Antecedo,
preocupado, a manhã em um quarto. Na cabeça: «sobrou do que beber?». Matar o
bicho. Aqui. Ainda a claridade é esquisso, dito da boca pelas zungueiras que
predigo por aí afora. Aqui. Por entre um par inerte, se pensa um acorde imperfeito.
Varar os intestinos com sentido geométrico, sinusoidal, envelhecido pelo veio
rigoroso da madeira. Alimento provisório da força. Nervo. Beber sem pressa é
poesia, palavras compostas dos outros pelas costuras de outros ainda. Sou das
narrativas, quando muito, tensas. Aí, concedo, sou língua ressuscitada. Um espírito
que se dessolidariza lateral à carnadura, desenhada esta por braços
insuficientemente diurnos, para delinear uma sombra. Diga-se daqueles – são instrumentos
mínimos de tortura.
Um
íncubo sem horas de luz, a minha desordem, entornada que está pela bissectriz
do meu algures. A nascente, o alçado invisível de um ventre. Comunicante um
oceano, que me agride tranquilamente de volume por entre continentes que esqueço.
O suporte físico, efémero, de um passaporte. Por cada rosto meu, um ano. Naturalmente.
Por uma fotografia amarelecida, toda a humidade que transfiro para o solo do
meu desequilíbrio. Duração de partículas evaporadas.
Convergi
num ponto, do avesso. Em Angola. Podia ser um outro lugar, também de África. Seria
o mesmo. Bem-vindo.
Desconsegui
a vida. Pouca roupa, bom calçado. Para pisar, á volta, terra queimada. Alguém que
a pisa, separado por uma espessura de indiferença pela língua parecida, um
lugar que me é igual a qualquer um outro. Tanto faz. Ossos. Que seja um lugar,
assim me basto, onde possa enlouquecer longe da fechadura da porta que coincide
com as chaves que encontro no fundo da mala de viagem.
Erguida,
a intempérie se decide. Construção em altura? Pé-direito inferior ao que é imprescindível?
Como suportar o tempo de um pensamento? Assim sou, gás volátil. Elevo-me à
temperatura das nuvens, condicionado por estas. Atravesso outras, pelo vidro
que me separa da paisagem.
Pelas
viaturas de chapa, blindagem quase intransponível, escondem-se as mãos. Pelas
janelas, na direcção curiosa do outro, são lançados: latas de refrigerante,
indiferença, medo. Espontaneamente violentos, numa altercação. Sorrisos abertos
a meio pelo traçado de um intestino grosso, musculado, das coisas mal digeridas
a que chamamos princípio do corpo, por não ser escultura.
Engano-me.
Hoje, mais um dia. Para isso mesmo. Aqui, cidade no corpo. Acidentado, mais por
peões do que por viaturas. Onde existe violência, sim. Sempre existiu. Por entre
o material perecível das almas.
Da
condição mental em altitude, a confusão musical. Dos tambores pontuais, não há
um tempo certo. Como não há um caminho comum, apenas a mesma rua para
movimentados sentidos obrigatórios. Onde existem desencontros, um cruzamento,
um dia diferente noutra hora.
Esqueço.
Um de mim. Jacente neste colchão, atento á erosão do verbo ser. Aqui se
desprende e assisto, por um fragmento temporal, ao andrajo dessa esponja embebida
do odor de quantos, aí, atentaram a vultos. Rostos desenhados por manchas, na
laje. Deles falavam, por gestos. Também eu. Em suor, reconheço vários corpos
estranhos. A quem pertencem? Miseráveis contornos, de variação almiscarada. Não
sei o que são.
Água
que não há, perdida da pele para uma superfície. Através de um espelho danificado.
De palavras de fora, lama, a couraça de um bicho. A ideia, intransitável. Escombro
de ossos sensíveis, interrompidos pela fome do mais velho a pé pelo final da
ilha de Luanda.
Projectam-se
pela parede romba do fundo á alma, pesadelos em lâmina. Um grito incerto.
Corpo. Mão cerrada num baralho de cartas novas. Entenda-se tentação. Perderás
sempre para um vento. Perder assim. Como o resto que se perde de nós.
Diferenciada matéria que se descola, com o tempo, da pele indiferente. Perder o
princípio de uma vida. A minha irresponsabilidade.
Pouca
coisa muda. A ausência de significados a que me habituo. À pontuação final. A
um monograma em um lenço dobrado encardido, que esqueço no bolso. Recém-chegado,
descrevo os indivíduos, os diálogos, a cela. Como aqui cheguei? Superfície
sobrante, não traumatizada. Peremptoriamente isso de mal não tem. Tenho pensado
o pior. Digo assim por estas palavras que não sei. Como aqui voltei? A uma cela.
São sempre escuras as celas, de estação única. O Verão dos arrependidos,
sentimentais incapazes de compreender o abjecto anterior às coisas. Diga-se o
que se pensar das arestas. O que que irão ser senão confusão de bichos? Não há
aqui intempérie. Neste espaço calafetado. Imersão de proximidade. Se para aqui
vierem, tragam água engarrafada.
O
que não está bem neste caminho é o esboço. A partir da trama excessivamente branda
do carvão a partir de um punho trémulo de hesitação. É um instante. O caminho
abreviado, sem berma, por esta desordem. Em primeiro me vejo, um umbigo de danças
pelo terreiro. Um chão habitualmente vulgar. Um quintal. Em que eu demasiado
bêbado, na boca do mar a arrebentação, uma espuma biliar a perder-se de vista,
presa á primeira linha do mar. Um bicho no meio de vértebras, empurrado para
uma faca de recortar bainhas, que apara as roupas acima da carne exposta. Alguns
ossos menos extensos, enquanto a minha voz ameaça a partir deste número dividido.
