Aponto
números sobre outros números que já existem, num horário que mantenho propositadamente
desactualizado
– Espera
São
horas que deixo de conhecer, mal passo por elas.
Cedo
me apercebo disso, que tarde não é um tempo é um engano.
Coloco-me
sempre numa posição visível – a falar com os braços, espero – virada para a
estrada do caminho, e não são asas o que quero estacionar
– Dá o
braço a torcer, um qualquer que esteja calado
Apanho
todos os transportes possíveis – roda dos elementos, equilibrados – com o meu
corpo pelas horas todas que passam.
Existem,
espalhados, telhados provisórios bem desenhados, que afastam alguma da tristeza
das peles que cobrem, dando tempo parado a quem menos precisa. Sou um passageiro
– transitório, pouco importante, efémero – destes vários transportes que por
aqui passam, estonteantemente lentos, desviados sempre da contramão dos outros.
Passageiro de um veículo – vários – deste que não sei conduzir, do próximo e do
atrasado, se não demorar muito.
Um
passageiro como os outros, os que me passam à frente – às vezes – e os que
esperam por mim, dando-me a sua vez. De qualquer forma apanho-os a todos, em alguma
paragem. Os passageiros – como eu – deste quotidiano, tossem entre eles o
repúdio pela hora avançada
– Tem
hora marcada?
Esta
hora, em que são capturados ainda quentes, sem relógio no pulso fraco, pelo
pontual rigor da repetição dos dias. Estes olhos todos, com abertura retardada
entre eles, distraem-se a tempo com a emergência do contacto, através de
máquinas atormentadas, exteriores aos seus falíveis órgãos. Um à-vontade fingido,
prisioneiro de uma voz confortável que esteja disponível
– Tem hora
que me diga?
O
repouso breve, desenhado ainda longe numa margem oposta, troça da agitação
destes maxilares, parados a tempo da refeição da noite. Esperam – esperamos todos
– pacientes, é calor o que os aproxima, acumulado num dia bem medido, exalado
pelas paredes que cabem neste espaço, enquanto não se ouve o último silvo de
hoje, desta máquina que nos carrega. A última atenção que faço a um
desconhecido.
Enquanto
espero, conto. Conto os passos largos destes passageiros, e os meus em falso. Vou
de viagem, dentro desta viagem principal, e frequento outros lugares. Uma
paisagem beliscada de perto na pele, afinal a mais distante. É terra para onde
se vai com o corpo, um pousio incerto. Pouco lavrado significa fértil, num semblante
desfigurado por uma estranha espécie de espinho, encravado na posição de um
sorriso, fingido também, na direcção de uma outra árvore que lhe prolongue a
própria sombra
– Falas
com alguém?
A
minha musa diverte-se, também passageira, deixando espalhados bilhetes já
obliterados de outras viagens, escondidos furados, por entre todas estas pernas.
E ainda me cobra, depois, viagens de ida e volta em datas incertas
– Vais onde?
Quer
esta musa saber mais do que eu não sei, sobre todos os sítios possíveis onde me
posso atrasar. Pergunta-me sempre a direcção que desejo, impaciente, pois nunca
demora mais do que uma vontade satisfeita
– Fala
de outros telhados, do vidro quebradiço das coisas
Subo-lhe
os poucos degraus da sua altura, e procuro sempre um lugar lá atrás.
Ela
é a mais brusca viagem, curta, e aproveito pouco a paisagem enquanto penso num
conforto, uma palavra mais dedicada
– Não
peças por favor
Não
precisa ela de mim, o quanto eu respiro mal sem ela. Bebe-me o vinho todo,
deixando-me só, com um vestígio de agonia. O meu fígado, macerado com as
desculpas que dou em nome dela – desenho pétalas de rosa – para não me
embebedar até à violência. O álcool é eterno, à superfície da minha pele não se
evapora. São estas viagens simultâneas, e duram fora do horário previsto. Alongo-me
entre elas, sento-me num lugar estranho, onde não há paragens para o embarque
– Espera
Falam-me
sempre do tempo, parado aqui por ser pertinente. Deixo-o ir, apanho outro.
