domingo, 9 de novembro de 2014

HÁBITO





Ter por costume andar
Vagarosamente a pé, junto a paredes
Sinalizadas com o aviso
De derrocada eminente. Caminhos
De fuga, onde
A escolha é única. Demorar no que tiver
De ser. Entretanto
Virar na esquina anterior,
Descontinuado de outros ombros
A falar sozinho, animado
Por todas estas arestas
Que nos separam. Representar
O pensamento à letra
Para não me esquecer
Do que sou e
Doer mais do que é necessário,
Para estar presente
No meio de tudo, tangentes
Traçadas de modo cego àquelas
Paredes enquanto elementos
Verticais.

Droga de substituição. Deixar
As palavras sólidas, impregnadas de
Princípios activos. Deixar
Derreter por debaixo da língua.
Quando acordo a tempo, pela anestesia
De sentidos e expressões
Possíveis, nada
Disto quero dizer mais
Do que seja ocupar o habitáculo
Da alma entre uma hora
E outra.

Ninharias de combustão espontânea
Enquanto houver terra
Para arder. Treino
O olhar de tanto ver, quase cega
Sem saber bem por onde vão
Todos estes movimentos, bruscamente
Interrompidos onde se iniciam
Outros de mexer. Pôr a mão
À pena, descer-te pela cervical
Quase sem perceberes
Que sou eu e é minha
A voz que te ocorre demasiado
Perto. Dizer gritando
Simultâneo ao olhar, quando não
É outra coisa que me ocupa.
Por simpatia me aproximo
De ti. Ao que és parte
De curiosidade e feitiço, as rugas
E esgares fora de esquadria.
Atraído por temperaturas
Inexplicáveis, não
Sinto quase nada
De especial. Por um
Qualquer. A verdade é
Que sinto. Pouco
O que quer
Que seja.

Invertebrado de sentimentos, choro
Pelas coisas erradas. Habito
Um inverno de verbos, cinzentos
A maior parte. Fósforos
Uns atrás dos outros, um inferno
E que bela é a luz que nego
Por detrás das cortinas, separada
Por tons todas as saliências
Ósseas, da sua natureza
As árvores em excesso
De carga, motivadas
Por pássaros calados e maravilhosos
Nas suas penas.

Picada até ao osso a construção
Dos dias, paredes divisórias
Que se deitam abaixo
De quando em vez. Por momentos
Vemo-nos uns aos outros
Nas posições distraídas que são
Só nossas.

Aflitos, abrimos a boca
Pela calada. Olhamos
Um para o outro. Dispomo-nos, compostos
E indispomo-nos. De qualquer forma
Vai tudo abaixo, com o peso
Que se transmite às coisas que ficam
Para depois. Até ao osso
Nos livramos de uma coisa
Pior, deixamos o esqueleto
Porque faz falta
E rasgamos a fachada
Para que deixe entrar
Toda a luz que se lamenta
Nas ruas da frente. É frio
O cimento no chão
Sem mais nada. Rugoso
Aos pés e à voz que fica. Convergimos
Em um ponto, nós
Perdemos tempo a dividir
O espaço num sentido
Que se entenda. Quando necessário
Nos encostamos
Topo a topo, regados
Por um mínimo de compreensão. Frases
De merda, cada matéria
Aprende-se a olhar
Cada coisa que vive e não
Arrancada ao seu hábito, a mão
Que não hesita.

Humidade transmitida pelos corpos
Às paredes que se evaporam
Em menos de nada,
De cima para baixo. Riscam-se comodidades
Directamente no chão
Com o azul que se despenha
Do céu, pó de anjos
Construtores. Mandam
As boas práticas, que se deixem
Alguns espaços à pele
Para que se revista de espessura, uma
Esperança, a resistência
Aos elementos. A partir daqui
É uma questão de tempo,
Chave-na-mão para o que der
Quando vier. De mim,
O que vou contar não acontece
Destas paredes para dentro,
É fora de mão em frente
Ao prédio que queiram que exista, e não existe
Campainha para chamar
Quem por ali estiver
Para estar.
O varredor incomoda,
Com o ferro da pá e as cerdas da vassoura,
O separador central de betão
Encardido. Se movimenta
Mecânico, o rosto prolonga-o
Com o vazio dos olhos, que prende
Frontal a cada carroçaria
Que por ele passa.
Varre quase tudo para fora
Do utensílio, parece se interessar
Mais por cada rosto
Ao volante, de certa forma
Tentando provocar a distracção
De quem conduz a máquina
Por este livro aberto
De asfalto.

