domingo, 30 de junho de 2013

CELEBRAÇÃO






Tinham já passado oito dias, desde que tinha saído de casa numa direcção indefinida. Acabava de acordar num lugar que ainda não conhecia, porque estava escuro quando lá entrei a noite passada. Reparo agora que é uma construção enorme, e ocupada por outros como eu, mas de uma forma estranhamente organizada. Para todos eles parece falar uma voz, e vem de um senhor que é um colarinho. Tem botões nas suas roupas, que falam por ele, enquanto junta os dedos das duas mãos, numa qualquer celebração cantada, que ecoa pelas paredes que lhe seguram as costas. À volta dele, juntam-se pessoas que se conhecem entre elas ou, pelo menos, já se cruzaram uma vez que fosse num qualquer tropeção de atacadores. O mais certo é terem optado, num mesmo momento, ir na mesma direcção. Cantam todos a mesma canção do colarinho mas acrescentam, aqui e ali, uma toalha branca imaculada que esvoaça a partir das suas cabeças, e são constituídas por rendilhados que se vão acendendo à medida que as vozes vão sendo entoadas a partir dos cantos. Ninguém escolhe expor-se, e ocupam só as intersecções. O meio do espaço em que nos encontramos está vazio. Quase vazio, pois é utilizado por um deles. Foi um voluntário, que toca um piano rudimentar, elaborado com as melhores cordas de pesca ao anzol que se conhecem; oferenda de quem já se devia ter afogado, mas não teve essa sorte. Um sol desenhado por uma criança é levantado por canhotos, e não chega para aquecer o ambiente. Copos que precisam de duas mãos para serem elevados, saem de vestes com cores berrantes, transpiradas debaixo dos braços a que pertencem. Uma mancha de suor que vai aumentando de tamanho, quando a intervenção do grupo é subitamente abrandada. Surge uma voz que só é ouvida, porque mais nenhuma. É um colarinho mais desapertado, e fala para o fundo do espaço ocupado. Uma cena teatral mais do que subdividida, o modo como vira as páginas do livro donde certamente tira todas aquelas ideias que verbaliza. Vêm-se pescoços adornados com colares de materiais modestos; apenas uma jóia equilibrada a meio, e é uma caixa de fósforos meio preenchida, que é utilizada pontualmente, quando pretendem realçar uma qualquer palavra saída do colarinho, com um ritmo de percussão quase tribal. Percebo devoção em algumas daquelas pessoas, pois fazem demonstrações sem esperar retornos, em que pegam outros ao acaso, e elevam-nos à altura das suas cinturas, num aconchego de regaço maternal. Enquanto o fazem, desviam-se da música principal, e cantam mantras personalizados ao ouvido de quem acarinham. Parece servir para induzir um conforto sereno, onde só olhos piscam nas faces. As bocas estão escancaradas em silêncio, mas sem aparência de aflições. Projectam-se sombras chinesas num tamanho nunca antes visto, nem imaginado. Ocupam todo o tecto que é enorme, e quase parece um planetário alternativo, onde não existem estrelas nem planetas distantes, mas sim flores. Uma dança coordenada de membros, conjuntos inteiros de pernas em corpos, que utilizam alguns dedos dos pés mais habituados, e arrancam pétalas de malmequeres. Nunca chegamos a saber se são flores naturais ou de plástico, porque os bastidores de onde se desenrola a acção, são fortemente guardados com uma presença desproporcionada de seres musculados, quase o dobro dos outros. Nunca empregam a voz para impor a ordem. Utilizam para esse fim um conjunto de batutas harmoniosas, que ditam execuções de movimentos. Por detrás desta guarda de honra, existem mesas que se distribuem em diagonais perfeitas, e servem para mais de uma função. Têm o tamanho adequado para serem um palco individual, devidamente compartimentado por fitas largas coladas na sua superfície, e nelas desenrola-se a acção dos actores das projecções. As funções são duas, mas a pessoa é a mesma. São realmente pernas e dedos dos pés, que arrancam as pétalas dos malmequeres que vemos em sombras. Os membros continuam, como os conhecemos em qualquer corpo, mas adoptam uma posição excêntrica de um yoga pouco saudável para mim, pois as costas forçam as respectivas espinhas dorsais para a gravidade. Ficam com a cabeça apenas a alguns centímetros do solo, e com as mãos moldam estátuas de barro incompletas, só partes de corpos. É um trabalho a que se dedicam com um fervor espontâneo e contagiante. Pressinto um êxtase final, uma aproximação ao desfecho daquela actuação, e mais uma vez sou surpreendido. À minha frente, forma-se já uma fila com todos aqueles actores-artífices de braços estendidos. Querem oferecer-me as suas estátuas. Quando pergunto ao último da fila o propósito de tudo aquilo, é-me respondido:
São as partes todas das tuas preces!
Percebi então, que me devem ter ouvido a pensar e a dizer para mim mesmo, que me sentia incompleto. Louvados sejam.

