Acordo num cacilheiro bafiento; um sítio a que volto em
cada moeda atirada ao ar, este que respiro mal; e tenho um saco roto cheio
delas a tinir. Dentro dele também nós, de marinheiro embriagado perdido num
nevoeiro antigo. Oriento-me por sinos nas barras do meu desencanto, e não cobro
viagens a quem, comigo, pisa madeiras de mar chão. Farto-me depressa da minha
revolta fácil; assim, antes maquilhar-me de estômagos mal alimentados,
pestilentos de tanta coisa pouca e mal mastigada. Esforço-me por não ver
salvações proscritas, gravadas em latas de conserva; que a minha costela é
calma quando pendurada por molas, com vista para árvores de gaivotas bem
perfumadas com naftalina. Pratas areadas com mãos de carvão adornam cabeças de
demónios mal adormecidos, à distância segura de um olho-de-boi cravado na porta
que quero fechada para o azar. Sei que vi o meu monstro gémeo mesclado neles, a
tossir perversidades acumuladas de todos os fígados; uma colecção que tenho guardado
numa salgadeira. O meu avô deu-me a dele; fica perto do lagar escuro onde foi
enterrado, perto das suas uvas queridas. Por cima dele, uma laje feita de
grainhas rejeitadas. Mantém-no quente e mestre de conselhos práticos, que vai
sussurrando no meu ouvido de atenção. Calhou-me também em sorte a sua manta de
todos os invernos; tecida com os melhores caninos de lobo, ganhos em noites de
fome com pedaços contados de pão pedra e cheiros de ovelha. Foram arrancados
por si próprio e uma tenaz, que trazia sempre presa à corda a que chamava
cinto. Contava sempre esta estória, agarrado a um atiçador de lareira; falava
do seu abrigo de solidão aconchegante, numa serra que lhe moldava os calos, por
vezes com a companhia indesejada de amigos, contrabandistas de quinquilharias a
salto e bonecas de porcelana chamadas de santinha. A minha calosidade virá
depois, e desceu uma geração, à deriva pelo Tejo. Bebi do mesmo garrafão
ancestral, e isso tornou-me consciente das maldades dos homens escolhidos. Um
transpirar demente de nervo e conservado assim, até ao dia da última moeda. Num
dia ao acaso de cada ano, vou desenhando no corredor o esboço da sombra que
irá, um dia, usar as minhas roupas fúnebres. É uma armadura de gatos – só a
cabeça – assanhados e ainda com carne debaixo das unhas que são as minhas, de todos aqueles que
tombaram facilmente. É um
ritual carnívoro, e leva-me sempre à mesma faca. Tem forma de garganta e
merecia-a em criança, a jogar ao berlinde maior que abafa todos, feito num
vidro que não se parte. Já o tentei em jeito e com marretas, e de todos
desperdicei o metal. Assumi por fim esta maldição, que se me cola como um
perfume. Cheiro bem a uma morte velha, e já relatada no diário de bordo que tenho
guardado na cabeceira. Sei que não vou ter mais nenhuma e serei recompensado. A
isso bebo e não posso. O meu gato já não sai à noite, e prefere ler as cartas
de namoradas antigas, também com bigodes. O garrafão do meu avô, esse, mantém o
hábito debaixo da mesa sempre cheio de cinco litros, para o dia em que eu acordar.
Os uivos dessa noite amiga, a chamarem-me com saudade da minha violência de
berço, que lhe ocupa todos os candeeiros. Cuido de um espaço reservado no
congelador, e está lá a minha ampulheta. Já um dia lhe disse que era o meu
farol, mas não acreditou em mim. Todos os dias depois de sonhar, desato as
cordas protectoras que me marcam os pulsos até à carne viva. Para que a
alcateia dos infernos, de que um dia fui líder, não me leve de vez. E esta é a
última!
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