domingo, 16 de junho de 2013

AÇORDA BIMBY



O meu relógio levou sumiço. Aponto a hora que acho que é certa, e começo a partir daí. Uma maré negra de azares! – Dizem à boca pequena. Personagens que não consigo inventar, porque não param quietos. Malditos sejam. Que um rio seca às vezes, com canalha dentro. Eu, que não gosto de ficar sozinho de dia, junto-me a ele, rio, nos seus períodos menstruais de bivalves em menor nível, e por ele me nivelo também. É uma bacia com água ausente de afogamentos, onde o lodo é mais transparente no sufoco. E quem quer ver à volta, quando se afoga? – Eu não. Antes petróleo putrefacto, pois borbulha vida sem fim à vista. Um esgoto derramado pelas veias das cidades denunciadoras de origem humana, que é também a minha. Por vezes, duvido. É um instinto animal que tenho dentro. Uma argila de humor negro, que molda gargalhadas que morrem antes de o serem, antes da garganta, num espeto de ferreiro. Tenho um vizinho na casa que habito às vezes, quando não estou com o rio. Ele ocupa os dias a passar pelas brasas muitas galinhas. – Árida crista ou uma gala religiosa? Um beco com saída, mas apertada de quatro dedos. Levo pouco tempo a habitar um sítio amargo. Volto sempre para o lodo, pois organizo-me em lá melhor. Em carreirinhos de localidade, ordenados de formigas. Uma espécie que não se dá com cigarrilhas ao contrário dos cigarros. O hoje é uma maré excepcionalmente baixa, e vejo muitos como eu, com botas de borrachas que não apagam até à boca. Um vamos chafurdando cordato, onde todos muitos simpáticos que até dizem bons dias e como está muito obrigado. Também faço batota mas é pouca, de onde parto em dias ímpares, num batelão já só esqueleto à deriva. As mãos dividem-se em equilíbrios; uma segura o corpo propriamente desdito, a outra tenta não deixar cair em desgraça um púcaro de metal, insuficiente para tirar tanta água a tempo. Com ele vou distribuindo sede ao copo e o resultado fica empatado. Para me proteger dos salpicos e gafanhotos, uso um avental com a fotografia do meu vizinho em dia de gala, com uma crista berrante empastada de gel. Deu-me uma dúzia quando se candidatou à junta de freguesia da nossa rua vazia, pois somos só dois. Todos partiram para as suas terras de origem, mas isso era dantes que agora ninguém tem origem, e aparecem num sabe-se lá porquê de laboratório. Enfim. Dizia que era para eu não me esquecer em quem votar, e de nada servia lembra-lhe que cozinhava pouco e quase sempre no microondas. Ele não se importa e também, como eu e um país com hortas nas varandas, navega à vista. Uns verdes muito típicos de manjericos malcheirosos. E música brejeira encantadora, que ouço ao longe como um peru debaixo da areia e a uns bons palmos. Tenho uma televisão no convés ainda a preto e branco, e transmite em horas sadias. Vejo mexer bocas de papalvos licenciados na mediocridade da adivinhação do que é um bom caminhar ao lado. Sou míope, mas vou percebendo, ainda que para tal tenha de mandar parar todos os autocarros que vão para as minhas bandas. São todas caras bonitas que apetece esmurrar com todos os nós que tenho, e não só na mão. Tirar dentes a crédito e antes do nariz, que ficará decerto num espanto esborratado de um vermelho mesmo sangue. São prestações mensais suaves, daquelas que não me importo de pagar e assinar de cruz em x do tipo é aqui mesmo. Têm essas caras lá rocas e fusos horários, patrocínios estampados numa bandeira ridícula, cozidos num fato de alfaiate morto de forma naturalmente selvagem por uma pré-reforma, lá para os lados do bairro da Graça. Deixou como herança uma matriz de giz, que se adapta a todos os tamanhos de corpos magros. – Tempos de crise, o caralho! – Diz o aprendiz que era também namorado às escondidas do alfaiate, ao mesmo tempo que mostra, a tempo combinado para a abertura de todos os telejornais e nervoso por isso mesmo dos seus