sábado, 29 de junho de 2013

SONOLÊNCIA






Tenho sempre sono, só não sei se sou eu. Alguém será, e disso não tenho dúvida. A percepção do que está à volta é diferente. Uma confusão ligeira.
É um espaço com esquinas nem sempre à esquadria, asseado. A tempo de fechar uma braguilha. Com caixas sem fundo, onde guardo roupas que me deram e das quais me quero esquecer. Folhas de papiros que nunca acabam, marteladas calmamente. – Será que existem? Simplifico o meu olhar de tudo, através de picotados depois de esponjas. À volta do meu corpo teci uma estrutura, um vime estreito de largura, e só com uma ranhura à medida dos meus olhos cansados. Por ela espreito para o nada que vive bem dentro de mim. Conto peças soltas que se aguentam como paredes, amestradas com panos macios, embebidos em lixívia do esquecimento. Luvas de borracha que acariciam viúvas. Ralos de drenagem exaustos da gordura dos dias passados, que não é anulada com vinagres ou fermentos. Nenhum dos dois. Eu como alguém, difundido a partir de um objecto de culto; um altar azul, geométrico, com furos cada vez mais pequenos. Conversas simples com uma borboleta de plástico, que está sempre ali num sítio parado, e que tem asas como um adereço fantasma de um voo que acabou há muito. Despejado por um mecanismo. Símbolos pagãos cravados em cerâmicas, com desenhos de quadrados que cabem dentro de outros quadrados. Onde nunca existe espaço para ti próprio. Por vezes és uma escova noutro canivete suíço. Passas firme, por cabelos de um branco estético, e cortas unhas que já atrapalham a progressão por um corredor que distribui mortes e sorrisos também acenos. Espaços de fumigação, separados apenas por cortinas feitas de costelas adornadas com laços sem cor definida. Gavetas que se colam com produtos fortes, para nunca mais abrirem. Deixo dentro delas, e em cada uma, um gravador com a minha voz registada. Um por cada ano da minha existência rouca. Cordas penduradas em tectos altos, espalhadas ao acaso, com azeitonas penduradas que me alimentam durante o inverno, em que permaneço dentro de uma banheira com metade do meu tamanho. O jogo lúdico deixa-se para o fim, e são peixes que desaparecem cada um na sua direcção diferente. Despeço-me todos os dias do meu peito apagado com pedra-pomes, e faço da extinção de um de mim, uma extensa celebração por pares. Pois o meu Eu mais velho já ensina pouco ao mais recente. Fica um aperto de mão, calejada por porta-chaves, e uma lâmina já usada para a barba de amanhã. Uma remela granítica que escondo atrás das clarabóias a que chamo óculos. Apago lâmpadas com a boca, roubando-lhes depois o vidro com que aclaro a garganta. Sento-me, e fica escuro à volta. Levam-me a luz e agradeço. Durmo até que passe um comboio, e me deixe um vento, pelos trilhos que tenho debaixo da almofada que trago sempre comigo. Debaixo dela, guardo os dentes todos que arranco, e que nunca mais voltarão, até que a boca se cale num silêncio de marfim. Para o imediatamente antes, asseguro um silvo que baste, para chamar a minha bruxa careca de tantos chapéus usados. Vem depressa, quero dormir.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

