terça-feira, 25 de junho de 2013

SEM MÃOS


Passo a vida a ouvir sons que não são meus. Sons que são ecos dos passos de outros.
Passam depressa e não reconheço rostos, antes perfumes. Fixo-me em varizes e conto cores de atacadores. Os dedos dos pés, de tão grandes e por não caberem no espaço próprio que é o deles em cada corpo, são amputados da sua beleza de verniz. Fragrâncias numa loja sempre em frente a ídolos com silhuetas de cartão rijo, colocados como porteiros depois das grades que os protegem deles próprios de quedas em desuso. Sorriem falsos para mãos no peito. Procuram elas, as mãos que medeiam actos, folhas de documentos dobrados dos quais já se esqueceram conteúdos que já não interessam. Coexistem todos numa letra de máquina aborrecida no seu logotipo de rotina. Servem também as mãos a cabelos, a rosas, a extintores de incêndio. Frequentemente olha-se para o chão onde nunca se sabe pisar. Um medo que falte metros, mesmo quando o que vemos é extenso, com um princípio e fim, até chegar a um qualquer desvio para outro lado. Restam gestos. Mãos com óculos, mãos com carteiras fechadas, mãos sempre num telemóvel que não toca por poucos segundos ou que não chega sequer a tocar. Mãos com sacos, cheios e vazios, mãos que ajudam, mãos que empurram, mãos que atrapalham, mãos que falam por bocas fechadas. O conforto de segurar uma garrafa de água que é negócio de parte do paraíso. Engarrafado e democrático. Rituais de pureza acessível a todos, mesmo os não religiosos e os que caminham pouco. A velocidade desta montra viva é editada no que vem depois, e passa também por detectores de alarme regulados para não metais. Tudo o que é lâmina é solúvel. Corpos bem nutridos por tecnologias infra bastantes por calças adentro, e costumes de passeio em família em que todos seguram uma chávena na mão. Significa amor pelo hábito, em que me enterro até aos joelhos, não precisando por isso da perna toda. Treino poucos dedos, e vou precisando de cada vez menos. Dito a palavra para a parede, para ser gravada no seu interior oco de papel de jornal do dia anterior. Vejo alguém a segurar com mais apego a chávena, e é o mais velho da família. Ele próprio não está seguro do seu acto de fé, mas olha em frente. Um olhar triste de calendário com dias apagados só números. Donde o perfume se evaporou numa água que é também colónia de todos os meninos que já fomos. Todos nós, os outros, passamos agora por erros de paralaxe aos olhos daquele velho. E somos já velhos quando nascemos, e percebemos ser o tempo um número contado de passos. Não existe um caminho perpétuo, antes sequências de simetria que nos ata sapatos todos os dias, até às meias solas. Pele queimada a tiracolo do desespero de carpinteiros de escadas improvisadas. Relatos estranhos, tatuados numa cor só, no céu que é a minha boca. E preciso tanto de auriculares bons.

Sem comentários:

Enviar um comentário