Passo a vida a ouvir sons que não são meus. Sons que são ecos dos passos de outros.
Passam
depressa e não reconheço rostos, antes perfumes. Fixo-me em varizes e conto
cores de atacadores. Os dedos dos pés, de tão grandes e por não caberem no
espaço próprio que é o deles em cada corpo, são amputados da sua beleza de
verniz. Fragrâncias numa loja sempre em frente a ídolos com silhuetas de cartão
rijo, colocados como porteiros depois das grades que os protegem deles próprios
de quedas em desuso. Sorriem falsos para mãos no peito. Procuram elas, as mãos que medeiam actos, folhas de
documentos dobrados dos quais já se esqueceram conteúdos que já não interessam.
Coexistem todos numa letra de máquina aborrecida no seu logotipo de rotina. Servem
também as mãos a cabelos, a rosas, a extintores de incêndio. Frequentemente
olha-se para o chão onde nunca se sabe pisar. Um medo que falte metros, mesmo
quando o que vemos é extenso, com um princípio e fim, até chegar a um qualquer desvio
para outro lado. Restam gestos. Mãos com óculos, mãos com carteiras fechadas,
mãos sempre num telemóvel que não toca por poucos segundos ou que não chega sequer
a tocar. Mãos com sacos, cheios e vazios, mãos que ajudam, mãos que empurram,
mãos que atrapalham, mãos que falam por bocas fechadas. O conforto de segurar
uma garrafa de água que é negócio de parte do paraíso. Engarrafado e
democrático. Rituais de pureza acessível a todos, mesmo os não religiosos e os
que caminham pouco. A velocidade desta montra viva é editada no que vem depois,
e passa também por detectores de alarme regulados para não metais. Tudo o que é
lâmina é solúvel. Corpos bem nutridos por tecnologias infra bastantes por
calças adentro, e costumes de passeio em família em que todos seguram uma chávena
na mão. Significa amor pelo hábito, em que me enterro até aos joelhos, não
precisando por isso da perna toda. Treino poucos dedos, e vou
precisando de cada vez menos. Dito a palavra para a parede, para ser gravada no
seu interior oco de papel de jornal do dia anterior. Vejo alguém a segurar com
mais apego a chávena, e é o mais velho da família. Ele próprio não está seguro
do seu acto de fé, mas olha em frente. Um olhar triste de calendário com dias
apagados só números. Donde o perfume se evaporou numa água que é também colónia
de todos os meninos que já fomos. Todos nós, os outros, passamos agora por erros
de paralaxe aos olhos daquele velho. E somos já velhos quando nascemos, e
percebemos ser o tempo um número contado de passos. Não existe um caminho
perpétuo, antes sequências de simetria que nos ata sapatos todos os dias, até
às meias solas. Pele queimada a tiracolo do desespero de carpinteiros de
escadas improvisadas. Relatos estranhos, tatuados numa cor só, no céu que é a
minha boca. E preciso tanto de auriculares bons.
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