Ausento-me para voltar tarde, quase atrasado, a um corpo
parado na paisagem. Aos outros de mim finjo fidelidade, e preocupo-me só com a
minha parte do tempo. Cuido desse tempo, para que não se desloque demasiado,
como um osso mais distraído. A minha sombra estende-se entre esta terra fértil
da morte dos sentidos, consentida, e o céu em que carrego mais uma fortíssima
tonalidade de cinzento. À exacta meia distância, no ponto mais distante que
consigo alcançar com os olhos fechados. Tenho as costas voltadas para um vale
de rocha bruta, e nenhuma água potável à vista. A paisagem vasta, árida para os
sentimentos, apenas pontuada por uma linha curva do comboio para nenhures.
Sulcos geométricos atravessam este plano todo que traço, desde os meus pés até
um final que há-de ser só isso. Um ponto de fuga. Um ponto aparente, coordenado
mal, uma figura que se esgota no início do mar revolto, indeciso do caminho a limitar.
Não há janelas com vista para aqui, para este espaço solto sem amarras. A luz
invade tudo, por todos os poros disponíveis, desenhando ângulos absurdos com a esperança
perdida. O meu hábito é um corpo – este que carrego – e condiz com matéria
escura. A entrada para este lugar é um corredor, que se prolonga tropeçando no
tecido abandonado pelas paredes, até encontrar ao fundo, uma estátua bela com o
cabelo apanhado por cima de um abismo, que me acena com mãos de árvore petrificada.
Os seus olhos choram o medo – é negro – que lhe escorre pelo monumento abaixo,
protegido na base por hienas aborrecidas. Aos outros de mim, eu grito. Assumo
que estou em dívida para com eles, mas temos, todos, um ponto de vista
diferente. O próprio silêncio é um outro corpo que sai de nós, mas disso
ninguém quer falar.
– Um de nós morreu!
Aconteceu.
Uma coisa maldita, segurada ao colo, nos braços que se
estendem para o embalo colectivo do nosso sonho. Alguns de nós ficaram.
– Estão todos
seguros?
Neste caminho de terra batida, há vontade paralisada. O
que aponta é um caminho só, e só isso, para uma queda com alguma altura, de um líquido
fresco, malte puro. Por todo este espaço
ecoa o meu ruído interior, nascido de milhares de tambores despidos da sua
pele, arranhados até à raiz da sua música, por mãos perfeitas sem dedos. Existe
também uma mala – algo para conter – que lhes carrega as unhas, como uma
herança de gestos. Vai esta mala tingida de vermelho, do sangue todo que se
conseguiu salvar das feridas empatadas. Comas avulsos, um sossego de dia. E não
consigo ouvir mais nada, senão estes tambores vazios. Visto-me a rigor, de um
branco apropriado para o funeral do tempo quente, enterrado junto com um de
mim, por cima de todos os jornais velhos que consegui apanhar antes das chuvas,
atados à volta do meu corpo com garrotes bem apertados. A simulação do verão no
corpo. Seguro-me como posso, mal, enquanto me gritam outras tantas vozes à
minha volta, alertando-me para a rocha à minha frente, que parou para me
receber. Os pés, levo-os juntos, mais por cerimónia do que por defeito, e vão
apontados para a única posição que lhes pode causar dano. Vou sujando as mãos,
e sujo-as sempre sem querer, com o muco que afasto, vindo das lesmas ordeiras
que acompanham o meu despertar diário, alinhadas à boca da cama, sempre no
mesmo sítio exacto. O primeiro contacto com o chão é húmido, depois é pó. Aterro
a calosidade nesta coisa mole, que se modifica pouco com o tempo, provocando-me
o vómito farto e paliativo das primeiras horas de luz. Não importa onde se
vive, pois aparecem sempre. Preocupo-me pouco com a minha carne – é temperatura
– e tempero-a simples com o fogo necessário, para que desabe descolada, como
uma perfeita veste despida dos ossos que a descrevem. No dia seguinte, há
sempre sabores que me escapam, por entre os dedos carnudos que me sobram,
incompletos. Aponto-os para o gelo à minha frente, e escrevo nele o meu
esquecimento.
Sem comentários:
Enviar um comentário