Abandono
o corpo aqui mesmo. Não preciso deste peso, mesmo que quisesse. Este é um sítio
com algumas regras, nem todas elas de fácil compreensão, como são quase todas
as exigências de quem já viveu muito, e pode pedir por elas. Para ficar com a
perspectiva deste espaço que se estende, a partir daqui, lá mais para trás, não
preciso de o completar com o meu próprio fardo. Algodão aqui chama-se amor. O
peso não é bem-vindo, pois deixou marcas à vista, num desentendimento de equilíbrios.
O telhado é uma falta gritante, e não desabou só com o silêncio a que foi
votado este moinho. Ainda andam por aqui algumas almas, todas com coração, e
passam leves quase não se dando por elas. Vão ficando, enquanto restar uma
lembrança que seja de um alimento. Pois já saiu daqui matéria, para o pão dos
dias de alguém, e não foram poucos os estômagos que este moinho ajudou a
alimentar. O céu acima, como que adivinhando esta tristeza desabada, parece
desenhar-se leve no movimento, mostrando preocupação pontual, através de uma
sua nuvem que se aproxima mais, mas nunca por cima. Aproximam-se longe, ao
largo, como os grandes cruzadores do Tejo. O peso, aqui, é como os sapatos que
se descalçam à entrada, evitando sujar o chão que há-de vir. E este chão, parte
da caminhada deste velho moinho, também já não tem as peças todas, assumindo uma
calvície remendada por alguns mosaicos. Logo à entrada, onde me deixei, está
escondida tímida, por detrás da vegetação invasora que não tem outro sitio
melhor para ajudar a esquecer, uma pedra redonda. É macia pela vida, pesada também,
mas já perdeu o seu eixo. Tem um buraco no lugar do coração, por onde já não se
vê nada. Ao fundo, onde os meus olhos se encostam, existe uma passagem escura
que não quero descobrir, pois não consigo acreditar na sua forma de arco
perfeito. Parece-me egoísta, um contraste injusto com as traves maltrapilhas
que resistem, deixadas à água. O céu pede desculpa de todas as vezes, por
vertê-las quando não pode mais.
– Que peso bem medido será o dele, arco
perfeito, para ser desastre?
É uma
lamúria que escutarei, parado onde estou, mesmo que ele me grite pelos braços,
para lhe serem apoio. O meu peso descalçou-se à entrada, caminho só com os
olhos. Daqui, de onde estou, já não vejo mais nada para descrever – não sei se
se esconde tudo – sem ter a necessidade de avançar mais um pouco. O meu pescoço
é também um eixo, e há superfície de lado, nas laterais, a merecer um
cumprimento. Existem aí, entre paredes antigas, janelas amputadas da madeira
toda que já as vestiu. São agora só pedra teimosa, que não vai a lado algum,
enquanto houver paredes. Estas janelas são como telas nuas, sem tecido, do
horizonte que abre a comunicação entre todos estes espaços, abandonado cada um
à sua natureza. O moinho velho é como uma herança rejeitada, a favor do rio.
Esse rio que corre livre ali, fora dele, moinho. A sua amizade nunca se desfez,
ficando esse peso todo para o moinho, que o vai tentando adiar, rezando ao céu.
O rio ajuda, é calmo, e às vezes nem se nota, se está noutra maré. De todas as
vezes que se encontram, rio e moinho, forma-se um redemoinho de ânsias
diferentes, e há um brilho que é outro, que se tenta apagar a ele mesmo.
Sente-se a mais na superfície da água, pois não quer ser o espelho da velhice.
Eu, indiferente, grito a todos eles: – Com
este moinho, já ninguém faz farinha.
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