Por três vigilantes. Numa fracção lenta, vai a refeição a meio, um deles armado
com AK quarenta e sete – sei a marca à arma de memória. Quase não existem outras
por aqui, guerras das outras. Existem anos mal esquecidos desta arma. Me não
apercebi «meu kota como então?» a pancada apenas seca, por si. Uma coronhada, de
maciça sinceridade, me silencia o movimento in extremis. Antes de conseguir
pele, depois carne, para a faca.
Devolvo-me
cortado á cegueira em pedaços iguais á noite. Menos os gatos. São poços os
olhos dos gatos. Poços fundos, fragilmente dilatados por cada um, no seu
movimento de unhas. Uma paciência. O cálculo do perímetro 2πr. Se tanto. Os
óculos quebrados sobre a estrutura do nariz. Cor provisória da carne. A mesma
cor no material dos aros. Outro final. Eu à ponta, no banco traseiro de uma
viatura da polícia de Luanda. Bramindo a voz contra dois polícias. Oficialmente
perplexos. Com a diversidade das asneiras, as que há. Algumas bem impessoais. Que
fossem para o caralho, um qualquer que os fodesse. Digo a eles a única coisa
que desejo. É um telefone. Anterior um filme, onde o prisioneiro teria sempre,
nestas condições, direito a um telefonema. Podia ninguém atender? Sim. Ligar á
mãe da minha filha. Mestiça de nós os dois, pais que por ela gritam para a
eternidade. Estava quase a nascer. Dali a quase nada. Disse duas, disse três. Disse
arrematadas semanas. Disse-o várias vezes: «senão morro!». Morro todos os dias,
mas eles não sabem. Prolongo-me pelas manhãs seguintes, enquanto as houver. Curta
edição de artífice. Uma noção de escala. Identificar os tamanhos à vida. Puta
que pariu. A sonoplastia desacompanhada do estrondo. Segue-se um silêncio.
Da
porta a fixação em diâmetros brutos de ferro. Sou encaminhado pelos polícias.
Diurna natureza mestra. Ou chave. Uma atmosfera. Um céu de prisão se abate,
sobre o negro do fundo às paredes. O corredor que aqui acaba. Outra parede. Um
vão de porta. Para dentro. Sou bicho localizado. O último por ordem capturado.
Sem contraditório. Pelo reflexo das minhas acções de bicho. Sem querer. Neste
zoológico, nestas condições. Apenas isso de absurdo. Sem nada para além dos
instintos, nas extremidades. De vigília, me desloco. Um traço improvável, pelos
volumes da vodka a garrafa inteira em
meia hora. A duração incompleta de um dia a mais. Do qual me esqueci. Das horas.
Havia luz quando aqui entrei. Apenas isso. Atravessado me sinto. Na linha
incompleta de fronteira, o corpo. Contorno ilegal. Quinze tons diferentes de
sombra. Um prisioneiro preto, incompleto na pincelada vigorosa do mestre
possível. A curiosidade não matou ninguém. Aqui não se gosta de gatos, já não
existem por morrer. Aqui um único tom me desenha. De fora de um tempo, a planta
que se dá sem peso em épocas determinadas da terra. Venho com cem quilos. O pouco
amor-próprio se pesa. De resistência eléctrica sem fio de terra.
Um
chão descolorido de chinelos, desencontrados do par. Numa cor diferente. Um
calor quase suportável, fosse eu filho das labaredas. Original minério,
transformado no dúctil de um homem. Uso o tronco nu. Uso calções. Sou bicho a
tornar-me elemento. Que seja água. Água é o que me escorre da fronte. Rio único,
que transborda nas costas. Uma corrente em cada perna. Desfocada imagem
enquanto afogamento.
Memórias
turvas. Outro rio. Nome Judeu. Pelas
suas margens um barco. Um esqueleto de lado, como adormeceu. Pela lama um nome.
Pele dos dedos de um pé. Calço o par do luxo, nesta prisão. Incluindo o polícia
graduado de serviço. São botas de performance. O meu teatro. Ultimo modelo Merrell.
O par comprado. Não é o dinheiro, por agora, problema. Ganho bem. Saio tarde. Do
descanso, um domingo. Religião de todos. Menos dos chineses. São a pilhas e
arroz. Nunca param. Não os deixam. Misturam-se bem com o pó dos caminhos. Andam
bem. Sorrisos estáticos pelos candongueiros.
Ouvi falar que habitam já os musseques. Por aí se vê. Pela estação do
Oriente, olhos rasgados de crianças. A gargalhada fácil. Como as outras. Deslocam
harmonias pelas ruas. Música dos tambores. As ancas deslocadas.
Botas
sem atacadores são chinelos. Tamanho acima da saudade uma estação fria. Uns
abraços podem ser fortes. Atacadores confiscados à entrada. Na esquadra. Podiam
servir para colarinho. Uma única vez.
Circulo.
Impaciente. Entre a cozinha e o comum da sala. Não descanso. Enquanto não vejo o
fundo á garrafa. Vodka. Às vezes gin. Raramente
whiskey. Que acordo o corpo ao diabo. Não há corda fiel a um relógio. Medição.
