terça-feira, 11 de março de 2014

DEPRESSÃO





Incapacitante outro. Este também de mim que fica para os lados da fronteira anulada, escancarada plana para demónios acossados por unicórnios impacientes, no adentro silencioso de uma cabeça de elefante. Contrabandistas da propriedade verticalmente abandonada do corpo, que me propõem chantagens simples. Coisas iguais a nada ou perto disso. E é desse nada que não faz falta, quando o horizonte é demasiado largo para o prisioneiro que nega a sua melhor hipótese de fuga, encadeado pelo sol que lhe é demais, que as coisas começam a ter um sentido que lhes nasce das laterais, outras coisas. Depois de meses, depois de objectos-par imperfeitos, dolorosos pelo contacto até à víscera, os tecidos íntimos da carne e do sofá, objectos rombos que rasgam a matéria sobrante. Pela habitação espalho todos os rótulos desentendidos na diagonal da leitura, onde procuro por números inebriantes e encorpadas percentagens de teor alcoólico. Me não interesso por sabores, nem por tudo aquilo que estagia sossegado por detrás de superfícies reflectoras do meu rosto. Uso-me desse tudo, e nada. Puta que pariu a doença mental, concebida como trela estranguladora para os cães desavindos da matilha. Me não interesso por sabores, e não são as paisagens permitidas por todas estas janelas, que me projectam para longe destas pesadas sombras que me apagam o contorno igual todos os dias de luz. Incapaz sou, de sentir uma angústia diferente, um ânimo heróico que despolete a última viagem gratuita, ao encontro de outra superfície pedra metal corrente de água. A farda lisa do prisioneiro o pijama, pesadamente grosso do tecido e da conta gráfica apontada nele, invisível, dos banhos que deveria ter tomado. Além dos fluidos corporais, um desgosto conjugado a partir do ser sou serei, um caralho de um nada se me apetecer a mim, que me não apetece nada. Desaparecer sim, uma anulação intensa que seja de um sinal matemático apropriado, se a matemática for razão certa. No insuficiente de tudo se consome. Os efeitos-causa, de todas as substâncias inventadas para paralisar a parte sentida da alma física, arrancada ao corpo as vezes demasiadas que um dia tem. O álcool aguenta-se até à cama, o resto é pesadelo do sistema digestivo, vomitar como um gesto paralelamente normal, o bom-dia para fora na direcção do desconhecido com quem se é cordial. Vinhos traçadores de todas as nuances do rosto, na violência de se sentir carne do outro. A cama das noites curtas, os pés cortados pela forma deste incerto rectângulo, incapaz de conter o que se deseja até ao sangue. De ser coisa além do corpo, desaparecida ausente. Mas é corpo colado com suor ao tecido que me corta às postas. O problema das dimensões largo defeito, é aqui a urdidura de teias imaginadas neste espaço demasiado finito para a minha loucura temporária, que também nega espaços abertos. A cama dos dias longos, transformada nisso pela evolução do sofá no seu feitio que se não me adapta na posição sentada. Horizontalmente indiferenciado, não existe outra posição. Tragicómico lugar de se morrer, não um qualquer e qualquer posição se me afeiçoa, a não ser numa fatalidade de segundos, em que se não escolhe o lado da boca em que se transforma pontuação de frases não-estranhas, repetidas até à exaustão da última coisa.  O colapso das dioptrias, das imagens em paisagem, a que se não consegue atear de vastidão, no profanado espaço interior ao corpo. O lugar das meias de renda da infância, dos parentes de fantasmas que trabalhavam na cozinha de uma quinta brasonada no muro intransponível numa zona esquecida. O inferno se é rosto na cara dos outros, incompreendida expressão deles olhos pelo teu movimento parado, enquanto se lhes diz que não é possível tudo aqui, nem até ao café da esquina. A partir do corpo prostrado geométrico no meio neutro coisa nenhuma do sofá, troço de rocha instável sobre os pilares descansados das pernas fundadas nos pés