Pessoas
paredes escadas céu, espaços fechados e horizontes curtos numa só frase.
Dialectos que se me soltam da língua, esta prancha de saltos onde me abandono
aos ventos, metade de mim largado no instável do mundo (oscilam brandos os
ossos), outra metade peito aberto, para o abismo que nos liberta de tudo o resto.
Estalidos que não reconheço, música acentuada onde tem de ser pela boca. Sons
vindos de uma esquina móvel mar, não estou certo de estar completo numa figura.
Sobressai a cabeça em alçado lateral contorno da orelha, movimentos de rosto
acima da boca que se não vê, a imprimir de veracidade o que se encontra no
verso do que ouço. Saem as palavras, a cabeça oscila no sentido do vidro que
separa este agora de todos os outros em movimento lá fora, onde poucos juncos
fazem vénias à passagem desta composição. Existem poucos silêncios assim, entre
as palavras, letra repetida até que exausta, imediatamente anterior à surpresa
de reconhecer uma frase inteira «…é assim!» e foi o que se ouviu. Ou me
pareceu. Por debaixo do fim à cadeira, uma, onde alguém está, um par de pés
quietos e que pouco têm eles a ver com o que se passa mais acima. Uma pausa a
que tiver de ser assim parece, enquanto não são eles, pés, chamados para dançar
a valsa do caminho, esse desconhecido no quarto do lado, entendido em lençóis
de águas tensas (e pássaros em colisão). É o que fica quando me calo. Entre o
indicador e o polegar outra conversa de pássaros, pelo gume das unhas a
pergunta à pele por superfícies de sentir, um deles ganha no gesto, permanecendo
assim imóvel num tempo sobre o corpo cansado do oponente. Visto de costas, uso
cabelo curto em tons de cinzento, um casaco que me cobre o corpo nesse lado
dois troços de pernas na cor da pele como é, os pés sem espaço entre eles
unidos um ao outro e ao chão a que, agora, pertencem sem tamanho. Um volume de
formas, dobradas em cilindro, me ocupa as mãos enquanto vou perguntando, um a
um, àqueles ali parados. Não me demoro naquilo que digo e quase não me
respondem. Dou a mão a uma criança, outra, os dois parados em pé e de frente,
por detrás de outra coisa que acontece no meio de nós. Desaparecemos. Componho
o casaco, confirmo os dentes no seu lugar. Apanho a muita bagagem espalhada em
volta, prendo-a aos lugares do corpo enquanto haver. A tiracolo à cintura nas
costas, na mão que sobra. Um dedo de conversa o olhar cortado, um dedo de álcool
no fundo do copo. Caminho em linha recta uma faixa em outra cor, por cima de
pregos derretidos em formas redondas, afastados entre si um espaço igual ao que
significam, linguagem para invisuais. Tenho asas um pescoço dúctil uma boca em
osso que alcança, facilmente, o fim ao corpo. Levo a fotografia de uma família que
não conheço numa mão, na outra uma edição do Borda d'Água, que estendo a quem
está senão eu, que digo não com a cabeça. A minha pele tem outra cor que não a
habitual, seguro a roupa junto ao pescoço está frio e tossem à volta. Serve um
anel de ouro dedo sim dedo não. Imobilizo-me numa posição de modelar, a partir
de aí as pernas desenham aspas na direcção que apontam. Esvoaço entre perfis
metálicos, por vezes subo ao telhado, quando quero finjo-me de coxo. Habito uma
arquitectura fantasma, um piso inteiro de lojas fechadas, onde ainda há pouco
se misturavam cheiros de comidas diferentes. Tem vários acessos, as portas
ainda dão para a rua, mas aqui já não se compra ou vende nada. Sobram os nomes
do que isto foi, esticados pelas lonas que encerram cada fracção de coisa nenhuma.