A garrafa foi aberta, contei por alto, há quinze minutos. Vinte. No vidro da
garrafa, a marca do meio-dia líquido, um horizonte de erosão veloz, onde
pássaros mudos apregoam a procissão das nuvens. Em cada viagem, meio copo. Alto.
Umas gotas de sumo de laranja de pacote. Na sala, deito-me ao comprido do sofá.
Ligo o ar condicionado. Apenas uso roupa interior. Engano a nudez. A televisão está
sintonizada no canal de música Afro-Music.
«Assim
é como? Kuduro.». «Assim é quê? Kuduro.». Acrescento jindungo.
Sei
de corpos, de tanta coisa pesada. Do maravilhoso torpor feminino dos corpos. Curvas.
Eu mesmo bem fobado, quero só já pitar. A partir da matéria estável do fungi
que alimenta as curvas acidentadas dos veículos de mão. Elevam-se acima da
temperatura do espaço onde acontecem e são o meu transtorno. Pela amplificação
do televisor a Noite Dia: «…olha o fogareiro… apaga o fogo…olha o
fogareiro…apaga o fogo…».
Onde
atravesso, um acidente. Abandono o lugar do sinistro, a partir do mesmo canto.
Construo outro à pele. De vontade.
As
moças da limpeza são duas. Estão espalhadas pela casa. Marca 09h45. Hoje não
fui trabalhar. Amanhã não vou trabalhar. Fui despedido. Por nada. Ainda no mês
passado tinha recebido um prémio. Um jipe para as deslocações. Marca Suzuki. Modelo Jimny. Cor branca. Cuidei dele.
Desviei-me de todos os abismos, das unhas grandes dos outros. Cuidei dele. Até
há dois dias atrás. Abreviei a sua frase corpórea para metade. Utilizei-o como arma.
Um momento. Tentei um crime. O meu desejo era matá-lo!
Senti
um estremecimento pelo corpo. Convulsão. Incontroláveis coisas de estômago. As
entranhas no grito: «queremos sangue!». Quase vomitava. As lágrimas pelos olhos,
leito de cheias. A transformação do meio inexacto se exagera. Um só formigueiro.
Um mal em que se está. Comprimido ar de inquietação. Atravessá-lo com o
disponível de chapa. Dizer adeus de vidro aberto. Dizer boa-noite. Já passou. Pela
rua se descontrolam as experiências. Empreitadas rápidas sem dono. Nem obra a
que concorrer. «Tenha atenção á passagem da composição sem paragens», lembro. Nesta
passagem um segundo. Um único sinal de exclamação. Tudo antes de um minuto. A
seguir o tempo.
Saí
à noite no final da semana passada. Vi vários bêbados. Os fora-de-mim incapazes
da sobriedade, de quem me esqueço, um por um por muro. Numa esquina, uma grade
de cervejas ou um improviso. Na direcção das pedras o nome parecido com
desaparecer. Cinco ou seis cadeiras de plástico. A mesa de material igual. Duas
mulheres, duas irmãs. Responsáveis pela roulotte na esquina instável do pó. No
chão, antes da lama se a água não tiver outro caminho onde ir. Pranto por
extenso. Pelas vielas rebentam as águas á mãe, ouvem-se gritos de Kianda. Louca.
Exausta. De ser também o mar que vem dar água á boca dos mortos prévios, no
firme da terra. Ainda um movimento. Assim não. Que o relógio não suporta tanto
ponteiro, tanta corda. Alguns palmos parados ao mesmo tempo. Chão em profundidade.
Na banda a rotunda é cemitério. A verdade ao lado do cemitério, no Camama. Marca 23h30.
Um
dia antes, vou pela estrada. Aos repentes. Reduzo, de súbito, a marcha à
viatura. Imobilizo-me. Sigo uma marcha fúnebre. Komba aos corpos mortos que dançam
atrás da carrinha de caixa aberta com mortos sobreviventes. Têm roupa com
bolsos, para aí guardarem a ferramenta das refeições sem lugar a uma hora. Insisto.
Satisfazer. Necessidades. Capitais. No tempo de respirar, foder. Vazios em que
insisto. No tempo de respirar, beber. Em tudo exagero. Tremoços. Heroína.
Mil-folhas. Álcool. Não consigo parar. Sou adição, engulo de tudo. A vida útil
de um tambor de máquina de lavar roupa. Os molares soltos da alma em escorbuto.
Foder. Beber. Beber devagar é poesia. Tudo na mesma primeira pessoa.
«Vamos
só se dar, ya?», cuspo a uma das mulheres da roulotte. Tinha acabado de chegar.
Sentei-me a uma mesa, a ouvir uma conversa com sotaque português do Brasil. O sujeito já lá estava. Estávamos os
dois bêbados. Conversava ele com a outra das mulheres. Um olhar cruzado. Os
olhos dele nos meus. Encravados. Sorri para ele. «Você tá me fatigar», atirou-me
da sua mesa. Levanta-se. Depois de me ter atirado com a garrafa de cerveja que
tinha em mãos. Toma a minha direcção. Um punho seu acerta de raspão no meu
rosto. Levanto-me. Arrasto ligeiro o meu corpo pesado. No encontro com o outro
solto uma gargalhada nervosa. Neste momento sou esmurrado, os óculos são desviados
do nariz. Ouço perfeito o quebrar do plástico. Fodasse. Desfiro um golpe no
ombro do sujeito. Não tenho paciência para mais. Esta luta ia ser perda de
tempo. Não teria o imediato de um relâmpago simultâneo ao trovão. Não. Teria
sim o nariz despedaçado, um couro cabeludo retalhado. Demasiado tempo. A minha
raiva, um nevoeiro. Em que me encerro e aí me abandono. Onde não vejo os sinos
que ouço. Sei que são os barcos no meio do rio Tejo que eles procuram. Onde,
não vejo. Dos sinos fico a saber para onde vão as margens, se sono ou
melancolia. O acento das coisas de nós. Existem regras, para as coisas de nós. É
um jogo. Sem regras, é um jogo com mais de um jogador. É um jogo difícil, ganhar
mal e bem. Uma fronteira facilmente transparente. Atravesso. Matéria de facto indefinível.
