segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

PRÉDIO EM DESCONSTRUÇÃO


O alto-forno da siderurgia alimenta-se, aqui perto, desta noite que o abraça numa fria insignificância. Transformam-se ali coisas noutras coisas, e não é imaginação minha, porque o ouço reclamar da qualidade do metal que lhe é servido à boca. Mais perto ainda é Dezembro, sai tímido pelas chaminés, um fósforo ínfimo acendido por todos nós pequenos, ao lado deste mecânico ser mal alimentado. O seu lamento desencadeia outras correntes, pequenos azedumes domésticos que são grandes de onde vêm, pois a escala é sempre desigual quando nos comparamos em tamanho. Alguém que grita «FODAAAAASSEEEEEEEEEEE» mais alto que os outros vizinhos deste prédio calado, que o escutam como eu. A criança que não sei se pertence ao grito, chora para nós ouvirmos, um eco que não pede licença para entrar nesta escada escura que nos serve a todos. Um desvio curvo num homem de espinha incorrecta, de sangue fácil e sorriso impossível. Uma porta que se fecha com estrondo, alguém que não me interessa cuidar mais por isso da sua origem, vai não sei se embora. O silêncio é coisa da minha cabeça, pois o alto-forno ainda arde cedo, domesticado por uma sirene que anuncia a sua primeira hora de má digestão. Sinto-lhe o ferro no meu estômago, ardo da cintura para baixo sem chegar aos pés, no meu meio inexacto. No resto do corpo, passo pelo frio todo que me é reservado, num deliberado gesto meu de abandono. O que imagino depois dos outros, dito em palavras, arrepia agora melhor o seu caminho, competindo de igual numa temperatura baixa com as outras palavras que respiro, mastigando-as na dentição mínima. Sopro-as no final desta noite, um vento brando que se mistura com o ar da rua.

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