AR LÍQUIDO

As minhas manhãs são quadrículas acidentadas numa parede de betão ainda por acabar. Raízes por cima dela, parede, a chegarem onde não vejo, tapadas por rampas que me saem dos olhos. Folhas secas e caladas, amordaçadas por teias que se apegam a tudo o que é construído. Manchas de sangue simétricas que vejo espalhadas por testes de Rorschach já antigos, espalhados pelos cantos que se cruzam com outros tantos. Aproxima-se um vulto e apoia, junto ao meu corpo, um cotovelo em silêncio. Ao lado, uma presença persistente de um pássaro que chama outro, através da sua cantiga urbana misturada de cancelas de ferro e motores de combustão. Vontades poucas que são levadas a passear por trelas, em cruzamentos de difícil opção. Síncopes em marcha e olhares perdidos em umbigos de ganga molhada precocemente no inicio, mas só na bainha.  Volumes que se deslocam em eixos de percepção difícil, capazes do maravilhoso. Dá que pensar. Canteiros de plantas carnívoras em edifícios públicos de freguesias que já não existem. Uma topografia registada num papel que sai de um pão, já com bolor, e que não serviu para alimentar uma alma que fosse. Quando muito conjuntos, estruturas. Uma calçada que se solta em cada pedra, num jogo de bingo caótico. Uma mão no bolso, que não quer ser vista em íntimos de masturbação com descontos na segunda unidade. Reservas limitadas de comida para os meus gatos, ávidos de detergente. Andores com santos de lábios pintados com gelados derretidos. Pernas de pau e loucuras à escolha em catálogos simples de impressão em gráficas que cabem num chinelo. É uma sorte perceber que o ar à tua volta passa também por ti. Respira.

terça-feira, 25 de junho de 2013

SEM MÃOS


Passo a vida a ouvir sons que não são meus. Sons que são ecos dos passos de outros.
Passam depressa e não reconheço rostos, antes perfumes. Fixo-me em varizes e conto cores de atacadores. Os dedos dos pés, de tão grandes e por não caberem no espaço próprio que é o deles em cada corpo, são amputados da sua beleza de verniz. Fragrâncias numa loja sempre em frente a ídolos com silhuetas de cartão rijo, colocados como porteiros depois das grades que os protegem deles próprios de quedas em desuso. Sorriem falsos para mãos no peito. Procuram elas, as mãos que medeiam actos, folhas de documentos dobrados dos quais já se esqueceram conteúdos que já não interessam. Coexistem todos numa letra de máquina aborrecida no seu logotipo de rotina. Servem também as mãos a cabelos, a rosas, a extintores de incêndio. Frequentemente olha-se para o chão onde nunca se sabe pisar. Um medo que falte metros, mesmo quando o que vemos é extenso, com um princípio e fim, até chegar a um qualquer desvio para outro lado. Restam gestos. Mãos com óculos, mãos com carteiras fechadas, mãos sempre num telemóvel que não toca por poucos segundos ou que não chega sequer a tocar. Mãos com sacos, cheios e vazios, mãos que ajudam, mãos que empurram, mãos que atrapalham, mãos que falam por bocas fechadas. O conforto de segurar uma garrafa de água que é negócio de parte do paraíso. Engarrafado e democrático. Rituais de pureza acessível a todos, mesmo os não religiosos e os que caminham pouco. A velocidade desta montra viva é editada no que vem depois, e passa também por detectores de alarme regulados para não metais. Tudo o que é lâmina é solúvel. Corpos bem nutridos por tecnologias infra bastantes por calças adentro, e costumes de passeio em família em que todos seguram uma chávena na mão. Significa amor pelo hábito, em que me enterro até aos joelhos, não precisando por isso da perna toda. Treino poucos dedos, e vou precisando de cada vez menos. Dito a palavra para a parede, para ser gravada no seu interior oco de papel de jornal do dia anterior. Vejo alguém a segurar com mais apego a chávena, e é o mais velho da família. Ele próprio não está seguro do seu acto de fé, mas olha em frente. Um olhar triste de calendário com dias apagados só números. Donde o perfume se evaporou numa água que é também colónia de todos os meninos que já fomos. Todos nós, os outros, passamos agora por erros de paralaxe aos olhos daquele velho. E somos já velhos quando nascemos, e percebemos ser o tempo um número contado de passos. Não existe um caminho perpétuo, antes sequências de simetria que nos ata sapatos todos os dias, até às meias solas. Pele queimada a tiracolo do desespero de carpinteiros de escadas improvisadas. Relatos estranhos, tatuados numa cor só, no céu que é a minha boca. E preciso tanto de auriculares bons.