Outro tempo para ficar aqui, e lembrar-me outra vez dela. É dela que dependo, e
não tenho vergonha. Somos um casal caoticamente moderno, e dividimos à sorte a
tormenta. Lembro-me sempre da sua carne macia, quase sempre uma mulher, onde
posso tatuar palavras medonhas. Uma só voz, sem cabeça, indignada sempre pela
inundação à minha volta, de todas as garrafas vazias que deixo nesta ilha
deserta. A tormenta é dividida à distância de uma rua, a sua outra voz que me
grita do outro lado, a dizer que está ali. O grito encurtado, à medida que me
aproximo, sempre brusco, do seu pescoço terminal. O meu olhar embriagado dela,
despindo-a pelo caminho até ser indiferença. Somos – eu e ela – o cruzamento de
muitos lobos, uma alcateia de vocábulos, com um ui de uivo sussurrado. A terra
nunca prometida, de qualquer forma arável
– Onde
parei, senão em ti?
Um
embate violento de frente, no tempo de um jogo
– És
cega, cabra?
Agora
que aqui chegaste, vou sentar-me noutro lado. Mudo de assunto, de terras, neste
transporte que não pára até que seja essa a sua vontade. Deixo-me ir, e vou à
janela. Não me assusto, mas não é alegria o que sinto. O meu espelho parte-se
melhor, desde o momento louco em que lhe deixei de proteger os cantos. Pois
prefiro feridas abertas na carne, à imagem destorcida de uma pessoa boa. Limpo a
sua superfície, da verdade até aqui acumulada, com as minhas mãos sujas. O exercício
ridículo do reflexo, parado num instante. Basta-me um de mim, e não estou a ser
cruel. Entretanto, deixo passar a paragem certa
– Já
devias ter saído
E
inquieto-me com a possibilidade de um diálogo forçado com quem,
temporariamente, conduz isto tudo. Um sentimento passageiro, como todos os que
aqui vão, que me dificulta a progressão para o vidro da frente
– Usas
óculos?
Pernas,
muitas pernas, e demasiados atacadores. Defendo-me, rilhando os dentes, e
poupando a voz. Há mais vidros para estilhaçar, e hoje não trouxe luvas de
propósito. Vidros me mordam todos, com as suas lascas afiadas se possível, com
uma espessura canina. Não tenho os dentes todos, a minha dentada é suave. Utilizo
antes as mãos para acender o fogo – é uma fogueira o que vejo pela janela,
durante a viagem – e esqueço-me de vigiar a sua chama. É passageira.
– Contas sempre com isso, não é?
Conto.
Conto com uma matemática descomplexada – a minha raiz – adições, sonhos subtraídos,
traições. Com o peso desta tralha toda nos músculos, caminho sozinho por entre
a multidão destes lugares, ao longo da estação toda que é o meu inverno. É o
meu governo – sempre destituído de outras funções – deste tempo. A tempo. O
tempo de sair, passar por ti, ficar ou não, e voltar sempre a um mesmo sítio.
– Também
se chama círculo, e vicia
Roubo
o contorno de todos, e volto para ver se há mais. Paro quando tiver de parar,
desfaço a mala às vezes, sem ver bem onde coloco as minhas roupas dobradas no
corpo.
– Para
onde vão todos, tão cegos?
Jogo
com o tempo, ele brinca mais comigo e fujo atrás dele. A cabra é cega, solta e
muda muitas vezes de silêncios.
– Respeita-me, sou tua
És o
meu livro de folhas brancas, o registo fora de bordo, levado pelas tuas mãos
junto do meu peito.
– Não
o apertes demasiado, pois perdeu a sua árvore faz pouco
Fico
à margem, chego a ela, na rua oposta ao tempo de a atravessar, à espera de mais
um transporte passageiro.
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