O meu relógio levou sumiço. Aponto a hora que acho que é
certa, e começo a partir daí. Uma maré
negra de azares! – Dizem à boca pequena. Personagens que não consigo
inventar, porque não param quietos. Malditos sejam. Que um rio seca às vezes,
com canalha dentro. Eu, que não gosto de ficar sozinho de dia, junto-me a ele,
rio, nos seus períodos menstruais de bivalves em menor nível, e por ele me
nivelo também. É uma bacia com água ausente de afogamentos, onde o lodo é mais
transparente no sufoco. E quem quer ver à
volta, quando se afoga? – Eu não. Antes
petróleo putrefacto, pois borbulha vida sem fim à vista. Um esgoto derramado
pelas veias das cidades denunciadoras de origem humana, que é também a minha. Por
vezes, duvido. É um instinto animal que tenho dentro. Uma argila de humor
negro, que molda gargalhadas que morrem antes de o serem, antes da garganta,
num espeto de ferreiro. Tenho um vizinho na casa que habito às vezes, quando
não estou com o rio. Ele ocupa os dias a passar pelas brasas muitas galinhas. –
Árida crista ou uma gala religiosa? Um
beco com saída, mas apertada de quatro dedos. Levo pouco tempo a habitar um
sítio amargo. Volto sempre para o lodo, pois organizo-me em lá melhor. Em
carreirinhos de localidade, ordenados de formigas. Uma espécie que não se dá
com cigarrilhas ao contrário dos cigarros. O hoje é uma maré excepcionalmente
baixa, e vejo muitos como eu, com botas de borrachas que não apagam até à boca.
Um vamos chafurdando cordato, onde todos muitos simpáticos que até dizem bons
dias e como está muito obrigado. Também faço batota mas é pouca, de onde parto
em dias ímpares, num batelão já só esqueleto à deriva. As mãos dividem-se em equilíbrios;
uma segura o corpo propriamente desdito, a outra tenta não deixar cair em
desgraça um púcaro de metal, insuficiente para tirar tanta água a tempo. Com
ele vou distribuindo sede ao copo e o resultado fica empatado. Para me proteger
dos salpicos e gafanhotos, uso um avental com a fotografia do meu vizinho em
dia de gala, com uma crista berrante empastada de gel. Deu-me uma dúzia quando se
candidatou à junta de freguesia da nossa rua vazia, pois somos só dois. Todos
partiram para as suas terras de origem, mas isso era dantes que agora ninguém
tem origem, e aparecem num sabe-se lá porquê de laboratório. Enfim. Dizia que
era para eu não me esquecer em quem votar, e de nada servia lembra-lhe que
cozinhava pouco e quase sempre no microondas. Ele não se importa e também, como
eu e um país com hortas nas varandas, navega à vista. Uns verdes muito típicos de
manjericos malcheirosos. E música brejeira encantadora, que ouço ao longe como
um peru debaixo da areia e a uns bons palmos. Tenho uma televisão no convés
ainda a preto e branco, e transmite em horas sadias. Vejo mexer bocas de
papalvos licenciados na mediocridade da adivinhação do que é um bom caminhar ao
lado. Sou míope, mas vou percebendo, ainda que para tal tenha de mandar parar
todos os autocarros que vão para as minhas bandas. São todas caras bonitas que
apetece esmurrar com todos os nós que tenho, e não só na mão. Tirar dentes a
crédito e antes do nariz, que ficará decerto num espanto esborratado de um
vermelho mesmo sangue. São prestações mensais suaves, daquelas que não me
importo de pagar e assinar de cruz em x do tipo é aqui mesmo. Têm essas caras
lá rocas e fusos horários, patrocínios estampados numa bandeira ridícula,
cozidos num fato de alfaiate morto de forma naturalmente selvagem por uma
pré-reforma, lá para os lados do bairro da Graça. Deixou como herança uma
matriz de giz, que se adapta a todos os tamanhos de corpos magros. – Tempos de crise, o caralho! – Diz o
aprendiz que era também namorado às escondidas do alfaiate, ao mesmo tempo que
mostra, a tempo combinado para a abertura de todos os telejornais e nervoso por
isso mesmo dos seus quinze minutos mal-afamados, um caderno com todas as
encomendas dos clientes da casa, agora póstuma. Alguém lhe pergunta sobre essa
posição assumida de bom entendedor economês, e ele não se encolhe nem se
esquiva. E sopra assim: – A crise é não
ter um alfinete! Eu até o percebo, e acrescento mais valor à fogueira.
