quarta-feira, 9 de outubro de 2013

MOINHO VELHO



Abandono o corpo aqui mesmo. Não preciso deste peso, mesmo que quisesse. Este é um sítio com algumas regras, nem todas elas de fácil compreensão, como são quase todas as exigências de quem já viveu muito, e pode pedir por elas. Para ficar com a perspectiva deste espaço que se estende, a partir daqui, lá mais para trás, não preciso de o completar com o meu próprio fardo. Algodão aqui chama-se amor. O peso não é bem-vindo, pois deixou marcas à vista, num desentendimento de equilíbrios. O telhado é uma falta gritante, e não desabou só com o silêncio a que foi votado este moinho. Ainda andam por aqui algumas almas, todas com coração, e passam leves quase não se dando por elas. Vão ficando, enquanto restar uma lembrança que seja de um alimento. Pois já saiu daqui matéria, para o pão dos dias de alguém, e não foram poucos os estômagos que este moinho ajudou a alimentar. O céu acima, como que adivinhando esta tristeza desabada, parece desenhar-se leve no movimento, mostrando preocupação pontual, através de uma sua nuvem que se aproxima mais, mas nunca por cima. Aproximam-se longe, ao largo, como os grandes cruzadores do Tejo. O peso, aqui, é como os sapatos que se descalçam à entrada, evitando sujar o chão que há-de vir. E este chão, parte da caminhada deste velho moinho, também já não tem as peças todas, assumindo uma calvície remendada por alguns mosaicos. Logo à entrada, onde me deixei, está escondida tímida, por detrás da vegetação invasora que não tem outro sitio melhor para ajudar a esquecer, uma pedra redonda. É macia pela vida, pesada também, mas já perdeu o seu eixo. Tem um buraco no lugar do coração, por onde já não se vê nada. Ao fundo, onde os meus olhos se encostam, existe uma passagem escura que não quero descobrir, pois não consigo acreditar na sua forma de arco perfeito. Parece-me egoísta, um contraste injusto com as traves maltrapilhas que resistem, deixadas à água. O céu pede desculpa de todas as vezes, por vertê-las quando não pode mais.
Que peso bem medido será o dele, arco perfeito, para ser desastre?
É uma lamúria que escutarei, parado onde estou, mesmo que ele me grite pelos braços, para lhe serem apoio. O meu peso descalçou-se à entrada, caminho só com os olhos. Daqui, de onde estou, já não vejo mais nada para descrever – não sei se se esconde tudo – sem ter a necessidade de avançar mais um pouco. O meu pescoço é também um eixo, e há superfície de lado, nas laterais, a merecer um cumprimento. Existem aí, entre paredes antigas, janelas amputadas da madeira toda que já as vestiu. São agora só pedra teimosa, que não vai a lado algum, enquanto houver paredes. Estas janelas são como telas nuas, sem tecido, do horizonte que abre a comunicação entre todos estes espaços, abandonado cada um à sua natureza. O moinho velho é como uma herança rejeitada, a favor do rio. Esse rio que corre livre ali, fora dele, moinho. A sua amizade nunca se desfez, ficando esse peso todo para o moinho, que o vai tentando adiar, rezando ao céu. O rio ajuda, é calmo, e às vezes nem se nota, se está noutra maré. De todas as vezes que se encontram, rio e moinho, forma-se um redemoinho de ânsias diferentes, e há um brilho que é outro, que se tenta apagar a ele mesmo. Sente-se a mais na superfície da água, pois não quer ser o espelho da velhice. Eu, indiferente, grito a todos eles: – Com este moinho, já ninguém faz farinha.

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