De ruídos intestinais, repetem-se
Os fantasmas colossais. Rangem
As condutas no seu trajecto
De ar acima das cabeças, o espaço
No chão irregular de vinílico
Sobressalto, que se estende pelos dias
Em rasgos assimétricos. Estruturas
De suporte revestidas
Por inox escovado, pela tosse
Dos transeuntes. Sonoro
Aviso.

Porta de um prédio. Em alumínio
Anodizado de dourado. No mesmo material
Almofadas inferiores, duas folhas
De vão. Um fixo, outro
Móvel. Dois puxadores à altura
Que devem estar, por volta
Da cintura da maioria de nós
Mal medidos em cor
Preta. Em um dos vidros, um
Rectângulo de papel colado
Nas bermas com fita
Mais ou menos
Transparente. A mensagem
Gravada: PUBLICIDADE
AQUI NÃO,
OBRIGADA. Alguém
Que se aproxima perigosamente
Da entrada. Pára.
Se senta num dos muretes, lateralmente
Disponíveis. Em pedra
É mulher, tem um ar
Vencido, fuma como
Se o tempo tivesse metade
Da duração dos relógios, esses
Medidores da temperatura
Dos dias. Usa cabelo
Mal cortado, cor incerta
Próxima da paleta
Dos castanhos, será
Porventura a sua cor
Verdadeira. Não parece ali
Morar. Espera apenas
Que o cigarro se apague
Nas unhas, alguém
Que a venha buscar ou
Se esqueça ela mesma
Que ali se encontra.

Pelas costas uma sombra
Rapidamente se torna
Nítida. E transborda
Pelos cinco degraus
De uma mão. Leva a chave correcta
À fechadura da porta
E entra. Assim
Se permite a passagem
Para o interior
Da construção. Da rua
É visível o átrio
Das escadas, uma bateria
De caixas de correio
Na parede direita, um
Ressalto no pano implantado,
Raias de mármore confundem
Os olhos na altura
Do pé-direito, a tela
De arte avulsa, a animosidade
Do que é naturalmente
Arrancado ao coração
Da pedra.

O cigarro se extinguiu,
A mulher por ali ainda
Permanece, se finge
Ocupada, desinteressadamente
Exposta em reflexos
No espelho. Surge do nada,
Assim como tudo,
Uma outra personagem, uma outra
Mulher de sorriso fixo, toda ela branca
De costumes, rápida
A estender a mão com uma
Publicidade a um centro
De recuperação física. Pergunta
Uma mulher à outra «Posso
Entregar-lhe?» A voz
Ainda fica, enleada
Por momentos no ponto
De interrogação – enquanto voz,
Da sua dona se prolonga
Pelo passeio, desaparecendo
Por detrás de uma esquina
Próxima. A mulher que fumava
E se desinteressava, outrora
Lenta, também
Desapareceu. De memória
As suas vestes, preto integral
E calçado de caminhada
Na mesma direcção
De tons. O velho
Porteiro conhecido
Dos dias e do hábito, saca um
«Boas-tardes»
E sobe ao patim
Do prédio, se volta, lê
Algumas matrículas, rápidas que são
A escrever-se nas folhas
De asfalto. A estrada em frente.
Coloca a chave na fechadura
Com a precisão silenciosa
Do hábito, desaparece para lá
Da porta em esquadria
Com o ressalto revestido
De abstracção. No interior, em frente
À porta da rua, se implanta outra
Porta. A do elevador.

Por momentos não
Se regista qualquer movimento,
Depois, quase
Em simultâneo, chega
O carteiro. Pelo reflexo
No vidro da porta
Do prédio, e não sendo
Motivo de distracção
O pequeno rectângulo
De papel com a mensagem
Que lá está, é possível
Se perceber o trânsito
A engrossar. Chega
Outra pessoa mete a chave
À porta. Entra e
Desaparece – Por qual das portas?

