sexta-feira, 1 de novembro de 2013

CICLO





Amanheci com um choro, vindo do meu outro quarto, que me lembra do dia que nasceu. É uma cor que distingo das outras, por ser tão berrante. Hesito, quase desatento – um olhar possível, parado na escuridão do meu conforto – e tento não acumular mais ruído. É real – confirma-se – como o espaço curto que atravesso, para alcançar a origem do meu despertar. Entro na próxima porta, e comovo-me lentamente, como uma fogueira teimosa, libertando ar quente da minha boca na direcção daquele sorriso. É o meu outro coração, aquele que bate no quarto do lado. Junto os dois – uma operação simples, de peito aberto – na partilha do sangue quente que circula entre eles, alheios a qualquer outra temperatura mais baixa. Assumo os nossos pesos num só, numa só medida decidida. A emoção é nua, e precisa de roupas. Ajudo a vestir os nossos corpos, com uma manhã larga engomada nos colarinhos, com um padrão vistoso de uma linguagem desconhecida, alternada com matizados tons de luz. Já antes experimentei alguns tamanhos, todos reflectidos no espelho dos anos passados, a observação possível do meu contorno. A folha branca de um lençol, ainda que enrugada, é o pedaço de destino que se consegue variar, permitindo todas as manchas. A minha cria acrescenta-lhe algumas, com o pedaço de carvão que entrego-lhe para a distracção. Tem mãos pequenas, mas projecta com elas a mais perfeita sombra no meu rosto, desenhando nele um animal íntimo. O nosso tempo é medido por outro relógio, num sonolento movimento que se distancia da porta da rua. Esvaziamos aos poucos o lar, com a nossa ausência, e anunciamos a todas as divisões que nos vamos embora, levando a nossa gargalhada presa ao molho de chaves. A porta da rua é fechada lentamente, permitindo a entrada do ar suficiente, para que esta casa viva suspensa algumas horas, sem estar ligada à máquina dos nossos corpos. Descemos todos os degraus, e atravessamos a linha exterior do edifício, a última referência para o impacto com a noite cega, que nos atropela e não pára, até que se apague com a primeira luz. Conservo a cria num invólucro confortável – um outro lar, mínimo – até que eu tome o rumo incerto do regresso, ao nosso corpo único, no final deste dia.

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