Para o lugar internacional dos bichos. Ar de ameaça. Som de urros, de uma calma
desapaixonada. Vejo mal em frente, a dioptria incorrigível. A cara do sujeito
que me transforma a paisagem do rosto. Nos arredores, este sujeito. Um sinal com
corpo. Esqueço-me da pontuação nas frases, palavra. Palavra que ali não quero
indisposta, se a si encontra uma posição diferente. Em uma outra frase, tenho o
jipe estacionado perto. Enquanto decido. Não é bem isto decidir, é reacção. Abandono
a luta, de acordo. Unilateral. Quero ser a pele da mão, rápido. Se me
estremecem os tendões, quando se alteram as chaves na ignição, as poucas
posições erradas. O motor fala. Confirma a máquina. Acelero-o simultâneo ao meu
coração. A embraiagem, um elevador em desvario. Para cima. Para baixo. Para cima
daquele filho da puta brasileiro. Ainda guardo este som na minha cabeça. A voz do
sujeito a insultar-me. A mim. À raça dos portugueses que o pariram. Não importa.
Já nada importa de facto. Uma manhã. Um sorriso. Uma canção. Um néon berrante. Umas
fodas. Não importa o quê. Que se respire em pleno. Vou na direcção do sujeito,
para a sua distorção de contorno. Uma pessoa. Será? O que distingo depois de uma
poça de água estagnada, ao eixo do meu trilho. Observo-o tenso pelos tons, em
segundos, sombreados. Terrorismo instantâneo. A minha reacção. Esta, imperceptível
á luz de todos os códigos de parentesco com controlo. O que se intui. Infinito
aterrador sobre o que se vê e não flutua. Não foi por ideal algum que seja, não
tenho melhor partido nem deus, os políticos são tantos, meu deus, nem clube por
onde jogar. Tenho sim mau perder, uma calma que é dos loucos. Assim penso em
segundos. Um momento. À justa, o sujeito se atira para cima do conjunto de
mesas e cadeiras. Não me consigo desviar do conjunto. Não acerto no sujeito.
Importo-me com o alvo que falho. Sim. Não o atropelei, mas levo o que sobra á
sua volta á frente da máquina. Fogo-de-artifício. Para os olhos se esquecerem
dos arrependimentos. Vindouros os suores, por qualquer coisa em que embato. São
pequenos pilares. O ferro que sustenta a cobertura desta construção sensível. Hora
material, carne dos outros. «Me não sinto melhor», digo á boca. Pilares de
ferro ligados por improviso. Os rostos das mulheres têm o contorno do terror, em
silêncio de lábios. Onde leio gritos. Engato, febril, a marcha atrás da repetição.
Caralho, que falho novamente. Não sei se satisfeito ou infeliz. Acredito hoje que
satisfeito. Já agora, acabo com isto. Um jogo de bowling. Uma série de pinos
alinhados ao fundo. Assim se deviam equilibrar, tombados. Isto não é o fim, é
apenas destruição. Acelero para o lado de fora, outro lugar. Vejo pouco a partir
das bermas, os óculos caíram-se-me do rosto para o chão da viatura. O que
interessa é sair daqui para fora. Conduzo a máquina, tresloucado, mal morto
pelos horizontes retrovisores. Dos espelhos, esquerda. Dos espelhos, direita. Espero
alguém, uma visita. Alguém me persegue? Nem sirenes perguntam por mim. Prisma.
A
designação genérica das doenças mentais torcidas em feixes, o que de mim se
decompõe em luz tardia, pela confusão do trânsito. Mais á frente o Projecto
Nova Vida. Àquela hora da noite, as
vias de circulação interna sempre na incapacidade máxima. Amálgama de detritos
fantasmas, lavados pela corrente de ferro retorcido da manhã seguinte. Insano.
O dia perfeito, quando a pele se traumatiza de matéria sifilítica, latex
coagulado. Extremidades. Pneus. Tumores embraiados. Vou na direcção da Gamek.
Movimento abortado. Encosto á berma, infectado de transpiração. Tremo bastante.
As pernas desobedecem. Dentro de pouco tempo terei de falar. Da loucura que em
mim se instala, lacónica. A voz que o diz. Onde vais? Quero apenas chegar ao
Projecto Nova Vida. Uma casa onde vivo, não a sinto como minha. É um quarto. E
espaços. Comuns a outros colegas, com quem nada tenho em comum. Senão a
garrafa. Sair da rua, depressa. Que me engolem, a partir do possível de um par
de olhos. Alguém viu? Aquilo de catástrofe, um grau elevado. Fico sóbrio. Tenho
de telefonar ao responsável pelo sector dos transportes da empresa onde presto
serviço. Corrijo: prestava. Tão ridículo me parece tudo isto. De inexplicável.