sábado, 22 de junho de 2013

POR UM FIO




Ouço uma voz de quase silêncio, no aparelho de rádio que tenho sintonizado para Norte. É um discurso de pouca ciência ou nenhuma, onde são enumeradas evidências dormentes sobre assuntos que não chego a perceber. Sinto-o como ondas que podem ser enviadas da janela de qualquer um, podendo iniciar-se, assim, experiências interessantes entre duas pessoas ao acaso. Pode ser útil para outra pessoa ainda,  inspirada além do temperamento. Sou bom a estabelecer relações que só vão a um único sítio, e é de clima quente. Utilizo um detector vasto, de arames puros. É um edifício do conhecimento acabado de construir a uma distância inimaginável. Comecei a trabalhar pelo telhado e os engenheiros ajudaram com outros planos nas minhas costas. Tenho como público uma revolucionária, que abriu a caixa e ficou conhecida por ser Pandora. Tudo em detalhe são desmaios que dão origem a um alvoroço desiludido. Velas mal acesas; a elas um sopro e um escuro que vem depois de interruptores. Nada de tristezas nem tapetes para sacudir. Este fim-de-semana há eventos e são os nossos de mastigar. – Porquê prolongar um sofrimento? Penso com carinho neste emaranhado de fios-de-prumo que ditam a minha inclinação natural para o vazio, ao mesmo tempo que se instala em mim um conforto de portas velhas a ranger nas notas todas. É quase uma coleira – a tua boca – com espaços por preencher nos sítios dos dentes ausentes com que mordo disparates. Significa que isto vai acabar num instante, ocupando uma prateleira em altura. São só artérias acima do solo, com signos em trânsito, cortadas por lâminas coordenadas. Pois podemos ser sugados, a qualquer momento, deste corpo pouco a que chamamos nosso por conveniência. – Fechem as janelas! Passam por mim os destroços do edifício antes construído, que servirão para múltiplas catástrofes ainda este ano. Há indícios de jejuns paralelos, e avanço nessa direcção. O caminho é longo e tenho necessidade de pernoitar. Abrigo-me no quarto seguro de um hotel abandonado que tenho no meu quintal, e rodo sobre mim próprio, em espasmos de consciência. Às vezes estou atento ao clima, e adoro tempos mortos. – Tens de cuspir sempre o meu nome? Acordo num dia qualquer a seguir, e ponho os pés juntos, cada um por si, num tapete rolante cheio de buracos preenchidos com restos de refeições. De festas de balões. Vejo pelos cantos olhos de caroço. Retiram-se moídos da palavra bastarda que não encontra a fila correcta para a qual tirou a senha de ordem. – Está na hora de empacotá-las! Um aparelho derrete-lhe as pontas, na fábrica que todos os dias visito. Por vezes piso-a, à palavra, e vem agarrada à sola da minha bota, sujando-me a casa que habito. Serve como abrasivo desta superfície a que chamo pele.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

