quarta-feira, 5 de junho de 2013

TINTURA




Os meus passos são atacadores e já nem me lembro do primeiro laço. Sei que tinha meia de renda branca e um chapéu engraçado. Das minhas mãos saiam pombos e unhas cortadas. A memória puxa por ela e é impossível não ter um peito estreito. Como se o ar lento da respiração estivesse a dar tempo ao tempo dele maior, quando ainda havia máquinas pacientes e papéis por se revelarem. Hoje o feltro é curto, e mal absorve tanta aguadilha decidida. Não tenho saudades de ontem, porque continuo a usar as mesmas botas. Os atilhos é que são outros e já não precisam de animais sacrificados. O meu altar é feito de musgo e amanhã já é outro. Corro atrás de perus com feridas nos joelhos, em todos os sótãos. Vendem de tudo ao balcão e há sempre um velho de barbas em aguardente, que canta candelabros. Sou cigano de memória e engulo sapos. A garganta é uma junta de bois aclamada na ponta do ferro. Os olhos, corrigidos à vez. As castanhas do antigamente continuam onde as deixei. Debaixo de serapilheira, dentro do moinho abandonado à sorte de porcos famintos de abóboras-meninas. Há chão suficiente para pregos. Não tenho idade para esta viagem escura, mas sobram-me ruínas com corvos barulhentos e trovões de procissão. O ar vai ficando raro. Assim aproveito canetas secas. Já não me importo pela tinta. Basto-me com ponteiros afiados e escrevo sulcos na árvore originalmente copiada. Das azeitonas aproveito caroços e dou-lhes outra vida. Martelo-lhes uma pele de ouriço num tear ao acaso. Tenho um par por divisão, pois nunca sei quando vem a vontade. A última vez que forniquei foi comigo, e a seguir fui para o mosteiro. Era dentro de um automóvel a cair para um rio, e contei dez voltas. Cada uma com um pouco de água benta e nada de presunção. Aproveito o último sopro, descolo o último cartaz e é um diabo agarrado pelo rabo. Tenho calos nas mãos de mexer em plantas carnívoras. São bonitas a chorar poemas.

Sem comentários:

Enviar um comentário