sexta-feira, 25 de outubro de 2013

ACORDAM


Já não há noite, neste lugar subalterno da cidade. O véu negro, que tapava todos os membros amputados da esperança de ontem, acomodou-se desapaixonadamente no leito do rio, trocando-lhe a pele espinhada de estrelas por um lodo macio. As máquinas acordam lentamente, preenchendo o ar com a batida dos seus corações, os seus motores inconstantes. Aqui, onde a terra tem um fundo falso de betão, incapaz de absorver todas as lágrimas do escravo novo que a habita. Estranhos hábitos, que se multiplicam pelos corpos calculados a partir das roupas estendidas nas fachadas dos prédios, ímpares às vezes. Hoje, as gaivotas chegaram em quantidade, rasgando o céu, para o conforto dos telhados em derrocada, fugindo ásperas da espuma violenta do mar mais próximo. Aqui, as ondas são calmas. Um fio transparente de humidade, que escorre pelos vãos, quando do outro lado existe um corpo que se mexe, oferecendo o calor da vida a quem o espreite. Uma bicicleta que passa na estrada principal, carregando o fardo de um estranho ser, trajando um impermeável vistoso de cor amarela. Há mais bicicletas aqui perto, dormem ainda sozinhas, abraçadas aos pares, nas varandas com os estores ainda fechados. O galo canta agora, concorrendo com os motores já vivos, ganhando-lhes em estridência e pontualidade. Um vento miúdo brinca com as árvores, provocando-as com cócegas lentas na sua folhagem. Os bancos de jardim, esperam ainda pelos corpos das primeiras horas da manhã, o turno lento de quem não tem mais para onde ir, senão ajudar a secar a madeira dos seus assentos, ensopados até aos veios, da tristeza da noite que já foi. Um homem só, atravessa um dos espaços disponíveis, e esconde-se atrás de uma parede. Vejo-lhe a cabeça calva, enrugada da idade avançada, e descubro-lhe o gesto furtivo. Traz também água, aliviada agora dos seus rins cansados, misturada na urina espumosa, que desenha um par de braços abertos no chão. Ouvem-se mais motores, e passou apenas uma hora a mais. O sol desponta tímido, no tecto selvagem do mundo, e experimenta primeiro todas as sombras possíveis, nos ângulos mais difíceis, pondo-se de lado. As nuvens cabem-lhe todas debaixo do corpo, sendo o seu lençol estampado com as gaivotas. Assumem estas a tempestade, cedendo-lhe o espaço todo do ar. Preferem telhados bolorentos, com musgo das lágrimas, e gritos de desordem humana. O caminho, reflectido nos vidros, leva-me mais longe. Tomo-lhe a diagonal, antes que se partam.

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