quinze minutos mal-afamados, um caderno com todas as encomendas dos clientes da casa, agora póstuma. Alguém lhe pergunta sobre essa posição assumida de bom entendedor economês, e ele não se encolhe nem se esquiva. E sopra assim: – A crise é não ter um alfinete! Eu até o percebo, e acrescento mais valor à fogueira. Nesta amálgama de mete-nojos que só vêem pneus à frente com bonitas jantes, brilhantes como os seus pais, e volantes com peles exóticas de se lhe tirar o chapéu. Que vontade de escalpes dessas pichas sebentas de umbigos mal formados, e secas ao sol da madrugada que não acaba mais. Um trabalho bom de artesanato, e que falta nos faz bons trabalhos. Das conas também não me esqueço de as maldizer, na ponta de um batom de néon a dar choques eléctricos. Há por aí muita miséria esticada de plásticas sinceras, alargadas por fórceps miúdos. Em tanto élan se perdem, e se perde um gosto de indicador, masturbador de vontades inacreditáveis. Só têm olhos para o mesmo ecrã com diagonal grande, que lhes ocupa o cú grande da sala, toda ela alcatifada de pó de talco. Haja espaço para dobrar a espinha até ao calcanhar que lhes atrapalha o andar. Que saudades que eu tenho de ser uma puta junto das putas mais crescidas, no Cais do Sodré de há poucos anos uns vinte para trás de hoje. Vocês sim sabiam namorar. Transgéneros, coxos e todos sem olhar a recompensa a longo prazo que não fosse dali a cinco ou dez minutos. Ainda me comovo com as vossas gargalhadas ao par, penduradas comigo numa garrafa pouca de absinto, em tascas onde nos gastávamos a contar moedas. A fada aparecia sempre, e com ela guloseimas de elevar corpos perfumados de tantas fodas. Isto é que é um pregão: – Álcool, heroína, cocaína, ecstasy ou paixão como o outro! Podia ser sempre paixão, que a temos de ter para tudo nesta vida. Das outras, tinha sempre um bocadinho comigo. Eram varinas com estrofes no polegar, e uma paragem romântica na qual saía sempre uma antes. Para cima vamos todos no eléctrico 28, e para baixo sempre com ajudas de camas com estruturas estridentes, de tubos que ainda rangem ao longe pelas janelas fechadas das pensões esquecidas de solas. Agora é tudo um amor e é falso. Sinto falta de um chão de barro onde gravar os meus passos, que não estas estradas de betuminosos coloridos de catálogos à distancia, vendidas por banhas da cobra amordaçados por compadrios. Um grupo que só assim se vale, num gangue de amores-perfeitos com colarinhos e um monograma com uma letra só. M de merda. Não se aguentam sozinhos com uma caneta. Só lavram actas sonantes de coisas nenhumas que transpiraram no próprio dia em que nada fizeram, e ainda acham que é um gosto passível de se registar, para vindouros tomarem o exemplo. Uma corja a quem não se conhece legados melhores que não sejam lagares de miséria, onde perpetuam pisares colectivos de uvas com formas de corpos humanos. À sua serventia. E nunca se emocionaram com um livro maldito que seja, nem sequer com uma ópera rock. Acham que é tudo receitas maravilhosas e sem calorias, que pensam em nós que andamos gordos. Seres tão perfeitos a quem se lhes concede uma vénia com chuva de caspa de origem nervosa e incrustada. Fazem bem em dizer às vossas crianças que uma escola enorme é um gráfico, e que a cultura é assim-assim, boa para se perder um bocado de tempo. Que é melhor ser dono de carteiras de crocodilos a arrotar a crédito avulso de milhões. Aveia para os molares com cárie. Bons timoneiros estes que não reconhecem cardos, quando estes germinam nos seus tapetes felpudos de entrada no condomínio. Tudo isto é um veneno, também é fado e sou só eu em tripas, a arranjar uma boa desculpa para espancar alguém. Tenho um saco de socos pendurado no sótão, mas é macio, ainda não são horas e já não tenho espaço em branco nele para escrever. Aguenta e vai almoçar. Hoje é açorda.

Sem comentários:

Enviar um comentário