Espaço aberto a quem queira, é assim possível de ser visitado, um memorial à
ganância e ao custo errado das coisas que, devagar, apodrecem. Bateria de mesas
e cadeiras, geometricamente dispostas, quase todas vazias a esta hora. Além, um
casal de velhos fala entre si num tom moderado, sílabas só deles como cães de
casa enroscados nas suas lãs. Pelo tornozelo ouvem-se passos, alguma coisa ou
alguém, que se aventuram a atravessar este silêncio com os seus barulhos. O que
é, dirige-se a uma das portas, a giratória, por momentos estanca o movimento
que se esvai por si. Abre uma coisa sua, e separa as coisas que não interessam.
É quando encontra um guarda-chuva. A noite vai chegando, abraça a rua, não há
nuvens que a contrariem. São frias as luzes que se acendem por aí. Alguém que
tropeça no conjunto, olhando em volta para os que quase não existem. Aqui,
esteja quem estiver, todos olham ninguém diz nada – o que haveria para dizer,
assim tão rápido? Uma mulher sem rosto, ocupa a última das mesas antes da
fachada de vidro que nada esconde do que não acontece lá fora, excepto a chuva
que atrasada vem, se inclina sobre a mesa e assim se deixa. Mesa posta com um mínimo
de comodidades, um estojo com várias canetas de outras tantas cores. A mulher
sem rosto, risca uma folha vincando o sobrolho, esgares só dela, e fala
baixinho para ela mesma. Apenas isto. «…Não te lembras do nome dele, não?». Espermatozóides
desenhados no vidro pela chuva, mal se aguentam numa forma antes de atingirem a
mediana da diagonal, onde se desintegram, dando lugar a outros nesta corrida
sem meta. Na rua, numa estação intermédia, abrigam-se crianças junto dos
troncos quentes das árvores dos seus protectores. Das copas aos seus corpos descem
ramos mecânicos, procurando as suas mãos molhadas de infância espantada pelos
elementos. Mudam de sentido. Noutra hora entro pela porta dos segundos,
empunhando a espada de lona que serviu para me proteger da carga de água que
cai em exércitos, pelo chão que continua lá fora. Sacudo os últimos pingos
deste sangue transparente. Tenho dificuldade em escolher o meu lugar, permaneço
de pé. Atrai-me mais este espaço pela sua arquitectura imensa, desabitada, do
que pela parte rejeitada pelos outros. Contradições. E mais não digo deste
imenso corredor de passagem. As luzes baixas e o mobiliário excedente. Serve à
justa para o acontecimento dos transeuntes que pretendem vencer o desnível da
rua, entre um quarteirão e outro. O calçado de quem aqui entra percute o chão
de pedra, e se libertam sussurros de gente confundida com o mecanismo da porta
automática, óleo que escorre pelo interior dos seus caixilhos, derramado aqui e
ali pelas bocas tapadas pela mão que não vai a tempo. Um bando de gente
exótica, todos vestidos da cabeça aos pés, dá por finda a reunião com o assunto
que para aqui os arrastou, ainda quente em cima da mesa. Os pares entendem-se e
assim se desejam uns aos outros continuação, depois de confirmarem para efeitos
de memória futura o que precisam, traduzido para um número. O coaxar da
borracha de uma sola atravessa o espaço, degradando-se lentamente de intenso a
moderado nada. A mulher sem rosto, repete a presença pois este é outro dia. Escolheu
a mesma mesa com vista para a rua e vão dos dias dois, noves (passo a contar
pessoas a partir de agora) fora nada. Admiro-a assim como à mancha que é meu
corpo, transmitida no ecrã de um bloco enorme, de vidro recortado em painéis,
em frente do qual cedi e me sentei. À esquerda a rua e um comboio que chega. Alimenta-se
esta mulher sei lá eu com o quê, se de paisagem corpos em movimento ou
naturezas-mortas. Utiliza para tal uma colher que para tudo dará, enquanto