Nesta amálgama de mete-nojos que só vêem pneus à frente com bonitas jantes,
brilhantes como os seus pais, e volantes com peles exóticas de se lhe tirar o
chapéu. Que vontade de escalpes dessas pichas sebentas de umbigos mal formados,
e secas ao sol da madrugada que não acaba mais. Um trabalho bom de artesanato,
e que falta nos faz bons trabalhos. Das conas também não me esqueço de as
maldizer, na ponta de um batom de néon a dar choques eléctricos. Há por aí
muita miséria esticada de plásticas sinceras, alargadas por fórceps miúdos. Em
tanto élan se perdem, e se perde um
gosto de indicador, masturbador de vontades inacreditáveis. Só têm olhos para o
mesmo ecrã com diagonal grande, que lhes ocupa o cú grande da sala, toda ela
alcatifada de pó de talco. Haja espaço para dobrar a espinha até ao calcanhar
que lhes atrapalha o andar. Que saudades que eu tenho de ser uma puta junto das
putas mais crescidas, no Cais do Sodré de há poucos anos uns vinte para trás de
hoje. Vocês sim sabiam namorar. Transgéneros, coxos e todos sem olhar a recompensa
a longo prazo que não fosse dali a cinco ou dez minutos. Ainda me comovo com as
vossas gargalhadas ao par, penduradas comigo numa garrafa pouca de absinto, em
tascas onde nos gastávamos a contar moedas. A fada aparecia sempre, e com ela
guloseimas de elevar corpos perfumados de tantas fodas. Isto é que é um pregão:
– Álcool, heroína, cocaína, ecstasy ou
paixão como o outro! Podia ser sempre paixão, que a temos de ter para tudo
nesta vida. Das outras, tinha sempre um bocadinho comigo. Eram varinas com
estrofes no polegar, e uma paragem romântica na qual saía sempre uma antes. Para
cima vamos todos no eléctrico 28, e para baixo sempre com ajudas de camas com
estruturas estridentes, de tubos que ainda rangem ao longe pelas janelas
fechadas das pensões esquecidas de solas. Agora é tudo um amor e é falso. Sinto
falta de um chão de barro onde gravar os meus passos, que não estas estradas de
betuminosos coloridos de catálogos à distancia, vendidas por banhas da cobra
amordaçados por compadrios. Um grupo que só assim se vale, num gangue de amores-perfeitos
com colarinhos e um monograma com uma letra só. M de merda. Não se aguentam
sozinhos com uma caneta. Só lavram actas sonantes de coisas nenhumas que transpiraram
no próprio dia em que nada fizeram, e ainda acham que é um gosto passível de se
registar, para vindouros tomarem o exemplo. Uma corja a quem não se conhece legados
melhores que não sejam lagares de miséria, onde perpetuam pisares colectivos de
uvas com formas de corpos humanos. À sua serventia. E nunca se emocionaram com
um livro maldito que seja, nem sequer com uma ópera rock. Acham que é tudo
receitas maravilhosas e sem calorias, que pensam em nós que andamos gordos. Seres
tão perfeitos a quem se lhes concede uma vénia com chuva de caspa de origem
nervosa e incrustada. Fazem bem em dizer às vossas crianças que uma escola
enorme é um gráfico, e que a cultura é assim-assim, boa para se perder um
bocado de tempo. Que é melhor ser dono de carteiras de crocodilos a arrotar a
crédito avulso de milhões. Aveia para os molares com cárie. Bons timoneiros
estes que não reconhecem cardos, quando estes germinam nos seus tapetes
felpudos de entrada no condomínio. Tudo isto é um veneno, também é fado e sou
só eu em tripas, a arranjar uma boa desculpa para espancar alguém. Tenho um
saco de socos pendurado no sótão, mas é macio, ainda não são horas e já não
tenho espaço em branco nele para escrever. Aguenta e vai almoçar. Hoje é
açorda.
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