quarta-feira, 12 de junho de 2013

VIDA 7 / 7



Acordo num cacilheiro bafiento; um sítio a que volto em cada moeda atirada ao ar, este que respiro mal; e tenho um saco roto cheio delas a tinir. Dentro dele também nós, de marinheiro embriagado perdido num nevoeiro antigo. Oriento-me por sinos nas barras do meu desencanto, e não cobro viagens a quem, comigo, pisa madeiras de mar chão. Farto-me depressa da minha revolta fácil; assim, antes maquilhar-me de estômagos mal alimentados, pestilentos de tanta coisa pouca e mal mastigada. Esforço-me por não ver salvações proscritas, gravadas em latas de conserva; que a minha costela é calma quando pendurada por molas, com vista para árvores de gaivotas bem perfumadas com naftalina. Pratas areadas com mãos de carvão adornam cabeças de demónios mal adormecidos, à distância segura de um olho-de-boi cravado na porta que quero fechada para o azar. Sei que vi o meu monstro gémeo mesclado neles, a tossir perversidades acumuladas de todos os fígados; uma colecção que tenho guardado numa salgadeira. O meu avô deu-me a dele; fica perto do lagar escuro onde foi enterrado, perto das suas uvas queridas. Por cima dele, uma laje feita de grainhas rejeitadas. Mantém-no quente e mestre de conselhos práticos, que vai sussurrando no meu ouvido de atenção. Calhou-me também em sorte a sua manta de todos os invernos; tecida com os melhores caninos de lobo, ganhos em noites de fome com pedaços contados de pão pedra e cheiros de ovelha. Foram arrancados por si próprio e uma tenaz, que trazia sempre presa à corda a que chamava cinto. Contava sempre esta estória, agarrado a um atiçador de lareira; falava do seu abrigo de solidão aconchegante, numa serra que lhe moldava os calos, por vezes com a companhia indesejada de amigos, contrabandistas de quinquilharias a salto e bonecas de porcelana chamadas de santinha. A minha calosidade virá depois, e desceu uma geração, à deriva pelo Tejo. Bebi do mesmo garrafão ancestral, e isso tornou-me consciente das maldades dos homens escolhidos. Um transpirar demente de nervo e conservado assim, até ao dia da última moeda. Num dia ao acaso de cada ano, vou desenhando no corredor o esboço da sombra que irá, um dia, usar as minhas roupas fúnebres. É uma armadura de gatos – só a cabeça – assanhados e ainda com carne debaixo das unhas que são as minhas, de todos aqueles que tombaram facilmente. É um ritual carnívoro, e leva-me sempre à mesma faca. Tem forma de garganta e merecia-a em criança, a jogar ao berlinde maior que abafa todos, feito num vidro que não se parte. Já o tentei em jeito e com marretas, e de todos desperdicei o metal. Assumi por fim esta maldição, que se me cola como um perfume. Cheiro bem a uma morte velha, e já relatada no diário de bordo que tenho guardado na cabeceira. Sei que não vou ter mais nenhuma e serei recompensado. A isso bebo e não posso. O meu gato já não sai à noite, e prefere ler as cartas de namoradas antigas, também com bigodes. O garrafão do meu avô, esse, mantém o hábito debaixo da mesa sempre cheio de cinco litros, para o dia em que eu acordar. Os uivos dessa noite amiga, a chamarem-me com saudade da minha violência de berço, que lhe ocupa todos os candeeiros. Cuido de um espaço reservado no congelador, e está lá a minha ampulheta. Já um dia lhe disse que era o meu farol, mas não acreditou em mim. Todos os dias depois de sonhar, desato as cordas protectoras que me marcam os pulsos até à carne viva. Para que a alcateia dos infernos, de que um dia fui líder, não me leve de vez. E esta é a última!

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