Entra a tarde pelo céu, se abre
Uma ferida móvel, o rasto
De sol ateado por um
Avião, enquanto o próprio
Sol se evade por detrás
Da mancha antropófaga
Da cidade, reduzida
Ao seu pouco de cada vez
Que se olha assim
Desaparece aos olhos.

O trânsito não coagula,
Ferida aberta ao ar
Escorre, exposta em pus
Metálico, se exala o corpo
Urbano, um perfume
De borracha usada, percutida
Pelas engrenagens. Sacos
De diversos tamanhos ocupam
As mãos das pessoas
Desta hora. Duas freiras
Impecavelmente vestidas, e os seus
Óculos de aros redondos
Assentam nos seus rostos
Engomados – passam outros
E comem a andar,
Mãos nos bolsos. Comem
O que houver em um
Distribuidor de rações
Automático.

Sobrepostos em camadas
Autocarro, comboio e
Viaturas escorrem, expostas
Em pus metálico.

O dia, outro. Seguinte, assim
Clareou. De manhã
Sol, agradável
Até aos joelhos. Pelo meio-dia
A luz se aborrece
Em fiapos se mistura
Qual café com leite,
Derramando o apagamento
Gradual pelo céu
Servido. O porteiro
É digital. Se acerta
Com o comboio que vem
Do outro lado, e aqui
Chega preciso
Às 13h18. Dêem-lhe
Dois minutos, e é
Vê-lo à porta do prédio. Não
Do lado de fora, na rua,
Mas entalado na porta
Entreaberta. Usa óculos
De fundo de garrafa,
Porém acreditem. Tudo se vê
E nada, a ele
Escapa. Mora nos fundos
Se não mesmo abaixo
Da terra, sua expressão
De toupeira alinhada com as suas
Mãos à altura do peito. Observa
Apenas o movimento, frontal
Como alguém que se isola
De nervo ao receber
Um vento agradável,
Numa dada altura de um
Dia? Não, espera
Pela sua mulher
Que se não teria
Demorado por aí
Além, e vinha
Com o saco do pão
A sacudir em um
Dos seus braços. Um casal
De porteiros. Matemáticos
Da disponibilidade a todo custo,
Se revezam como
Numa corrida de estafetas. Que o corpo
De um deles tem de estar presente
Dentro de portas. Murmura
Algo o porteiro, a mulher
Compreende. Sai ele
E não demorará. Será breve,
Semibreve, o tempo
De calcorrear os dois passos
Mal medidos entre a porta
Do prédio e o interface
De transportes públicos
Ao virar da esquina. Quem sai
Do prédio virado
Para a rua à direita. O carteiro
Chega. Semibreve, o tempo
De se ouvir o eco vago
Do papel recortado nos sobrescritos
 Que beijam à força
O fundo frio do metal
Da caixa do correio. Toca ao mesmo
Tempo as campainhas,
Mestria de pianista que conhece
Os nomes de quem
Ali mora - «Correiiiooo…
…Obrigado!»

Uma velha traça
Meia a circunferência
Da sua corcunda,
Pela faixa de rodagem. Um puto
Vestido com casaco
De capuz, abstrai-se
Suspenso pelas batidas
Da bola que empresta
Ao ar, sincopado
Por segundos. Vira a esquina.