Vou dizer que estacionei mal a viatura, alguém me bateu e não vi. Estou fodido.
Esclareço: estou fodido. Para o de mim que ainda duvida. Quando chego a casa,
estaciono o jipe. No quintal. Junto á porta de acesso á cozinha, estão todos em
excomunhão de horas. Refeição. Copos de tudo. Gargalhada fácil. No quintal. As
suas viaturas estacionadas no mesmo hábito. Saio do jipe. Este, imobilizado, em
pranto de matéria dilacerada. Ouço a confusão que se diminui, em espessura, de
estridência pela frincha da porta fechada. À noite da casa, os sons densos. O
que pouco me ocupa, enquanto observo a minha escultura. Uma obra em que
interferi, sôfrego. Simples vingança, em material de impressão. Depressão analógica.
A minha fenda, absolutamente em profundidade. Se me explico, tanto pior. Observo
o jipe em ferida, um lamento localizado no capô. Este quase desapareceu. O
radiador é um pulmão apertado. Alteração pelo corpo? Acidente vascular
cerebral. A compactação do sonho contado por passos. Pensar sem maldade: «o dia
acaba.». Amanhã será pior. Agora vou beber, não sei quando volto. Se volto. Se falho
algum telhado descabido na inclinação. Tenho de fazer um telefonema. Comunicar.
O acidente, já alguém o disse. Eles sabem. Desde que chegaste. Às horas certas, um
voto de confiança. O currículo não era mau, assim bastou. Um telefonema. Nem o
vi, não o conheço. Só de um nome, o homem dos Recursos Humanos em Portugal. Um
telefonema. Bastou. Aqui tens um bilhete de avião. Podes ir. Mais nada havia a
fazer. Saía de uma depressão, outra procurava.
Canto:
«…vou sorrir para não chorar, mais um dia na minha vida, vou cantar para não
lembrar as malambas desta vida…»
Tragicamente
amanhece. E não devia. Assim para uns olhos, sem filtro, a intensidade das
arestas. De exuberante geometria, os lugares da luz. Esboça-se, cénica, a
formalidade.
De
um barco sem remos, a narração do passado. Foram os remos substituídos por um
final de noite. Copos estilhaçados nas margens do rio Judeu, longe daqui. No Seixal,
um remo. Outro, em outra margem. Assim como as pernas, indecisas de um corpo. O
barco abandonado, em separado. Por mim, pelo grupo. Éramos cinco, todos bêbados.
Insensíveis á água, que nos agarrava pela cintura. A quietação severa da manhã,
uma substância gorda que enleia nos cabelos a desordem ruidosa dos pássaros. Por
mais que digam eles, não façam barulho. Portugueses, na recordação que tenho
deles. As suas asas, uma bandeira. Se se veste assim, um sujeito. Corda curta
por norma. Atordoado na cabeça, marcante um tambor. Desliga-se.
Uma
das moças aparece á porta da sala, vinda da cozinha. Veste um avental por cima
da roupa da semana. Um sorriso. É-se habitualmente informal. Lá na banda. Um
sorriso. Para tudo sorrisos. Uma desgraça os sorrisos. O que são, forçados pelo
garfo que se embrenha na carne do outro. Um sorriso. Pergunta a moça se pode,
se não incomoda. Quer sentar no sofá, para ver a telenovela. Eu digo que pode.
Disse outras coisas que não se ouviram. Disse mata. Disse esfola. Tudo na mesma
frase. Ávido. Da carne, digo suculenta. Refeição para o corpo. A alma em perfil
rígido, muscular desnorte. Frémito. A culpa que nunca existe, enquanto se diz
cobras de um Deus desordeiro. Se o desentende, convergente. A turfa moldada de
hipóteses, por besouros céleres. O que em nós demora a despir. Digo roupas,
próximo da estação do frio. Sou a palavra que a ela digo. Um sorriso. Quando
está tudo fechado, fora de horas. Um sorriso. Distensão da pedra gelada,
disposta por mim em tudo. Altero o canal da televisão, enquanto a moça se senta.
Tangente próxima, à qual exalo uma geometria de predação. Precisamente. A moça
no sofá, disposta na perpendicular á avenida que começa nos meus pés descalços.
Sem propósito, assim ténue, suspiro á alma. Assim me manifesto. Toco-me. Pelo
começo a mão direita. Uma vez, outra, interior. À queima-roupa, ordinariamente,
roupa interior. Confortavelmente acessível por todo o lado. Assim me trato por
tu, numa carícia. O pénis em extensão elaborada do desejo, um animal alterado
em diversos sentidos. A contramão pelo mamilo esquerdo. Reina a sensibilidade,
que é saliente. A moça entende, do que resta do seu campo de visão,
desviando-se do aparelho em transmissão. Neurose adolescente, hiperbolizada por
gestos. Adentro por este espaço, enquanto podem. Distracção prestidigitadora, a
que me proponho com resultados instáveis. Carácter experimentador. Que se não
encontra em um só adereço. A moça volta, ligeiramente, o rosto. Assim. Entende
o que faço. Assim. Muda as suas mãos de lugar. O nervosismo será ainda um leve
desconforto. Apesar do hábito se assemelhar a uma cor que não existe, senão na
melancolia de um motor de explosão. Em abstracto, uma pintura de nódulos no tom
das pérolas. Que bem ficam num pescoço separado do corpo. Um fio rudemente
esticado, num lugar desconhecido da estrada longínqua. Indiferente á transparência,
uma radiografia exposta à linguagem. Credo. Da pornografia, boa etiqueta. De
maneiras que disponho o pénis. Movimento de mãos. Desloco o que outros vêem, para
os meus olhos. Masturbo-me. A disfunção é contrária à natureza do bicho, que
tudo assume como natural. Para as suas mandíbulas, recordações de esquadrias
impossíveis, três terços de corpo. Estilizados aromas de cona. Não existem
roupas ou esquinas suficientes, para onde a mão se ir esconder. Ali está
exposta, a céu nuclearmente aberto pelo corpo. A moça aproxima-se, num mínimo de
rosto, desviando-se dos diálogos transmitidos em português do Brasil. Em
aflição a moça. Nas suas costas, o pano que ainda não desceu. Tambores
intransigentes pedem bocas escancaradas. Seguem-se os gritos. Desvairados da
devassidão. A audiência de quantos contornos, exige sémen. Do meu orgasmo, projecta-se
uma mancha pelo tapete em tons de usado. Sémen adulterado pelos açúcares
naturalmente adicionados pela boca. Alguém que interprete este Rorschach efémero.