HOSPITAL CENTRAL




Um lugar bom para morrer várias vezes, o banco de urgência deste hospital.
Não pedi para me sentar, mas permaneço.
O ar pesa com calçado usado das caminhadas de cada um; julgo que devem ter sido muitos os passos, para justificar este fedor.
Isto vai escorregar! – Diz alguém, no corredor.
À minha frente vejo perto, um dos lugares possíveis da loucura, os olhos desta senhora que há muito abandonou a cadeira de rodas que a agasalha, e vagueia pelas luzes brancas com pressa de anjos.
Reparo, distraído, que este banco está cheio de cadeiras passageiras, e todas já ocupadas com filas de espera.
A quase agressão em família, por um pneu onde sentar.
Porque todos devemos ter um lugar onde não existir, e lutar por ele.
Aqui, o meu lugar é no chão humilde, onde abraço o pensamento longe e com ternura o meu lobo progenitor, e espero que o nosso nome igual faça eco nas colunas que transmitem pouca música, nesta feira colorida em cada pulseira à espera de braços agarrados.
Ouço-o agora, e levanto-me urgente como se estivesse à espera deste momento desde sempre.
Decerto treinei os movimentos num sonho prolongado, e agora concretizo.
Somos levados para um sítio mais amplo, onde apetece permanecer em solidão; mais acolhedor, e onde as indicações são dadas de viva voz por assistentes engraçadas na sua incorrecção antipática, porque ainda não se jantou.
E todos temos fome quando nos mexemos.
Vejo quartos de brincar no escuro, com símbolos de radiação afixados à entrada, a prometer corpos bronzeados.
As macas transportam só corpos, que as almas gostam de passear soltas de mãos, por todas as salas que não estão ocupadas.
O labirinto é cronometrado por um relógio parado numa conversa de telenovela.
O lobo que tenho ao meu lado, queixa-se de uma barriga cheia de vida que o paralisa; não tanto pela dor, mas pela irritação com o corpo que também erra na idade.
Tem um tubo na mão esquerda, e é um canal de pêlo encravado.
Prometo-lhe um osso com carne farta pela paciência, e já o reservei na montra da máquina de vendas.
Funcionários que aprenderam todos na mesma escola do engano, onde a frase maestra era só um bocadinho.
Aceno com a cabeça, e digo que não temos pressa. Agradeço até este momento em que o dia ficou parado e metido em tubos de sangue.
Corpos curvados sobre outros corpos já não tanto, e vómitos que pedem desculpa à vista de todos.
O meu é um coração do medo, onde estão bocas abertas em silêncio.
Estou quase a ir-me embora, só não sei quando.
Vou esperar que alguém o diga.
Para tudo há um botão e o diabo que o carregue.
Afinal é vesícula que se tem de operar em instrumentos de um furo acima, e eu sempre disse que tinha maus fígados de berço.

O amanhã é uma máquina avariada.

