terça-feira, 29 de outubro de 2013

AUSÊNCIA



Ausento-me para voltar tarde, quase atrasado, a um corpo parado na paisagem. Aos outros de mim finjo fidelidade, e preocupo-me só com a minha parte do tempo. Cuido desse tempo, para que não se desloque demasiado, como um osso mais distraído. A minha sombra estende-se entre esta terra fértil da morte dos sentidos, consentida, e o céu em que carrego mais uma fortíssima tonalidade de cinzento. À exacta meia distância, no ponto mais distante que consigo alcançar com os olhos fechados. Tenho as costas voltadas para um vale de rocha bruta, e nenhuma água potável à vista. A paisagem vasta, árida para os sentimentos, apenas pontuada por uma linha curva do comboio para nenhures. Sulcos geométricos atravessam este plano todo que traço, desde os meus pés até um final que há-de ser só isso. Um ponto de fuga. Um ponto aparente, coordenado mal, uma figura que se esgota no início do mar revolto, indeciso do caminho a limitar. Não há janelas com vista para aqui, para este espaço solto sem amarras. A luz invade tudo, por todos os poros disponíveis, desenhando ângulos absurdos com a esperança perdida. O meu hábito é um corpo – este que carrego – e condiz com matéria escura. A entrada para este lugar é um corredor, que se prolonga tropeçando no tecido abandonado pelas paredes, até encontrar ao fundo, uma estátua bela com o cabelo apanhado por cima de um abismo, que me acena com mãos de árvore petrificada. Os seus olhos choram o medo – é negro – que lhe escorre pelo monumento abaixo, protegido na base por hienas aborrecidas. Aos outros de mim, eu grito. Assumo que estou em dívida para com eles, mas temos, todos, um ponto de vista diferente. O próprio silêncio é um outro corpo que sai de nós, mas disso ninguém quer falar.
Um de nós morreu! Aconteceu.
Uma coisa maldita, segurada ao colo, nos braços que se estendem para o embalo colectivo do nosso sonho. Alguns de nós ficaram.
Estão todos seguros?
Neste caminho de terra batida, há vontade paralisada. O que aponta é um caminho só, e só isso, para uma queda com alguma altura, de um líquido fresco, malte puro.  Por todo este espaço ecoa o meu ruído interior, nascido de milhares de tambores despidos da sua pele, arranhados até à raiz da sua música, por mãos perfeitas sem dedos. Existe também uma mala – algo para conter – que lhes carrega as unhas, como uma herança de gestos. Vai esta mala tingida de vermelho, do sangue todo que se conseguiu salvar das feridas empatadas. Comas avulsos, um sossego de dia. E não consigo ouvir mais nada, senão estes tambores vazios. Visto-me a rigor, de um branco apropriado para o funeral do tempo quente, enterrado junto com um de mim, por cima de todos os jornais velhos que consegui apanhar antes das chuvas, atados à volta do meu corpo com garrotes bem apertados. A simulação do verão no corpo. Seguro-me como posso, mal, enquanto me gritam outras tantas vozes à minha volta, alertando-me para a rocha à minha frente, que parou para me receber. Os pés, levo-os juntos, mais por cerimónia do que por defeito, e vão apontados para a única posição que lhes pode causar dano. Vou sujando as mãos, e sujo-as sempre sem querer, com o muco que afasto, vindo das lesmas ordeiras que acompanham o meu despertar diário, alinhadas à boca da cama, sempre no mesmo sítio exacto. O primeiro contacto com o chão é húmido, depois é pó. Aterro a calosidade nesta coisa mole, que se modifica pouco com o tempo, provocando-me o vómito farto e paliativo das primeiras horas de luz. Não importa onde se vive, pois aparecem sempre. Preocupo-me pouco com a minha carne – é temperatura – e tempero-a simples com o fogo necessário, para que desabe descolada, como uma perfeita veste despida dos ossos que a descrevem. No dia seguinte, há sempre sabores que me escapam, por entre os dedos carnudos que me sobram, incompletos. Aponto-os para o gelo à minha frente, e escrevo nele o meu esquecimento.

Sem comentários:

Enviar um comentário