor em idade descendente da floresta Norte, tombou
directamente para degrau. Executado várias vezes a caminho da altura, nesta
coisa que lar não é palavra suficiente, habitada por mais caixas que corpos,
com as palavras HERANÇA REJEITADA inscritas nas faces todas. Enigmas, sorrisos
alarmantes de escrivães mortos, parte das suas palavras em fuga pelas frinchas
do cartão velho, alegorias do infinito reciclável. Espelhos partidos em todos
os pisos, pelas ocidentais biqueiras dos sapatos por aqui perdidos num tempo,
outro. Os corpos nunca originais, distraídos das suas esquinas, são aqui outras
coisas da luz, contornos absolutamente inúteis. Artifícios apagados no cheiro
de roupa despida lenta e grave de cima para baixo. Os objectos sempre superfícies
à quantidade, em que se tropeça pensamento, num quarto vivo lá no fundo tantos
dias quantos cantos. Prolongam-se rodapés no edifício de poucos pisos ocupados,
a constante interrompida por vãos de outras portas sem número e estuques
barrigudos. O meu apelido incompleto, na boca imediatamente esquecida na
paisagem do teu corpo interrompido em corte. Plano aos pés descalços, golpes
nus à superfície. Resume-se queixume geométrico de um anjo, desajeitado pelo
torpor do vício que lhe não pertence. Ossos compassados a espaços ponto. Só
suficiente, por eles separados. O céu como pesadelo igual aos outros,
atravessado por angústias velozes e facas afiadas debaixo da cama onde já
existimos. Caído anjo, barafusta ao nível do chão das nódoas que lhe escurecem
o corpo pálido perfeito, antítese desta luz da cidade dolorosa. Colateral
insistência, sugestão. As sombras mal medidas dos prédios, que adormecem de
lado ao meu corpo, nos cantos do quarto. Vivo lá no fundo. Para lá a fronteira
abandonada por um espírito irrequieto, junto dos materiais transformados em
construção.
Esta
porta não tem número – é letra.
Um
lugar lembrado pele, anestesia dobrada em palavras posições todas, sexo indescritível,
espesso como a madeira do piso. Objectos mais antigos que a minha vida,
empilhados por loucuras arrumadas, outras vidas a um canto. A desistência de um
anjo, surdo e pálido – o corpo nu que guardo à janela com parapeito de Inverno,
a estação do último suspiro da manhã.
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