desnivela um recipiente para encaminhar até si um líquido à boca, e absorve-o
em pequena porção. Termina a refeição, transporta um papel pela boca da
esquerda para a direita, enruga os olhos em simultâneo ao movimento de lábios,
dos quais utiliza o avesso para lavar os dentes. Engenhoso, como poderia ser
outra coisa qualquer. Levanta-se, dirige-se ao caixote do lixo mais próximo,
deposita aí os seus restos e volta para o seu lugar. Senta-se tesa no seu
espaldar de resina, retira de uma pasta umas quantas folhas, o mesmo estojo
repleto de canetas disposto longitudinalmente no sentido da dimensão igual da
mesa quadrada, em uma das laterais a poucos centímetros do limite direito. Revolvem
suas mãos o interior do estojo, em movimentos de perícia cirúrgica, parecendo
ter medo de atingir veia ou nervo, dentro daquela ferida incisão de feltro. Levita
e se interrompe algures, à pedra volta estátua ao poeta desconhecido, uma das canetas
levantada do seu papel. Tudo muito normal, não vendo eu motivo de me demorar
mais por aqui. Pouca visibilidade, os pontos de luz limitados à cor necessária
para evitar encontros com a parede. O sinal luminoso que aponta a saída de emergência,
se existir um plano e tempo para o executar. De resto, tudo na mesma. A mulher
sem rosto hoje não se encontra, e que falta faz a este espaço, humanizando-o. O
casal de velhos que ontem aqui não estava, estão sentados também na mesma mesa
de antes. Continuam a falar de uma forma quase imperceptível. Estarão estas
personagens coordenadas, intercalando-se pelos dias? Hoje venho eu, amanhã vêm vocês
ou o contrário. Eu cá estou todos os dias, não me importo por aí além. Os faróis
dos veículos lá fora se projectam pelos azulejos que forram os pilares onde
assenta a linha do comboio, assim anunciam a chapa do seu contorno. Começa a
ser noite outra vez, trazem todas as luzes acesas se não me escapa alguma. Hoje
não sinto nada de especial, já disse quase tudo a quem tinha de o dizer e irei dormir
descansado. Um avião entretanto, desacelera os seus motores na aproximação à
pista desta cidade e, por momentos, se sobrepõe à música de corredor que sai,
lá muito ao longe acima das nossas cabeças, a espaços pelas inserções no
tecto-falso. Melodias esquecíveis (que trabalho deverá dar a compor esta música
sem emoção. E pulso). Uma linha de luzes brancas, a tracejado, indica o caminho
às formigas. Sei que chove porque olho para o chão e me apercebo da água
alterada pelas poças onde se esticavam, sem vincos, seus lençóis. Um chapéu-de-chuva
aberto, aparentemente em bom estado, aguarda que diabo ou vento o carregue.
Parece partida. Olho para um céu que não existe, dele a chuva cai, e vou
embora. Desconfiado. Chovem dilúvios. Convenhamos. Tudo é lugar para estar e
desaparecer, uma língua à qual se vê a ponta bifurcada para os nenhures possíveis
de existir, falados à boca pequena, pequenas interjeições, saliva vertida no cimento,
tudo muito junto a fazer presa – apressem-se a inscrever nele o vosso nome ou
esqueleto, se não coincidirem. Daqui a nada – é pedir pouco – mais ou menos
curado de todas as águas que por ele escorrem, sigo eu as suas correntes por
onde vão, digo adeus às margens e a quem lá não estiver. Medusas velhas, de
plástico, desenham um bailado brusco e lateral às veias de perfil metálico
quando, preciso, passa um segundo ao fim da aparição de um comboio sem paragem.
Obedeço ao primeiro aviso, para minha segurança, afastando-me para o longe
imediato aos limites desta plataforma. Gosto de toda a música que desaparece na
paisagem e das coisas que dançam, agora e sempre, sem a ouvir. No qualquer de
um lugar.
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