segunda-feira, 3 de março de 2014

ASYLO




Esta porta não tem número – é escultura quase plana, algum relevo roubado à espessura bruta de uma pessoa lembrada parada à sua frente. Material esmurrado silêncio pela sua mão em falta, som artificialmente concebido para percorrer o pé-direito do edifício esquecido de chapéus mais altos.
A rua insinua-se gargalhada pelas costas, como um rio histérico indeciso de margens. De estridências de borracha e pele falsa nos calcanhares. Barulhos fazem todos, na corrente de pedras soltas onde se apagam letras na face ao ar, disponíveis para versos incompletos pontuados amnésia onde deviam rimar. Um tronco imperfeitamente belo, o melhor em idade descendente da floresta Norte, tombou directamente para degrau. Executado várias vezes a caminho da altura, nesta coisa que lar não é palavra suficiente, habitada por mais caixas que corpos, com as palavras HERANÇA REJEITADA inscritas nas faces todas. Enigmas, sorrisos alarmantes de escrivães mortos, parte das suas palavras em fuga pelas frinchas do cartão velho, alegorias do infinito reciclável. Espelhos partidos em todos os pisos, pelas ocidentais biqueiras dos sapatos por aqui perdidos num tempo, outro. Os corpos nunca originais, distraídos das suas esquinas, são aqui outras coisas da luz, contornos absolutamente inúteis. Artifícios apagados no cheiro de roupa despida lenta e grave de cima para baixo. Os objectos sempre superfícies à quantidade, em que se tropeça pensamento, num quarto vivo lá no fundo tantos dias quantos cantos. Prolongam-se rodapés no edifício de poucos pisos ocupados, a constante interrompida por vãos de outras portas sem número e estuques barrigudos. O meu apelido incompleto, na boca imediatamente esquecida na paisagem do teu corpo interrompido em corte. Plano aos pés descalços, golpes nus à superfície. Resume-se queixume geométrico de um anjo, desajeitado pelo torpor do vício que lhe não pertence. Ossos compassados a espaços ponto. Só suficiente, por eles separados. O céu como pesadelo igual aos outros, atravessado por angústias velozes e facas afiadas debaixo da cama onde já existimos. Caído anjo, barafusta ao nível do chão das nódoas que lhe escurecem o corpo pálido perfeito, antítese desta luz da cidade dolorosa. Colateral insistência, sugestão. As sombras mal medidas dos prédios, que adormecem de lado ao meu corpo, nos cantos do quarto. Vivo lá no fundo. Para lá a fronteira abandonada por um espírito irrequieto, junto dos materiais transformados em construção.
Esta porta não tem número – é letra.
Um lugar lembrado pele, anestesia dobrada em palavras posições todas, sexo indescritível, espesso como a madeira do piso. Objectos mais antigos que a minha vida, empilhados por loucuras arrumadas, outras vidas a um canto. A desistência de um anjo, surdo e pálido – o corpo nu que guardo à janela com parapeito de Inverno, a estação do último suspiro da manhã.

Sem comentários:

Enviar um comentário