domingo, 16 de junho de 2013

AÇORDA BIMBY



O meu relógio levou sumiço. Aponto a hora que acho que é certa, e começo a partir daí. Uma maré negra de azares! – Dizem à boca pequena. Personagens que não consigo inventar, porque não param quietos. Malditos sejam. Que um rio seca às vezes, com canalha dentro. Eu, que não gosto de ficar sozinho de dia, junto-me a ele, rio, nos seus períodos menstruais de bivalves em menor nível, e por ele me nivelo também. É uma bacia com água ausente de afogamentos, onde o lodo é mais transparente no sufoco. E quem quer ver à volta, quando se afoga? – Eu não. Antes petróleo putrefacto, pois borbulha vida sem fim à vista. Um esgoto derramado pelas veias das cidades denunciadoras de origem humana, que é também a minha. Por vezes, duvido. É um instinto animal que tenho dentro. Uma argila de humor negro, que molda gargalhadas que morrem antes de o serem, antes da garganta, num espeto de ferreiro. Tenho um vizinho na casa que habito às vezes, quando não estou com o rio. Ele ocupa os dias a passar pelas brasas muitas galinhas. – Árida crista ou uma gala religiosa? Um beco com saída, mas apertada de quatro dedos. Levo pouco tempo a habitar um sítio amargo. Volto sempre para o lodo, pois organizo-me em lá melhor. Em carreirinhos de localidade, ordenados de formigas. Uma espécie que não se dá com cigarrilhas ao contrário dos cigarros. O hoje é uma maré excepcionalmente baixa, e vejo muitos como eu, com botas de borrachas que não apagam até à boca. Um vamos chafurdando cordato, onde todos muitos simpáticos que até dizem bons dias e como está muito obrigado. Também faço batota mas é pouca, de onde parto em dias ímpares, num batelão já só esqueleto à deriva. As mãos dividem-se em equilíbrios; uma segura o corpo propriamente desdito, a outra tenta não deixar cair em desgraça um púcaro de metal, insuficiente para tirar tanta água a tempo. Com ele vou distribuindo sede ao copo e o resultado fica empatado. Para me proteger dos salpicos e gafanhotos, uso um avental com a fotografia do meu vizinho em dia de gala, com uma crista berrante empastada de gel. Deu-me uma dúzia quando se candidatou à junta de freguesia da nossa rua vazia, pois somos só dois. Todos partiram para as suas terras de origem, mas isso era dantes que agora ninguém tem origem, e aparecem num sabe-se lá porquê de laboratório. Enfim. Dizia que era para eu não me esquecer em quem votar, e de nada servia lembra-lhe que cozinhava pouco e quase sempre no microondas. Ele não se importa e também, como eu e um país com hortas nas varandas, navega à vista. Uns verdes muito típicos de manjericos malcheirosos. E música brejeira encantadora, que ouço ao longe como um peru debaixo da areia e a uns bons palmos. Tenho uma televisão no convés ainda a preto e branco, e transmite em horas sadias. Vejo mexer bocas de papalvos licenciados na mediocridade da adivinhação do que é um bom caminhar ao lado. Sou míope, mas vou percebendo, ainda que para tal tenha de mandar parar todos os autocarros que vão para as minhas bandas. São todas caras bonitas que apetece esmurrar com todos os nós que tenho, e não só na mão. Tirar dentes a crédito e antes do nariz, que ficará decerto num espanto esborratado de um vermelho mesmo sangue. São prestações mensais suaves, daquelas que não me importo de pagar e assinar de cruz em x do tipo é aqui mesmo. Têm essas caras lá rocas e fusos horários, patrocínios estampados numa bandeira ridícula, cozidos num fato de alfaiate morto de forma naturalmente selvagem por uma pré-reforma, lá para os lados do bairro da Graça. Deixou como herança uma matriz de giz, que se adapta a todos os tamanhos de corpos magros. – Tempos de crise, o caralho! – Diz o aprendiz que era também namorado às escondidas do alfaiate, ao mesmo tempo que mostra, a tempo combinado para a abertura de todos os telejornais e nervoso por isso mesmo dos seus quinze minutos mal-afamados, um caderno com todas as encomendas dos clientes da casa, agora póstuma. Alguém lhe pergunta sobre essa posição assumida de bom entendedor economês, e ele não se encolhe nem se esquiva. E sopra assim: – A crise é não ter um alfinete! Eu até o percebo, e acrescento mais valor à fogueira. Nesta amálgama de mete-nojos que só vêem pneus à frente com bonitas jantes, brilhantes como os seus pais, e volantes com peles exóticas de se lhe tirar o chapéu. Que vontade de escalpes dessas pichas sebentas de umbigos mal formados, e secas ao sol da madrugada que não acaba mais. Um trabalho bom de artesanato, e que falta nos faz bons trabalhos. Das conas também não me esqueço de as maldizer, na ponta de um batom de néon a dar choques eléctricos. Há por aí muita miséria esticada de plásticas sinceras, alargadas por fórceps miúdos. Em tanto élan se perdem, e se perde um gosto de indicador, masturbador de vontades inacreditáveis. Só têm olhos para o mesmo ecrã com diagonal grande, que lhes ocupa o cú grande da sala, toda ela alcatifada de pó de talco. Haja espaço para dobrar a espinha até ao calcanhar que lhes atrapalha o andar. Que saudades que eu tenho de ser uma puta junto das putas mais crescidas, no Cais do Sodré de há poucos anos uns vinte para trás de hoje. Vocês sim sabiam namorar. Transgéneros, coxos e todos sem olhar a recompensa a longo prazo que não fosse dali a cinco ou dez minutos. Ainda me comovo com as vossas gargalhadas ao par, penduradas comigo numa garrafa pouca de absinto, em tascas onde nos gastávamos a contar moedas. A fada aparecia sempre, e com ela guloseimas de elevar corpos perfumados de tantas fodas. Isto é que é um pregão: – Álcool, heroína, cocaína, ecstasy ou paixão como o outro! Podia ser sempre paixão, que a temos de ter para tudo nesta vida. Das outras, tinha sempre um bocadinho comigo. Eram varinas com estrofes no polegar, e uma paragem romântica na qual saía sempre uma antes. Para cima vamos todos no eléctrico 28, e para baixo sempre com ajudas de camas com estruturas estridentes, de tubos que ainda rangem ao longe pelas janelas fechadas das pensões esquecidas de solas. Agora é tudo um amor e é falso. Sinto falta de um chão de barro onde gravar os meus passos, que não estas estradas de betuminosos coloridos de catálogos à distancia, vendidas por banhas da cobra amordaçados por compadrios. Um grupo que só assim se vale, num gangue de amores-perfeitos com colarinhos e um monograma com uma letra só. M de merda. Não se aguentam sozinhos com uma caneta. Só lavram actas sonantes de coisas nenhumas que transpiraram no próprio dia em que nada fizeram, e ainda acham que é um gosto passível de se registar, para vindouros tomarem o exemplo. Uma corja a quem não se conhece legados melhores que não sejam lagares de miséria, onde perpetuam pisares colectivos de uvas com formas de corpos humanos. À sua serventia. E nunca se emocionaram com um livro maldito que seja, nem sequer com uma ópera rock. Acham que é tudo receitas maravilhosas e sem calorias, que pensam em nós que andamos gordos. Seres tão perfeitos a quem se lhes concede uma vénia com chuva de caspa de origem nervosa e incrustada. Fazem bem em dizer às vossas crianças que uma escola enorme é um gráfico, e que a cultura é assim-assim, boa para se perder um bocado de tempo. Que é melhor ser dono de carteiras de crocodilos a arrotar a crédito avulso de milhões. Aveia para os molares com cárie. Bons timoneiros estes que não reconhecem cardos, quando estes germinam nos seus tapetes felpudos de entrada no condomínio. Tudo isto é um veneno, também é fado e sou só eu em tripas, a arranjar uma boa desculpa para espancar alguém. Tenho um saco de socos pendurado no sótão, mas é macio, ainda não são horas e já não tenho espaço em branco nele para escrever. Aguenta e vai almoçar. Hoje é açorda.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