Não há tempo. A moça, estupefacta. Inscreve-me num lugar e tempo pouco
visitados por ela. Onde há um familiar morto, à distância da memória. Uma
violação que acontece numa idade de sonho. Desfeita pelo corpo de outro
estranho, em câmara lenta. Descende de um plano sem sinais de alteração. Da
boca da moça não vem uma repreensão, se a existe, a guardou, misturada nos
créditos finais da telenovela que agora acaba. Transmite-se: o que aconteceu é
real.
Volto
para a cozinha. Fluidez trôpega. Abro a porta do frigorífico. Vários nomes,
numa língua destilada, são apontados pelas superfícies de vidro. Verto o
líquido que daí sobra, para o meu poço permeável. O copo cada vez mais meio,
anulando-me como o elemento mais instável da tabela periódica. Observo os nomes
pela lente. As garrafas mal se sustêm, esvaziadas de sentido. Prendo o umbigo a
um pilar da realidade, a catástrofe no corpo para aqui vai, pouco obedece,
imperfeita. Como se vê. Emparelhado a um diálogo, a palavra espontânea.
Utilizo-a exausta, por este texto, expelida aos vossos olhos. Inertes
esquecidos do seu volume abrasivo, as palavras emigram, encontrando lugares
novos, espaços de construção de raiz, expurgadas do seu oxigénio original. À
boca de cada um, como as dizemos excessivas, numa forma provisória. De ocos a
marga mal amassada, no princípio de uma figura. Paredes espessas, técnica
imprópria, para dedos magros. Na superfície de um espaço devoluto, onde
pernoitam os meus fantasmas preocupados. A sombra que agora projecto, depois
dos braços, sem morada. Para aí vou raramente, para ser astro. Inclinado grau
de cobertura, o que faço à sorte. Pelo corredor, recordo-me. Ia na direcção da
sala, o semblante aos tropeções. Tímido pervertido. O comportamento que escorre,
ansioso, pelo meu corpo a olhar o corpo da mulata. Um continente, para o qual
desloco a massa da minha tormenta. Ela se desvia meteorologicamente, pelo que
se anuncia de tempestade. Desta se abriga, não quer problemas. Quem os quer de
facto, esquece-se. Provêm do inferior das pedras. Assim. Lacraus velozes, peças
afiadas, no lugar que ocupam no tabuleiro da narrativa. Em reacção a
personagens, às quais não reconheço o corpo pelo nome. Reis equatoriais,
deslocados das suas ameias de pano. Cavalos com freio descosido pelos dentes, avariados,
resfolegam por entre eles a minha loucura. Captado pelos tímpanos, muitos peões.
Pelos passos, damas sincronizadas. Ameaçam-me duas moças. Gritam pelos
vigilantes. Apareceram rápido, enquanto lhes suporto o tom agudo. Observo-me
por fora. Entendo-me. Ao alcance a faca, de trinchar, esquecida no móvel de
gavetas da cozinha. Não havia mais comprida. Não sei se o gume melhor. O inverso
de um homem na mão aberta. Haverá dele o que existir? Por existir? O corpo,
como se repete. Às avessas. Patologia, ou outra que seja. Com o gume da faca,
copio o desenho das moças pelo picotado dos seus rostos, à pouca distância. Uma
acção simplesmente imprevista, por parte deste que vos fala. Não é perdão o que
procuro, entredentes, diz o narrador na primeira pessoa confusa. Munição
humanizada. Derme habituada aos dias feridos. O corpo num ponto febril de
orvalho. A passagem à descrição de outros céus, a metáfora de um sistema a ar,
abandonado à pressa. A última refeição, rejeitada. As vozes são o pior, antes
de serem impossíveis. Na descrição ínfima, o silêncio brusco. Os vigilantes aparecem
em número de dois. Reconheço-os. Chipala igual a máscara. Aparece um outro. Desconheço.
