quarta-feira, 6 de novembro de 2013

TRANSPORTE / PASSAGEIRO






Aponto números sobre outros números que já existem, num horário que mantenho propositadamente desactualizado

   Espera

São horas que deixo de conhecer, mal passo por elas.
Cedo me apercebo disso, que tarde não é um tempo é um engano.
Coloco-me sempre numa posição visível – a falar com os braços, espero – virada para a estrada do caminho, e não são asas o que quero estacionar

   Dá o braço a torcer, um qualquer que esteja calado

Apanho todos os transportes possíveis – roda dos elementos, equilibrados – com o meu corpo pelas horas todas que passam.
Existem, espalhados, telhados provisórios bem desenhados, que afastam alguma da tristeza das peles que cobrem, dando tempo parado a quem menos precisa. Sou um passageiro – transitório, pouco importante, efémero – destes vários transportes que por aqui passam, estonteantemente lentos, desviados sempre da contramão dos outros. Passageiro de um veículo – vários – deste que não sei conduzir, do próximo e do atrasado, se não demorar muito.
Um passageiro como os outros, os que me passam à frente – às vezes – e os que esperam por mim, dando-me a sua vez. De qualquer forma apanho-os a todos, em alguma paragem. Os passageiros – como eu – deste quotidiano, tossem entre eles o repúdio pela hora avançada

   Tem hora marcada?

Esta hora, em que são capturados ainda quentes, sem relógio no pulso fraco, pelo pontual rigor da repetição dos dias. Estes olhos todos, com abertura retardada entre eles, distraem-se a tempo com a emergência do contacto, através de máquinas atormentadas, exteriores aos seus falíveis órgãos. Um à-vontade fingido, prisioneiro de uma voz confortável que esteja disponível

   Tem hora que me diga?

O repouso breve, desenhado ainda longe numa margem oposta, troça da agitação destes maxilares, parados a tempo da refeição da noite. Esperam – esperamos todos – pacientes, é calor o que os aproxima, acumulado num dia bem medido, exalado pelas paredes que cabem neste espaço, enquanto não se ouve o último silvo de hoje, desta máquina que nos carrega. A última atenção que faço a um desconhecido.
Enquanto espero, conto. Conto os passos largos destes passageiros, e os meus em falso. Vou de viagem, dentro desta viagem principal, e frequento outros lugares. Uma paisagem beliscada de perto na pele, afinal a mais distante. É terra para onde se vai com o corpo, um pousio incerto. Pouco lavrado significa fértil, num semblante desfigurado por uma estranha espécie de espinho, encravado na posição de um sorriso, fingido também, na direcção de uma outra árvore que lhe prolongue a própria sombra

   Falas com alguém?

A minha musa diverte-se, também passageira, deixando espalhados bilhetes já obliterados de outras viagens, escondidos furados, por entre todas estas pernas. E ainda me cobra, depois, viagens de ida e volta em datas incertas

    Vais onde?

Quer esta musa saber mais do que eu não sei, sobre todos os sítios possíveis onde me posso atrasar. Pergunta-me sempre a direcção que desejo, impaciente, pois nunca demora mais do que uma vontade satisfeita

    Fala de outros telhados, do vidro quebradiço das coisas

Subo-lhe os poucos degraus da sua altura, e procuro sempre um lugar lá atrás.
Ela é a mais brusca viagem, curta, e aproveito pouco a paisagem enquanto penso num conforto, uma palavra mais dedicada

   Não peças por favor

Não precisa ela de mim, o quanto eu respiro mal sem ela. Bebe-me o vinho todo, deixando-me só, com um vestígio de agonia. O meu fígado, macerado com as desculpas que dou em nome dela – desenho pétalas de rosa – para não me embebedar até à violência. O álcool é eterno, à superfície da minha pele não se evapora. São estas viagens simultâneas, e duram fora do horário previsto. Alongo-me entre elas, sento-me num lugar estranho, onde não há paragens para o embarque

   Espera

Falam-me sempre do tempo, parado aqui por ser pertinente. Deixo-o ir, apanho outro. Outro tempo para ficar aqui, e lembrar-me outra vez dela. É dela que dependo, e não tenho vergonha. Somos um casal caoticamente moderno, e dividimos à sorte a tormenta. Lembro-me sempre da sua carne macia, quase sempre uma mulher, onde posso tatuar palavras medonhas. Uma só voz, sem cabeça, indignada sempre pela inundação à minha volta, de todas as garrafas vazias que deixo nesta ilha deserta. A tormenta é dividida à distância de uma rua, a sua outra voz que me grita do outro lado, a dizer que está ali. O grito encurtado, à medida que me aproximo, sempre brusco, do seu pescoço terminal. O meu olhar embriagado dela, despindo-a pelo caminho até ser indiferença. Somos – eu e ela – o cruzamento de muitos lobos, uma alcateia de vocábulos, com um ui de uivo sussurrado. A terra nunca prometida, de qualquer forma arável

   Onde parei, senão em ti?

Um embate violento de frente, no tempo de um jogo

   És cega, cabra?

Agora que aqui chegaste, vou sentar-me noutro lado. Mudo de assunto, de terras, neste transporte que não pára até que seja essa a sua vontade. Deixo-me ir, e vou à janela. Não me assusto, mas não é alegria o que sinto. O meu espelho parte-se melhor, desde o momento louco em que lhe deixei de proteger os cantos. Pois prefiro feridas abertas na carne, à imagem destorcida de uma pessoa boa. Limpo a sua superfície, da verdade até aqui acumulada, com as minhas mãos sujas. O exercício ridículo do reflexo, parado num instante. Basta-me um de mim, e não estou a ser cruel. Entretanto, deixo passar a paragem certa

   Já devias ter saído

E inquieto-me com a possibilidade de um diálogo forçado com quem, temporariamente, conduz isto tudo. Um sentimento passageiro, como todos os que aqui vão, que me dificulta a progressão para o vidro da frente

   Usas óculos?

Pernas, muitas pernas, e demasiados atacadores. Defendo-me, rilhando os dentes, e poupando a voz. Há mais vidros para estilhaçar, e hoje não trouxe luvas de propósito. Vidros me mordam todos, com as suas lascas afiadas se possível, com uma espessura canina. Não tenho os dentes todos, a minha dentada é suave. Utilizo antes as mãos para acender o fogo – é uma fogueira o que vejo pela janela, durante a viagem – e esqueço-me de vigiar a sua chama. É passageira.

    Contas sempre com isso, não é?

Conto. Conto com uma matemática descomplexada – a minha raiz – adições, sonhos subtraídos, traições. Com o peso desta tralha toda nos músculos, caminho sozinho por entre a multidão destes lugares, ao longo da estação toda que é o meu inverno. É o meu governo – sempre destituído de outras funções – deste tempo. A tempo. O tempo de sair, passar por ti, ficar ou não, e voltar sempre a um mesmo sítio.

   Também se chama círculo, e vicia

Roubo o contorno de todos, e volto para ver se há mais. Paro quando tiver de parar, desfaço a mala às vezes, sem ver bem onde coloco as minhas roupas dobradas no corpo.  

   Para onde vão todos, tão cegos?

Jogo com o tempo, ele brinca mais comigo e fujo atrás dele. A cabra é cega, solta e muda muitas vezes de silêncios.

   – Respeita-me, sou tua

És o meu livro de folhas brancas, o registo fora de bordo, levado pelas tuas mãos junto do meu peito.

   Não o apertes demasiado, pois perdeu a sua árvore faz pouco

Fico à margem, chego a ela, na rua oposta ao tempo de a atravessar, à espera de mais um transporte passageiro.

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