quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

PURIFICAÇÃO





Chamava-se ainda de Purificação, e completava-se com Jesus. Purificação de Jesus a sua graça. Depois deste nome, não havia espaço para mais nada, ocupado que estava todo de invisível e intocável, dupla armadura contra sabe-se lá quem e o quê. Para lá dos seus caminhos de pele, mandava ela nos elementos, em toda a fria intempérie que a agasalhava contra a temperatura de um outro, contra as coisas que não lhe faziam falta. Pois era ela um território tão curto como inexplorado, naquele metro e pouco já a mais. A viagem que tinha iniciado à nascença, transportes vários que perdeu para depois, levava-a agora para o único lugar possível, dentro dela, no final do seu contorno de poros fechados. Perdeu para depois, também, o movimento dos outros a caminho do seu lugar, para ela o único possível de se desenhar numa pedra imaginada confortável na sua imóvel inexactidão. Fala para si, frequente sismógrafo nervoso, da cor dos tons diligentemente escurecidos nalgum ponto mais ausente. Os seus braços, atirados para o abismo do corpo abaixo dos ombros, todo ele contorno de ameaça, num respirar obrigatório tão difícil ali. Purificação que a pouco se permite, parecendo-lhe sempre que a vontade é sempre acontecimento do lado a ela, não sabendo explicar a hipótese de ser outra no peito. Não são precisas paredes para ser espaço encerrado, basta pele intransponível, qualquer que seja o gume de outra pele esticada pela mão, empunhada num assalto de seres. O seu corpo é aqui folha imaculada, rasurada na diagonal para qualquer futuro entendimento, seu espaço abandonado fechado. E há sempre uma só cadeira num espaço assim, construção de madeira que envelhece melhor sem fogo. Purificação completa-se com Jesus de pé perante esta mobília que lhe basta, e cala para os outros a sua razão, onde sentar senão ali a sua rigidez, a sua pessoalíssima tragédia. O lugar da culpa, sem janelas para a sua vida tão estranha. Mas são todas as vidas tão estranhas, que nunca chegam a ser hábito. Dos olhos para dentro, as imagens não são projectadas sequencialmente a vida toda, como se recorda que lhe terão dito uma única vez. Um engano semelhante a uma rua errada. À Purificação não se lhe conhece um sorriso, terá sido roubado por outra pessoa, nada deixando no seu lugar. No lugar da manhã que já não merece o sol, há uma ponte levantada na frente da outra ponta incompleta. Podia ser por ali a viagem, mas há tanta água em forma de corrente, que prende a deslocação de um corpo. A sua estória branca de palavras, escurecida de frases soltas, é-nos traduzida por fim pela falência dos órgãos, todos à sua vez, até à aceitação do último ar disponível. Não chega a doer, é tão pior.

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