Terá sido convidado? Um deles tenta demover o que tenho em mim de bicho, pela
voz. Conhece ele de sobejo os animais, da infância na província. Não os irmãos,
o pai, a mãe, todos esvaziados do sangue partilhado, em simultâneo, pela terra. À
mesma hora. Lembrou-se assim um dispositivo, armadilhado de franqueza. Um dos
vigilantes, fatigado com o pula, que é quisto que se não deseja nem ao primo. No
seu lugar de origem, uma afronta. Aproximo a faca, pela mão que ousa afiar seu
gume à pele desse wi. Dele mesmo vem a coronha da AK quarenta e sete, com
efeito. No meu rosto, o estilhaço de vidros. O meu par de óculos se espalha,
assim como eu, pelo chão. Não demoro. Cambaleio até deixar de me ouvir, a mim,
nas palavras que atiro como pedras, que arranco de memória à calçada da rua
Augusta em Lisboa. Percorro um traço curto de rua, entrando por uma porta de uma
pastelaria, neste Projecto Nova Vida, copiada à vista a partir das viagens a
Portugal. Peço uma porção de gin. Tenho tempo. Como habitualmente, duplo. Não
tenho tempo. A meio de um pensamento, sou interrompido pela hesitação da
empregada do balcão, que não tem um verbo que lhe escorra, pesado, da boca para
o pé. Um olhar de dentes, em branco encerrados, pela imagem que é engolida à
força, inteira, por mastigar. Que mal faz, por todos os poros. Entra um polícia.
Equilibro um sorriso, a toda a largura do espaço. Consoante o ponto de fuga. O
polícia procura por mim, traz debaixo do braço o seu livro de leis universais.
Já o esperava. Espaço em branco. Entra outro polícia. Ambos impecáveis na
ocorrência. Partilham entre si, uma educadíssima discriminação positiva, o peso
morto dos meus braços. Bem preciso. Onde vamos? – Pergunto ao gelo. Todos os
ajustes de tempo, pela minha pele em diapasão, perguntam – onde vamos? Não
respondem. Chegamos à viatura. Falo eu. Assim foi, o tempo todo da viagem até à
esquadra. Um interrogatório informal. – Como então você? A atormentar as pobres
das moças. Você mesmo não tem namorada? – Perguntam. Tenho. Também o passaporte,
preenchido com os vistos de entrada em outros países, dos quais desisti à
última hora. Da vida, nada. Retroversão pelas laterais, do que não sou e sei. De
uma parede intransponível, a alteração. Nomes que evito, extensos de injúria. Liturgias
de alfaiate, as peças suficientes. Não prestei atenção ao caminho, ocupado que
vinha a ofender os polícias. Estacionam a viatura, comigo em humores. Pilha de
polaridades. Anseio pela fractura dos ossos, malembe, um por um, do corpo. Peço-vos.
Transformem o meu dia. Peço-vos. Perdi-me, estou bem. Estarei tanto melhor,
enquanto continue a existir álcool no sangue. Pinga de verdade. «Me não
recordo.», comentei. Interrompe-se o bicho – acossado, dilacera pelos pulsos a
sua raiva. O meu presente.
Imagens
que rasteiram, inquietantes, os tornozelos distraídos da figura do corpo. A
faixa mutilada, de um disco, pela agulha que se arrepende, a meio, da operação
de sutura parcial por sons côncavos. Aleatório pensamento, que se celebra com o
canto distante de um pássaro de imbondeiro. Sem voz, acordo.
Para
este momento, a dissonância metálica da porta da prisão que se encerra nas
minhas costas. O polícia, a medo, empurra o ar viciado que paira sobre este
aterro construído de divisões em alvenaria, com o meu corpo. Assegura-se que
respiro. A escória derivada da fusão da urbe, combinada com oxigénio. Se acende
um princípio de olhos. O contrário das arestas, que desenho aceleradas por um
papel de confissão. Entredentes a minha vida, um quarto dos fundos. Entretenho
os polícias, como a excepção deste dia. Um pula, em que tropeçaram. Não é
comum, acontece. Uma vez por cada um que enlouquece. Mata ou cospe veneno a
cobra cuspideira. A única fauna que vi perto. «Vem só», suspirava na minha direcção,
«Vem». Um dedo sangra à noite. A ferida, vedada ao corpo esférico de uma
palavra. Pelo agora, instantes: duas celas, um corredor, uma latrina. Com
poucas janelas, a arquitectura do isolamento. Assim se projecta um corredor. «Aiuê!».