Três personagens, deles
Dois homens e
Uma mulher. Todos
Indecisos pelo lugar
Onde perder o tempo: à sombra?
Está frio. Ao sol, sentados
No murete da escada do prédio?
Está ocupado por mim.
Na esquina?
Cheira a mijo. Ficam aí.
A mulher fala, com a boca
Virada para a calçada,
Enquanto folheia
Uma revista. Um dos homens
Protege a esquina
Com o seu corpo, um pé
No chão e o outro
Na construção. Ambas as mãos
Nos bolsos. A mulher dobra
A revista, enquanto não
Se cala, e altera
Constantemente a mão
Que segura aquela «Quando
Estamos a aprender, é normal»
Dizem. Cala-se a mulher,
Continua um homem para
O outro em diálogo
De todos. A mulher muda
O sentido das madeixas
Do seu cabelo,
Com uma das mãos, a outra segura
A revista. Dobra a revista,
Começa a falar, gesticula
Na direcção dos peitos
Dos homens. Se cala,
Empunha a revista
Na página anterior, aberta
Ao acaso. Aproxima-se
Do fim daquela
Publicação. Quase sem palavras,
Fotografias de outros
Homens, mulheres, todos
Sorriem, imagens
De receitas, um belo lombo
De qualquer coisa
Que se come. Atado
Por cordas. Uma outra velha
Passa pelo grupo, despercebida
Enquanto coxeia, puxada
Por dois cães presos
Pelas trelas, aventura-se igualmente
Pela faixa de rodagem. É uma
Hora em que dá para isso,
Uma pequena frincha
No tempo da cidade,
Para os que nada já
Têm a perder, para os velhos
Audazes, inconscientes
De todos os vícios, os que falam
Uma língua estrangeira,
Uma mamã africana vestida
Com as cores dos frutos
Verdadeiros.

Outro dia, sopra o vento pelas bermas
O que sobra de usado, vincado
Pela leveza dos materiais
Que não desaparecem. Pássaros
De corda, prescindem das asas
Para serem como nós, alheados
Das nuvens, desenhando o desnível
Ruços de vidraço.
A folhagem motorizada
Das árvores em diálogos de óleo,
Lubrificados abraços a nada
Nos intervalos da dúvida. Seguram
A língua com uma
Das mãos junto
À boca, posições
De gesso. Duas mulheres
Alinhadas à face
De um edifício
De apartamentos, olham
A estrada raramente vazia. Um veículo
Trava a fundo, evitando
Um mal menor, a morte
De alguém. Que falta
Me fazem. E disso
Não sabem. Olham a estrada,
As mulheres, com a calma
Das desocupadas. Fervem
A sopa da semana
Directamente no estômago – lhes azedam
Os gestos pelos quais
Comunicam, em morse
De maxilares quase
Imperceptíveis. Ouvem-se,
Sobretudo quando alguém
No seu julgamento
Passa mal vestido, com uma
Cor fora do tom. Uma camisa
Fora do seu lugar. Sopra o vento
Pelos fios condutores, ao alto
Pelos cordões das roupas,
Pelos cabelos quase todos,
Pelas árvores. Os pássaros
Aflitos de tanto transtorno,
Ou simplesmente desinteressados
Pelo espaço que a eles pertence,
Sem mistério nem engarrafamentos,
Escolhem o solo, para aí
Se perderem no seu tracejado
De procura por algo
Que os forre, por dentro, e assim
Tornar os órgãos úteis. A ameaça
Da chuva como pedaços de ondas
Dissidentes do lugar de onde
Vêm. Se liberta a luz
Do final da tarde, para desaparecer
Por entre o trânsito, pelo interior
De comboios e escritórios, uma luz
Solitária, acendida por dentro
De um veículo, por alguém
Que não vê o sítio
Às coisas. Acendem-se
Os sinais de mudança
De direcção de um
Autocarro que retoma
A sua marcha na faixa
De rodagem. Os habitantes
Da cidade, retomam
Os seus lugares no hábito
Dos dias. Comprimem-se
Contra os vidros das paragens
Dos transportes públicos. O comboio
Parte acima das suas cabeças, o ser
Agrupa-se em números
De dedos, de uma mão
Afastam-se o indispensável
Para que, por eles, passe
O ar viciado. Da urbe
Pedra em lioz, amolecida
Nos cantos pela água que fala
Devagar. Violentada aqui
E ali por negativos abertos
Para inserção de grelhas
De ventilação, pontos de luz
E fixações de metal
Intrusivo. Pela sua superfície
Falo, de muros alguns
Próximos e de outros
Ainda por construir. Nomes
De fugitivos, dedos
Em crescimento, pintados pela pressa
Da mensagem vertical, olhos semicerrados
A contemplar pouca coisa
Na parede em frente. Sinal
Sonoro. Um comboio está
Para partir, um outro chega. Repartem
Por eles o que resta da luz
Nas ruas. Outra luz
Se esgueira pela abertura
Do túnel. Insectos sentimentais, exaustos dali
Saem com costas vergadas. Saem e
Suas mãos vazias.

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