VIDA 7 / 7



Acordo num cacilheiro bafiento; um sítio a que volto em cada moeda atirada ao ar, este que respiro mal; e tenho um saco roto cheio delas a tinir. Dentro dele também nós, de marinheiro embriagado perdido num nevoeiro antigo. Oriento-me por sinos nas barras do meu desencanto, e não cobro viagens a quem, comigo, pisa madeiras de mar chão. Farto-me depressa da minha revolta fácil; assim, antes maquilhar-me de estômagos mal alimentados, pestilentos de tanta coisa pouca e mal mastigada. Esforço-me por não ver salvações proscritas, gravadas em latas de conserva; que a minha costela é calma quando pendurada por molas, com vista para árvores de gaivotas bem perfumadas com naftalina. Pratas areadas com mãos de carvão adornam cabeças de demónios mal adormecidos, à distância segura de um olho-de-boi cravado na porta que quero fechada para o azar. Sei que vi o meu monstro gémeo mesclado neles, a tossir perversidades acumuladas de todos os fígados; uma colecção que tenho guardado numa salgadeira. O meu avô deu-me a dele; fica perto do lagar escuro onde foi enterrado, perto das suas uvas queridas. Por cima dele, uma laje feita de grainhas rejeitadas. Mantém-no quente e mestre de conselhos práticos, que vai sussurrando no meu ouvido de atenção. Calhou-me também em sorte a sua manta de todos os invernos; tecida com os melhores caninos de lobo, ganhos em noites de fome com pedaços contados de pão pedra e cheiros de ovelha. Foram arrancados por si próprio e uma tenaz, que trazia sempre presa à corda a que chamava cinto. Contava sempre esta estória, agarrado a um atiçador de lareira; falava do seu abrigo de solidão aconchegante, numa serra que lhe moldava os calos, por vezes com a companhia indesejada de amigos, contrabandistas de quinquilharias a salto e bonecas de porcelana chamadas de santinha. A minha calosidade virá depois, e desceu uma geração, à deriva pelo Tejo. Bebi do mesmo garrafão ancestral, e isso tornou-me consciente das maldades dos homens escolhidos. Um transpirar demente de nervo e conservado assim, até ao dia da última moeda. Num dia ao acaso de cada ano, vou desenhando no corredor o esboço da sombra que irá, um dia, usar as minhas roupas fúnebres. É uma armadura de gatos – só a cabeça – assanhados e ainda com carne debaixo das unhas que são as minhas, de todos aqueles que tombaram facilmente. É um ritual carnívoro, e leva-me sempre à mesma faca. Tem forma de garganta e merecia-a em criança, a jogar ao berlinde maior que abafa todos, feito num vidro que não se parte. Já o tentei em jeito e com marretas, e de todos desperdicei o metal. Assumi por fim esta maldição, que se me cola como um perfume. Cheiro bem a uma morte velha, e já relatada no diário de bordo que tenho guardado na cabeceira. Sei que não vou ter mais nenhuma e serei recompensado. A isso bebo e não posso. O meu gato já não sai à noite, e prefere ler as cartas de namoradas antigas, também com bigodes. O garrafão do meu avô, esse, mantém o hábito debaixo da mesa sempre cheio de cinco litros, para o dia em que eu acordar. Os uivos dessa noite amiga, a chamarem-me com saudade da minha violência de berço, que lhe ocupa todos os candeeiros. Cuido de um espaço reservado no congelador, e está lá a minha ampulheta. Já um dia lhe disse que era o meu farol, mas não acreditou em mim. Todos os dias depois de sonhar, desato as cordas protectoras que me marcam os pulsos até à carne viva. Para que a alcateia dos infernos, de que um dia fui líder, não me leve de vez. E esta é a última!