Ouço hienas, próximas. Do lado direito uma parede pela qual inscrições de nomes
por extenso, erros ortográficos sem importância. Por quem gritar numa noite de
insónia. Alguns olhos se entendem longitudinais, acima dos ferros. Crocodilos
vitrificados, ao fundo do corredor. À direita. Uma cela com população densa, um
regime ditatorial. Subempreiteiro do sistema principal. Um soba com implantes
de nuvens carregadas nos olhos. O sangue com que sonha, seca o motivo dos
corpos. Porque não dançam eles prostrados? Num tom carmim acaba aqui o
corredor. Na parede fronteira ao pátio da esquadra, uma janela. Revindo, da
entrada à esquerda se encontra a cela onde permaneci um infinito de vinte e
quatro horas. Já faltaram mais. Na manhã seguinte, a sede. Bebi da água
disponível, a partir dos outros em garrafões de plástico. Não fiquei doente,
uma sorte que guardo. Assim como guardo a muralha de gritos dos prisioneiros
novatos. Lhes acompanhei a praxe. Instantaneamente putas. Para a limpeza dos
lugares de dormir. No chão, o breu dos outros mais escuros que eu. Fobados da
curiosidade que os alimenta, quando se aqui entra empurrado. O modo de alerta
se activa. Algoritmo da redenção. Geral. Decido à queima-roupa que nada tenho a
perder. Assim. Tenho, mas não o digo aos outros. Nunca digo. Sou este lençol de
possível branco ser rasgado, do umbigo para a periferia. Do abismo falo,
cronometrado, o suficiente para retardar uma resposta. Por este grupo espalho o
desafio, em febre, um por um nos olhos. Penso «não vou conseguir!». Penso «mas
vou morrer a pensar». Penso num animal com mel no pêlo. Um cão tresmalhado da
sua serra. Perdeu-se a si, mas não ao instinto. Haja saliva, para as feridas
lambidas de violência. Um hábito que não dispo, mas não é religião. Um por um
nos olhos, a degradação de cargas. Calculo o peso de quem manda, neste avesso
do mundo. E esta não é a prisão pior. Não exagerando, digo péssimo. «Filho da
puta doente que sou», engulo. Há muito que o sei. A cela é uma casa sem chaves,
algumas dimensões. Duas divisões comuns onde poucos dormem. Por olhos de vidro,
este material perfeito para contar as secreções do corpo. Não se lhes vê a
alma. «Esses wi bazaram, eles mesmo, só já ali no quê buscar um coiso». Eu
espero. Buscar o princípio à corda do autoclismo, para a forca. A vontade para
a sanita. À noite do estômago, as estrelas aliviadas na sua cadência. A
hierarquia de um céu – como se comporta em espaços fechados? Um patrão soturno
usa óculos escuros que nos protegem das suas imagens do purgatório. De nós,
diáfanos homens sem ramos. O patrão que manda no meu rectângulo é brando no
contorno, assim como é o gume de uma faca que desenha a curva de um osso. Uma
malha caída da rede. Fala o francês. Do Norte, um mar certo de fígados, armas,
escravos entre países que falam de sangue. Que nada vale o sangue depois de
vertido do outro. Num tom pardo, me permitiu no seu espaço. Tive de me
aproximar da esquina, na sombra perguntar por ele. Quando tirou os óculos, se
traçaram representações claro-escuro de um ritual. Em transe o animal de falas,
regado com gasolina de avião. O último sopro é seu vento de limalhas. De ferro.
Um brilho que sobreviverá aos meus olhos. Um psicopata africano. Cada
continente tem um plural. A nascer da sua boca, ouvi «o que precisares de
cigarros fala só». O que não ouvi não foi preciso «é bué de kumbu». A todos custa. Do outro patrão, o mais cordial «não tem makas». Interrogatório
informal. Pergunta por expatriados, alguém branco. Uma morada transponível. O
dinheiro possível de um lugar. Alguém a quem enganar pelo coração. Tropas
inacreditáveis no peito, infiéis universais. Consumível do dia seguinte, a
razão. De morrer pela condição meteorologicamente desfavorável. Um azedume por
ninguém. Exibo tensas as tatuagens do meu braço, a sua sombra quebrada,
projectada de pigmento. À conversa somos melhores, ao mesmo tempo somos
curiosos. Quem eu sou se pergunta pelo corredor. Digo - Sou monocórdico bicho
de sentimentos. Por garras encurraladas, entenda-se pavão gestual. Desperdício
de unhas. Transmissão com cortes. Uma disputa de galos. A impressão do outro,
estrangeiro em tudo. Fala-se de matéria consumada. De drogas consumidas. Se
tenta adivinhar o crime cometido pelos rostos, seus socalcos se desenham de
eczemas, cicatrizes, crostas pontuais. Um negativo de vão, tosco coração que se
reveste à vista das estações. Um ano magro de pássaros, estes passageiros
absolutos da tempestade. As olheiras, um nível de água das cheias passadas. No
leito do dorso. Afogamento. Inodoro esqueleto, fragmentado pelas margens.
Espaços de pé substituídos por imersões em diálogos só com meio. Resta o livre
arbítrio da interpretação, entre pares, do início do final. Do que quero aqui
dizer, com este corpo por metade, se esquece um Deus corcunda paralelo às veias
subterrâneas. Motivo-me de tinta definitiva, que me deforma o aceno de proximidade.
Antes um Diabo sazonal, aparição, reduzido a dente no canto da boca. Do nevoeiro,
a melancolia do unicórnio, asas vastas que afastam o vento e os outros lugares.
Das nuvens lisas, a voragem da pele peregrina, no seu outro céu de separação. As
coisas próximas à paciência de um elefante. A pedra na mão, um gesto de
imortalidade. Caduca uma folha que cai branca, em uma pilha de destroços sem
relatos. De indução sou. Da consciente alteração do pensamento linear, por
defeito, sou. Sou das rotinas. A isso bebo, e não posso. Não pela capacidade
aditiva da substância, também isso, mas para cumprir um pathos. Umbilical
prescrição do universo. «Tá bala», penso. Ente isolado se confronta entre o mal
que deseja e o bem que nunca chega a ser um lugar. Coito interrompido, por
baldes de água. Cães afónicos. Sotaques da loucura. O que resta, como
impertinência da alma que insiste ser outro corpo, paralelo à vida que
despreza. A raiz extraída do primeiro número que a boca disse. Descair para o centro
do sonho. No mundo onde desisto – alegria em grilhetas – a insanidade é uma
bênção. «Tá bater», dizem. «Meu muxima», dizem também. Das tripas da vida digo eu
coração. O sonho construído de constrangimento. Trânsito infernal. A alma se
edifica em altura, a partir das artérias da cidade. Do corpo. Semáforos de
vidro. Os olhos. Aos olhos. Era segunda-feira.
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