sapatas, directamente abandonadas à superfície, desertas de enterros e terra aprofundada até à água. Traço-me ao contrário, não importa, tudo é circunferência, os mesmos sítios algures na vertigem da roda, onde se enlouquece em dias não esquecidos. Abandono-me aos sons de dentro ao corpo, onde não funciono em pensamentos mais vastos que a largura da cortina dos vãos. Não compreendo o resto, e recuso. Pergunto pouco, desvio-me do ser em mim original, transformando-me mais cínico, para a única via disponível da desordem natural das coisas. Não quero ser outro nem este, um estado de água porventura, rápido no encontro com uma parede natural no espaço de um abraço, do caos à natureza. Como pode a paisagem ser tão neutra, no que os olhos desenham para dentro da alma. Depressão profunda, sem fundo. Mundo animal. A incapacidade do garfo em ser ferramenta numa posição, a faca hesitante entre o fio da fronteira, a ponta mais ao cabo ou se entra pelo corpo adentro. Tons de carmim engarrafado, sangue que se engole em qualquer temperatura, a boca descaída frincha na inexistência de um plano de emergência. Maus fígados, outra cor, mau vinho. Disfuncional ocaso, e o dia pior. Incremento das horas maiores até zero. Na vertigem alcoólica, acordo num pesadelo acidentado de frente com o lugar onde nasci. Menos mal mas não cura, o vinho. Nem fogos transparentes, milagres que te agarram a cintura enquanto prolongamento da garganta longa ateada de betuminoso virgem. Arrasto-me lesma despegada à superfície, até ao canto do quarto com gavetas. Escolho os comprimidos mais brancos, a única cor capaz de me tocar as mãos, num momento. As bulas resumem-se até ao lugar dos efeitos, a única parte do texto que me emociona até à indiferença. Subo as doses aos pares, múltiplos, no espaço de minutos. Esqueço que a certeza, um resultado, é uma assunção inventada para o sossego dos racionais isentos. O caminho curto pela escarpa, pelos cantos da boca resíduos de mar, espuma química do corpo a apagar neuroses. O temperamento frio do fogo. O barulho imaginado, não sei, de petroleiros quietos encalhados longe numa lateral à praia, atravessados paralelos à espinha que abandono para trás das costas. Sou ainda eu, desviado por barulhos que me afligem a partir das escadas comuns, os diálogos e passos que não suporto sorrateiros por baixo dos milímetros que separam a porta do piso do exterior que recuso. Esta rua como rápida excepção, ponto de origem trânsito ponto de recolha inverso. Na rota das especiarias da alma, saleiro e pimenteiro amortecedores desta carroçaria insana, alérgica a mecânicos, padres sinaleiros e semáforos de baixo consumo. Para o caralho que os fodam a todos e às putas desordeiras, calçadas de meias desligadas do corpo por espaçadores de linho. Grandessíssimos cabrões os demónios e as aranhas que os ajudam por dentro das paredes de carne entrelaçando farrapos imperfeitamente geométricos. A noite intermitente, dependente dos candeeiros de luz dolorosamente amarela. O formato maior da folha onde se escreve angústia. Vomito bastante, nunca purga suficiente dos fígados e pedaços soltos dentro do meu corpo desmultiplicado por tantos zeros. A barreira da cegueira, os óculos turvos da poeira que sobra dos poucos móveis que aqui existem. Para o caralho tudo e todos nós. O sexo é coisa das paredes vizinhas, transições impossíveis para corpos assim anulados. A mulher que me ocupa a cama – mil vezes antes me transformou em carvão carnal de labaredas inextinguíveis até agora – lamenta-se gritos às paredes, o porquê disto de mim, e traz-me um volume de tabaco para a semana. Ela fala, muito, explica-me assim o infinito da causa racional a que pertence. Ainda não entendo, e ouço-lhe a voz desviada para a minha cabeça entre as pernas, as mãos juntas na reza ao absurdo do totem inicial, enquanto vomito não sabemos se a última vez por hoje golfadas de espesso desânimo.


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