domingo, 9 de junho de 2013

UM FOTÓGRAFO ABORRECIDO





Uma imagem à distância de um chão de ontem. Eu, de joelhos nele e um esforço de ser preciso. Nas minhas mãos, um balde de várias formas contendo sonhos e uma serra. Olho para o fotógrafo à distância de anos, e sei que foram botas ortopédicas que me condicionaram o movimento para o registo. Assume-se antes uma pose sentada, partilhada com um rodapé e um tapete de pregos que não aparece na fotografia. Um sorriso de olhos e uma telefonia cercada por mim próprio e um anjo em forma de laranja humanizada com pestanas e mecanismos. As molduras vão-se decompondo, e só resta a edição de paisagens já escolhidas. Coloco-me em jardins desertos de pessoas, onde passam automóveis constantes que só se abastecem em bebedouros e existem como árvores, com elas partilham lençóis. Poses no meio de raízes, com cintos sem fivela e mãos de mãe por detrás da lente, diminuídas da sua verdadeira beleza de estúdio. Uma dentição simpática que recordo sem ter os olhos todos, sentado quase a cair de um banco extenso. Rostos encaroçados de partilha num só coração, que bate a dois tempos umbilicais mesmo à distância de uma mala. Cravo os pés com mais alguém e um guarda-chuva, numa ponte centrada na imagem que tenho dentro de um bolso antigo, cozido a preceito por uma máquina de família. Santos frágeis. Tenho alguns atrás das costas, enquanto observo de perto um volume de palha a fazer-se casa em altura de um homem. Por vezes pegam-me ao colo, para que a fotografia não fique tremida, em outras faço caretas abaixo do chapéu. Viajo frequentemente por outros arbustos e plantações de bacios substitutos de vasos. Tenho tantas imagens em papel, até uma barba de meses seguidos de rock, pendurada numa vénia ao chão disforme que piso. Lavadeiras saem por torneiras, e lavam serapilheiras usadas depois de pevides. Noutra olho para baixo, ao lado de uma família e tenho um cão de cor que me apanha as migalhas. Gosto quando são de lugares à janela e de burros sem albarda, ladeados por abutres amigos nos caminhos sazonais. Da ausência faço uma auto-estrada regular, para sorrisos com dentes de ouro e cadeiras sem vértebras. Tenho um avião numa escala razoável, sobre uma toalha de crochet imaculado. Agarro-me a metais com girinos martelados dentro de oficinas torcidas. Sou sempre eu que apareço num escorrega, com uma metralhadora e um telefone perto. Espero por canções de embalar que já não tocam na rádio, enquanto jogo a pular uma corda imaginária. Em segundo plano e ao lado de pilares esculpidos por povos de antes, tenho um fantasma vestido com um fato que é só calças presas por uma corda de linhaça. Candeias de azeite esperam no sopé das serras à volta, por neves que nunca mais virão. Um abraço de chuva é uma herança de pele curtida. Os joelhos continuam no chão, aparentemente. Agora com uma junta de bois pela trela e à espera do disparo da objectiva.